Os justos vivem na mão de Deus

Homilia do Cardeal-Patriarca de Lisboa na Missa do Centenário do Regicídio 1. Esta celebração é um acto religioso. Apesar de se enquadrar na memória histórica de acontecimentos com intenso significado político, o que nos reúne aqui é a fé da Igreja na vida para além da morte e a certeza da nossa comunhão com aqueles que já morreram, para louvar com eles o Senhor, se foram admitidos à Sua presença ou merecer com as nossas preces a sua última purificação, se dela ainda precisarem. Mesmo na inevitável consideração de acontecimentos que marcaram profundamente a nossa história, deixar-nos-emos guiar pela Palavra de Deus que, para nós cristãos, é a luz a guiar-nos na busca do sentido profundo da história. Sempre que rezamos pelos mortos, confrontamo-nos com dois mistérios: a inevitabilidade da nossa morte, a que o próprio Cristo se sujeitou, e a Sua ressurreição dos mortos, afirmação perene de outra vida depois da morte, que só Ele experimentou e que só n’Ele a podemos esperar. A afirmação do Concílio Vaticano II, que só em Cristo se esclarece o mistério do homem, se se aplica já na nossa vida terrena, na busca da vida, da liberdade, da verdade e do amor, adquire um sentido radical perante a nossa morte. Só na morte e na ressurreição de Cristo se antevê, na esperança, o sentido da própria morte. São Paulo tinha razão quando escrevia aos Coríntios: “Se Cristo não ressuscitou dos mortos, somos as mais infelizes das criaturas (cf. 1Cor. 15,). A esperança de que a nossa vida encontre, em Cristo ressuscitado, o seu sentido definitivo, era já intuído na esperança de Israel, como ouvimos no Livro da Sabedoria: “As almas dos justos estão na mão de Deus e nenhum tormento os atingirá” (Sab. 3,1). A experiência da morte é a que mais iguala todos os homens. Como dizem os Actos dos Apóstolos, “Deus não faz acepção de pessoas”: tanto morrem os grandes deste mundo, como os pobres e os marginalizados pela sociedade. É com a verdade fundamental do seu coração que comparecem perante Deus: “em qualquer nação, aquele que O teme e pratica a justiça é-lhe agradável” (Act. 10,35). São esses os justos que permanecem na mão de Deus. Mas a pergunta que tantas vezes fazem os próprios salmistas, coloca-se-nos inevitavelmente: quem é justo diante do Senhor? Poderosos e humildes, todos somos pecadores. Daí que a primeira concretização da justiça é a confiança na misericórdia de Deus, que em Cristo nos perdoa os nossos pecados, como escutávamos há pouco: “É d’Ele (de Cristo) que todos os Profetas dão o seguinte testemunho: quem acredita n’Ele, recebe pelo Seu Nome a remissão dos pecados” (Act. 10,36). Os que confiam no perdão dos pecados e se abandonam, na confiança, ao amor misericordioso de Deus, são os que O temem e praticam a justiça. Este abandono confiante é a primeira expressão da fé. Na vida do crente, deve acompanhá-lo e aprofundar-se sempre, mas pode exprimir-se de forma radical no momento do encontro com Deus. Se já não conhecemos o que se passa no mais íntimo do coração de cada homem, ainda sabemos menos do que se passa na morte, o momento decisivo do encontro com Deus. Só Ele o conhece, no Seu justo juízo. Só Ele sabe quem são os justos que desejaram e aceitaram repousar para todo o sempre no coração de Deus. A nossa oração pelos mortos é expressão desse abandono confiante ao segredo de Deus. 2. Há 100 anos, a morte do Rei e do Príncipe herdeiro foi um acto de violência, de violência política. A violência continua a ser, no mundo de hoje, um dos principais males da humanidade. De certo modo, ela está ligada à experiência da própria morte, como ouvíamos no Livro da Sabedoria: “A sua saída deste mundo foi considerada uma desgraça e a sua partida do meio de nós um aniquilamento” (Sab. 3). O próprio Cristo morreu de forma violenta, porque Se quis identificar com todo o drama humano. Mas na Sua doutrina, ao pregar o Reino de Deus, lançou o maior desafio jamais feito a um mundo violento, que acaba sempre por justificar a própria violência: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam. O erradicar da violência será a maior vitória da civilização e a primeira manifestação da convivência democrática, baseada no respeito pela pessoa humana e suas legítimas diferenças. As celebrações centenárias dos acontecimentos que, há um século, marcaram o destino da nossa Nação, começam necessariamente, hoje: o Regicídio foi acontecimento decisivo na revolução que levou à mudança do regime político. Não foi, infelizmente, o último acto de violência. Durante todo o primeiro quartel do Século XX esta foi caminho justificado para impor ideias e políticas: foram suas vítimas homens políticos, pessoas e associações; foi sua vítima, como sabemos, a própria Igreja, na perseguição das pessoas, sobretudo de sacerdotes, na destruição de estruturas e instituições, na espoliação injusta de bens essenciais para o exercício da missão da Igreja. Oxalá as celebrações dos próximos anos sejam marcadas por uma denúncia da violência, que deve ser rejeitada e combatida por todos, em todas as frentes. A Igreja e os cristãos querem estar na primeira linha desse combate, perdoando as violências sofridas e dando testemunho de convivência, no amor, com todos, mesmo aqueles que não se identificam connosco. Só a convivência tolerante e fraterna nos levará a uma sociedade justa, humanizada, democrática. Católicos e não católicos, que ninguém ressuscite fantasmas antigos, porque cem anos significaram um caminho andado, e a celebração das grandes efemérides históricas só tem sentido se celebram o presente e se abrem a um futuro novo. Saibamos exorcizar todas as formas de violência, remindo pecados passados, de que a própria Igreja não foi isenta, contribuindo apaixonadamente para uma sociedade mais fraterna. Os que já morreram já foram purificados pela própria morte, e confiemos que eles repousam no seio de Deus. Igreja de São Vicente de Fora, 1 de Fevereiro de 2008 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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