Padre Miguel Neto, Diocese do Algarve
Depois de todos os episódios protagonizados por Simone Biles nas suas sucessivas desistências de finais olímpicas, abriu-se definitivamente o debate sobre a saúde mental no desporto de alta competição. Qual o preço a que estão sujeitos os atletas em relação à sua saúde mental, devido à pressão e ao estoicismo do seu esforço?
Embora na Igreja discutamos sempre o essencial (como a celebração eucarística no rito antigo), há muito que há sinais preocupantes da existência de muitos presbíteros em rutura mental, em burnout, com excesso de pressão, que não conseguem gerir as expectativas e, sobretudo, as exigências dos fiéis acerca eles. Por causa disso, tantas vezes, se entra por dois perigosos caminhos: num, alimenta-se a imagem do presbítero perfeito, puritano, impecável, seráfico, mas que rapidamente cai na obscura vida dupla, porque o exterior não corresponde ao interior; ou, noutro, alimenta-se a imagem do presbítero que é moderno, diferente, centralizador das atenções e até popstar, que vem inovar e revolucionar a Igreja e que, passado algum tempo, se desilude a ele e aos seus seguidores, porque é humano e tem a mesmas debilidades de tantos outros. Ambos, de certa maneira, anunciam-se a eles, esquecendo Jesus Cristo. E ambos estão em perigo real e concreto de viver algo que, desde o século passado, se conhece como “síndrome do bom samaritano desiludido”.
Este Síndrome ou doença, para que melhor percebem, aplica-se a um presbítero que vive em burnout, depressão e ansiedade. Numa palavra, em constante pressão mental, que pode provocar uma doença mental. Este síndrome é potencializado por vários fatores:
- Pela sobrecarga de trabalho burocrático, repetitivo e sem criatividade;
- Pela gestão de recursos humanos e financeiros de Centros Sociais, situação para a qual o presbítero não está preparado académica, nem humanamente;
- Por uma vida repleta de frustrações geradas pelo contato com os paroquianos (que veem o seu pároco como alguém não humano, que tem de dar resposta a tudo e a qualquer coisa, a todas as horas e momentos);
- Pela sensação de não ter sucesso pastoral, pela dificuldade de relacionamento com os colegas presbíteros (que muitas vezes refletem uma imagem de perfeição que gostariam que fosse modelo para os demais, esquecendo que a diversidade é um dos dons da Criação, situação que efetiva uma redução de sentido de pertença do presbitério, pelo contraste de valores pessoais).
O “trabalho” de presbítero, entendendo-se “trabalho” por missão ou por labor pastoral, define essencialmente a sua identidade e pertença à Igreja. Ele é simultaneamente uma pessoa que está dentro da categorias daquelas que são chamadas “profissões de ajuda”, já que realiza funções de acolhimento, escuta, assistência, ou até orientação e aconselhamento aos fiéis. Está, também, na categoria daqueles que desempenham papéis de liderança, nomeadamente pelo seu empenho em causas sociais, na orientação das comunidades para fins comuns, pelos cargos que desempenham ao serviço das suas dioceses. Do padre espera-se que seja um modelo de virtude e santidade, e não um homem escolhido por Deus, para que o Povo não se esqueça que é Deus, esse sim, é modelo e guia eterno e perfeito.
Dão testemunho do Evangelho, mas como seres humanos que são, quando expostos a situações de dúvida e conflito e revelam reações de stress, quer pela dedicação às funções assumidas, quer pelos focos de tensão, que são muito variados, muitos esquecem que os padres são seres humanos e não atletas olímpicos! Reparem: tantas vezes o pároco enfrenta a crítica e a contestação sem o mínimo fundamento e veracidade, ou sem o esforço do diálogo e da compreensão por parte dos paroquianos; tantas vezes, nos lugares mais pobres e afastados dos grandes centros urbanos, o sacerdote lida com uma ampla gama de problemas, não só espirituais, mas também sociais, o que eleva a expectativa da comunidade que dele espera receber a resposta para tais problemas. Os padres lidam, ainda, com uma enorme falta de privacidade. Não interessa se estão tristes, cansados ou doentes; porque são sacerdotes têm de estar à disposição dos fiéis 24 horas por dia, sete dias por semana.
E essa distância entre a imagem ideal e a real do padre aumenta quando se tem presente o que dele pedem os documentos da Igreja, que referem qualidades humanas tais como: a capacidade de relacionamento, a bondade de coração, a disponibilidade, a sinceridade, a escuta ativa. O sacerdote, consagrado pelo Espírito de Deus e enviado por Jesus Cristo, tem de esforçar-se por estar sempre no caminho da santidade e da caridade pastoral, um ideal grandioso, que acaba, para muitos, por ser mais uma carga do que uma ajuda no crescimento humano-afetivo e espiritual. Tal como acontece com os atletas olímpicos, de quem se espera superação constante, resiliência até ao limite, força e vitórias constantes!
E o que acontece no interior, no coração e na cabeça de tantos sacerdotes? Muitos relatam que se sentem impotentes, incapazes e tristes diante dos pedidos/exigências dos seus paroquianos ou outros cristãos, carregados de expectativas, mas difíceis de encaminhamento e desprovidos de sentido de misericórdia para com o próprio sacerdote.
Pregar e viver a realidade; compreender o que a Igreja ensina e a distância entre isso e a vida real; lidar com as próprias emoções, sentimentos e pensamentos são dificuldades que os padres enfrentam e que não cabem no entendimento que os leigos comuns têm das tarefas e atribuições que fazem parte do ministério sacerdotal. E às vezes, nem cabe no entendimento de outros sacerdotes!…
Essa exigência e esse sentimento de que se está a falhar já provocaram vítimas, que por medo, culpa ou vergonha, optam pelo suicídio, em vez de pedir ajuda, algo que acontece cada vez com mais frequência em países como Brasil, Espanha, Itália, enfim, um pouco por todo o mundo.
O Pe Wally foi um dos casos que se tornou bastante conhecido. Antes de se suicidar escreveu: «Parem de procurar em nós a perfeição que só Ele possui. Para vocês somos outro Cristo; com vocês lutamos pelo céu».
E não adianta cometer o último dos injustos julgamentos, afirmando que “o que falta a estes padres é vida de oração “. Isto é um reducionismo que desemboca na calúnia ou, no mínimo, na maledicência. Mesmo as pessoas que vivem intensamente a fé e uma sólida espiritualidade estão sujeitas ao esgotamento físico e à necessidade de ajuda! Alguém duvidará que Simone Biles ou Michael Phelps não treinavam arduamente e não tinham o desejo de chegar às medalhas? Há que, como cristãos que somos, julgar menos e ajudarmos mais. Só assim viveremos com mais coerência o cristianismo que dizemos professar e que tanto gostamos – mais que tudo! – de cobrar aos outros.
Façamos o que nos pediu o Pe. Wally poucos instantes antes de pôr fim à sua vida: «Por Deus. NÓS NÃO SOMOS SUPER HERÓIS. Somos os mais miseráveis dos homens que Ele quis para estar a serviço d’Ele. REZEM. REZEM INCESSANTEMENTE POR NÓS E, QUANDO CAIRMOS, NOS AJUDEM: REZEM MAIS. Como sacerdote, peço que Nossa Senhora das Dores interceda por todos os meus irmãos sacerdotes que mais sofrem. Que sofrem disfarçados de sorrisos e que muitas vezes estão no fim do último sorriso».
Rezem por nós.
Tavira, 4 de agosto de 2021
Memoria de São João Maria Vianney