Nota Pastoral da CEP
Com júbilo, gratidão e esperança, a Conferência Episcopal Portuguesa associa-se à celebração dos oitocentos anos de presença franciscana no nosso País com a sua mensagem fraterna de Paz e Bem. Não sendo franciscana a pia batismal do novel Reino de Portugal, o cunho franciscano cedo impregnou muito do Cristianismo português na vivência da piedade cristológica e mariana, sobretudo na celebração do Natal (presépio), na devoção à Paixão de Cristo (via sacra) e no culto da Imaculada Conceição.
Desejamos que esta celebração jubilar seja ocasião para uma tomada de consciência das sementes franciscanas que ao longo do tempo foram germinando e crescendo na alma portuguesa.
- Árvore frondosa de numerosos ramos
O Franciscanismo chegou a Portugal em 1217 depois de o capítulo geral da recém-fundada Primeira Ordem Franciscana, celebrado nesse ano, ter decidido enviar frades a evangelizar fora da Itália. As primeiras fundações, simples eremitérios, estabeleceram-se em Alenquer e Guimarães. O primeiro mosteiro português da Segunda Ordem foi o das Clarissas de Lamego em 1258. Integra-se também no ramo franciscano de religiosas de clausura a Ordem da Imaculada Conceição (Concecionistas), fundada em Toledo em 1489 pela portuguesa Santa Beatriz da Silva e estabelecida em Portugal em 1625. A Ordem Franciscana Secular, para homens e mulheres que orientam a sua vida cristã no estado secular segundo o espírito do Santo de Assis e designada primitivamente Ordem da Penitência e a seguir Ordem Terceira de S. Francisco, apareceu entre nós ainda na primeira metade do século XIII. A estruturação da Ordem Terceira Regular principiou em finais do mesmo século a partir de agrupamentos de terceiros seculares que adotaram vida comunitária com votos religiosos. O braço masculino, de perfil semelhante ao da Primeira Ordem, já existia no País na primeira metade do século XV. O feminino assumiu duas modalidades: mosteiros de clausura e associações religiosas dedicadas à catequese, atendimento de doentes e outras formas de beneficência.
No início do século XVI a Primeira Ordem cindiu-se em três ordens independentes. Em 1517 o Papa Leão X dividiu-a em Ordem dos Frades Menores da Observância (que passaram a ser designados habitualmente como Franciscanos) e Ordem dos Frades Menores Conventuais. Oito anos depois nasceu entre os primeiros um movimento de reforma que o Papa Clemente VII em 1528 aprovou como Ordem dos Frades Menores Capuchinhos.
O Liberalismo interrompeu abruptamente mais de seis séculos de vida conventual franciscana. Em 1833 proibiu-se a admissão de noviços e no ano seguinte suprimiram-se todos os conventos e institutos masculinos. Os mosteiros femininos, impedidos de aceitar noviças, iam-se despovoando à medida que as religiosas morriam e eram extintos após o falecimento da última, ficando o Estado na posse dos edifícios.
Na segunda metade do século XIX, apesar da interdição da lei civil, a Primeira Ordem começou a reorganizar-se com os frades de Varatojo (Torres Vedras). Paralelamente, apareceram quatro congregações femininas da Ordem Terceira Regular, ainda hoje com destacada presença entre nós: as Franciscanas Hospitaleiras de Calais, atualmente Franciscanas Missionárias de Nossa Senhora, e as Franciscanas Missionárias de Maria, originárias da França; e as Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas, agora da Imaculada Conceição, e as Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, fundadas, respetivamente, em Lisboa e no Funchal pela Beata Maria Clara do Menino Jesus e pela Venerável Irmã Maria de S. Francisco Wilson.
Com a I República sobreveio nova extinção dos institutos religiosos. Um decreto de 8 de outubro de 1910 expulsou do País todos os jesuítas, estrangeiros e nacionais, e todos os demais religiosos e religiosas estrangeiros. Os portugueses foram obrigados a dispersar e a não conviver em grupos com mais de três elementos.
Em 1928, desanuviada a situação, as casas de formação dos Franciscanos, então localizadas na Galiza, regressaram a Portugal. Por seu lado, os Capuchinhos estabeleceram-se entre nós em 1934. O mesmo fizeram os Conventuais em 1967, depois duma ausência de quatro séculos. Entretanto, vieram de Espanha quatro congregações femininas da Ordem Terceira Regular: Escravas da Santíssima Eucaristia e da Mãe de Deus, Franciscanas Missionárias da Mãe do Divino Pastor, Franciscanas de Nossa Senhora do Bom Conselho e Irmãs Franciscanas da Imaculada. Depois surgiram outras quatro, de instituição nacional: Fraternidade Franciscana da Divina Providência (Fátima), Servas Franciscanas de Nossa Senhora das Graças (Braga), Servas Franciscanas Reparadoras de Jesus Sacramentado (Bragança) e Irmãs Concecionistas ao Serviço dos Pobres (Elvas), estas fundadas pela Venerável Madre Isabel da Santíssima Trindade. Finalmente, a Ordem Franciscana Secular conheceu notória renovação na segunda metade do século XX.
No mesmo período a colaboração interfranciscana intensificou-se e deu origem a duas realizações mais significativas: a Peregrinação Nacional Franciscana a Fátima desde 1971 e a criação da Família Franciscana Portuguesa em 1978, entidade com personalidade jurídica canónica e civil.
- Ação missionária
Membros duma Ordem que nasceu missionária, os Franciscanos portugueses desenvolveram privilegiadamente essa dimensão a partir do século XV, integrados na gesta universalista dos Descobrimentos. Essa história missionária não pode contudo dispensar a referência ao seu começo, real e simbólico, com Santo António de Lisboa e o seu encontro providencial, em Coimbra, com os protomártires franciscanos de Marrocos. Também ele missionou por breve tempo em Marrocos antes de iluminar a Itália e a França com a eloquência inflamada da sua pregação,
A partir do século XVI os Franciscanos evangelizaram a Índia e o Brasil onde criaram quatro províncias religiosas, duas das quais ainda hoje perduram em terras de Vera Cruz. No século XVII Capuchinhos italianos e franceses, entre nós conhecidos por Barbadinhos, abriram casas em Lisboa como base de apoio às suas missões no Brasil, em Angola e na costa e ilhas do Golfo da Guiné.
No século XX Capuchinhos, Franciscanos e oito congregações femininas trabalharam nas antigas colónias de África, contribuindo decisivamente para a formação e crescimento das florescentes cristandades desses novos países lusófonos.
- Obra cultural
Paralelamente ao ministério pastoral, os Franciscanos medievais cedo abriram escolas públicas de gramática, filosofia ou teologia nos conventos de Alenquer, Beja, Coimbra, Évora, Guimarães, Lisboa, Porto e Santarém. A escola de teologia de Lisboa ganhou mais projeção e foi incorporada na universidade de Lisboa pelo Papa Nicolau V em 1453. No século XVI a filosofia e teologia da Escola Franciscana ficaram representadas na universidade de Coimbra pela cadeira de João Duns Escoto. Neste século e no seguinte fundaram-se na mesma cidade cinco Colégios Universitários franciscanos da Ordem Terceira Regular e de quatro províncias da Primeira Ordem. Digna de registo, no século XVIII, a ação cultural de Fr. Manuel do Cenáculo Vilas Boas e da Ordem Terceira Regular no convento de Nossa Senhora de Jesus, em Lisboa, hoje sede da Academia das Ciências de Lisboa que herdou a sua artística biblioteca e o recheio desta, valioso em obras clássicas. No nosso tempo a Universidade Católica Portuguesa, criada em 1967, conta desde o início com vários Franciscanos em funções docentes e de governo.
No âmbito do ensino primário e secundário a Família Franciscana, desde fins do século XIX, tem desempenhado papel meritório com destaque para as escolas de diversas congregações femininas.
No campo das letras avultam duas figuras nos séculos XVI e XVII: o arrábido Fr. Agostinho de Cruz, com a unção mística da sua poesia, e Fr. António das Chagas, conceituado escritor espiritual e instituidor do seminário de missionários apostólicos de Varatojo, os quais, literalmente, calcorrearam o País em frutuosas missões populares durante quase dois séculos.
Por fim, também desde finais do século XIX, tem sido frequente o recurso à imprensa para difusão de textos de índole variada, a maioria de regular informação e apoio religioso e outros de alto valor cultural e científico. Nesta área destacam-se a revista Voz de Santo António, publicada pelos Franciscanos de 1895 a 1910, e, desde meados do século XX, as traduções e edições bíblicas dos Capuchinhos e três revistas: Itinerarium, Bíblica e Mensageiro de Santo António, editadas pelos Franciscanos, Capuchinhos e Conventuais, respetivamente.
- Intervenção social
De uma família religiosa que tem por lema a pobreza, é de esperar prioridade de atenção aos pobres, naturalmente veiculada em convivial atitude de proximidade, mas também na colaboração e criação de mediações de assistência institucionalizada.
Sobretudo desde finais do século XIX, bom número de congregações femininas e de fraternidades da Ordem Franciscana Secular tem desempenhado papel significativo na fundação e gestão de hospitais e escolas de enfermagem e, em particular, de casas de acolhimento de crianças e jovens e de lares de terceira idade. Não é possível escrever a história contemporânea da assistência social em Portugal omitindo esse contributo.
- Interpelações à Família Franciscana e à Sociedade
O jubileu dos oitocentos anos de presença franciscana em terras lusitanas constitui oportuno momento de interpelação para a vasta Família Franciscana e para a Sociedade.
A experiência de Deus no encontro pessoal de fé com Jesus Cristo assinala a marca identitária do perfil espiritual do Patriarca S. Francisco. O Santo de Assis não irradiava luz própria; refletia a que lhe vinha de Cristo no seio da Igreja. A sua originalidade consistiu em ter sido incansável seguidor de Jesus, um “outro Cristo”, conforme o apelidou a hagiografia medieval. Ou como Teixeira de Pascoaes o definiu em 1927 por ocasião do sétimo centenário da sua morte: “Foste, no mundo, a imagem de Jesus / Que foi, no mundo, a aparição de Deus.”
Nesta conformidade, os membros da Família Franciscana devem ser também, sempre e cada vez melhor, anúncio vivo e transparente de Jesus em palavras e obras. Se assim for, o Franciscanismo tem futuro nos tempos de hoje apesar dos obstáculos da caminhada.
S, Francisco tem igualmente uma palavra forte a dizer à Sociedade atual. O seu amor à simplicidade e à pobreza é convite a um estilo de vida sóbrio e respeitador da “casa comum” da Criação. A sua mensagem de Paz e Bem é estímulo à promoção da fraternidade universal, fundada não em vago humanitarismo social, mas na consciência agradecida de que Deus é Pai comum de toda a humanidade.
A vida consagrada atravessa hoje um momento de acentuada crise de vocações. A Conferência Episcopal Portuguesa acompanha, todavia, com esperança esta situação de prova que também atinge a Família Franciscana. Entre as razões de tal esperança, sobressai a interpelação suscitada pela encíclica Laudato si’, do Papa Francisco, sobre o Cuidado da Casa Comum. Não só pela inspiração desta no Santo de Assis, explicitamente assumida no documento, a começar pelo próprio título, como ainda pelos horizontes que abre às preocupações e ações de toda a humanidade. Os filhos de S. Francisco têm naturais motivos para se reconhecerem nelas para superar a presente crise epocal da história da humanidade e como compromisso de fidelidade ao desígnio da própria fundação da Família Franciscana qual a Igreja continua a depositar acalentadoras esperanças.
Fátima, 12 de abril de 2018