Homilia de Natal do Administrador Apostólico do Porto É grave e importante o acontecimento que celebramos hoje. Tão grave e tão importante que muitos dos que se cruzaram nestes dias nas ruas de cidades e aldeias passaram-lhe ao lado. E talvez nós próprios não tenhamos acordado para a gravidade do mistério que nos envolve. Precisamos de parar, meditar e rezar… Há dois movimentos nos relatos bíblicos do Natal: um mais ascendente, que se concretiza em S. Lucas. O evangelista detém-se especialmente no relato histórico e em pormenores que mostram que Jesus, pobre, nascido no seio de uma família humilde, moradora num canto esquecido do império romano, realiza as promessas do Antigo Testamento: este Jesus é o Messias, Filho de Deus. Outro movimento, descendente, concretiza-se em S. João e diz que o Verbo eterno de Deus, pelo qual foi feita a primeira criação, encarnou no tempo na Pessoa de Jesus de Nazaré, para fazer uma nova criação: a redenção do homem decaído pelo pecado original. O Prefácio do Evangelho de S. João, que acabámos de ouvir, é o resumo dessa teologia da Encarnação. No princípio era o Verbo. O Verbo era Deus. Tudo foi feito por meio dele. E o Verbo fez-se carne e morou entre nós. A todos que O receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus. O Verbo fez-se carne. S. João teve tempo para reflectir a fé das comunidades primitivas. E deixou-nos este testemunho magnífico de quem viu e conviveu com o Verbo da Vida. Acreditou n’Ele com muitos outros e escreveu que o Filho unigénito que estava no seio do Pai veio ao que era seu e deu a conhecer o Deus que jamais alguém viu. O Verbo é a Palavra de Deus. O Logos, a razão primordial, a Palavra criadora, pode parecer um ser insensível, distante, pura razão. Mas o Logos é um AMANTE com toda a paixão. Ele veio revelar-nos que Deus não é um ser insensível, mas o amor apaixonado pelo homem. Cristo é o Amor encarnado do Pai. A figura de Cristo dá carne e sangue aos conceitos. É o próprio Deus que vem ao encontro da ovelha perdida, da humanidade sofredora e transviada. E assim se revela o que é o ponto fundamental de toda a Revelação do Novo Testamento: Deus é Amor (cf. Encíclica de Bento XVI, n.º 12). E o Amor de Deus fez-se carne. É aqui que reside a diferença entre a fé cristã e as outras religiões monoteístas ou não. Acreditamos num só Deus, como os Hebreus e os Muçulmanos. Mas o Deus cristão é amor em três Pessoas, a SS. Trindade. Hebreus e Muçulmanos, como outros crentes de outras religiões, têm fé num Deus transcendente. Mas estão longe de acreditar que Ele tenha encarnado. Aliás, temos de confessar que era muito difícil para um judeu admitir a Encarnação. É preciso ter-se vivido o itinerário espiritual de um S. Paulo, para se medir a enorme dificuldade que representa para um judeu ortodoxo o mistério da Encarnação… Se os companheiros de Jesus acabaram por acreditar que Ele era Deus e era o Filho de Deus, é porque Ele lho tinha dito com força suficiente para convencer cabeças duras e lho tinha provado, sobretudo depois da Ressurreição (O Deus de Jesus, pág. 18) Os cristãos afirmam com S. João: O Verbo era Deus. E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós. Por amor do homem, o Filho veio ao que era seu, para que os seus O recebessem. Esta lei da Encarnação deve inspirar toda a nossa pastoral. É uma atitude primordial do Pastor. E inspira o homem e a mulher de fé. Cristo, sendo rico, fez-se pobre. Sendo transcendente, desceu do seu trono de glória e veio ao seio do povo. Ressoam aos nossos ouvidos as palavras do Êxodo: Ouvi os gritos do meu povo e desci para o libertar. Precisamos de descer dos nossos palácios de interiores, dos tronos da nossa importância e ir ao encontro da ovelha perdida e regressar a cantar, para ir dizer aos vizinhos e amigos: “Encontrei a ovelha tresmalhada!” Não podemos remeter-nos ao templo e ao adro das igrejas. Passada a cristandade sociológica, torna-se necessário descer à rua e ir ao encontro dos homens onde eles estão, ir sobretudo à procura dos que gritam justiça ou sofrem, no segredo, as pobrezas deste tempo. Recordo as palavras de Bento XVI, quando ainda era apenas um teólogo de renome: Talvez tenhamos de nos despedir das ideias de uma Igreja de massas. Estamos possivelmente perante uma época diferente e nova da história. Nela o cristianismo voltará a estar sob o signo do grão de mostarda, em pequenos grupos, aparentemente sem importância, mas que vivem intensamente contra o Mal e que trazem o Bem para o mundo, que deixam Deus entrar… Existem (hoje) formas fortes de presença da fé que voltam a dar ânimo, dinamismo e alegria às pessoas… (O Sal da Terra, 1996). Meditemos e guardemos: é preciso despedir-nos de uma “Igreja de massas”; o cristianismo voltará a estar sob o signo do grão de mostarda; há grupos e formas fortes de presença da fé; é preciso descer à rua e ir ao encontro do homem vivo. De muitas maneiras falou Deus outrora aos nossos Pais pelos profetas; nestes últimos dias falou-nos pelo se Filho (Hebreus 1,1-2). É como se dissera : O que antigamente disse Deus pelos profetas a nossos Pais, nestes dias falou-nos pelo Filho, tudo de uma vez. Quem agora quisesse consultar a Deus, ouviria certamente esta resposta: Se já te falei todas as coisas na minha Palavra que é o meu Filho e não tenho outra, que te posso eu responder agora? Põe os olhos só n’Ele, porque n’Ele disse tudo. Este é o meu Filho muito amado: Escutai-O! Olha-O bem e não acharás nada a pedir-me nem desejarás revelações ou visões. Se quiseres que Eu te responda alguma palavra de consolo, olha para meu Filho. Se quiseres saber coisas ocultas, põe n’Ele os olhos. Segundo o meu Apóstolo, estão n’Ele todos os tesouros de sabedoria e ciência. (S. João da Cruz, Obras Completas, páginas 196 a 198) “Jesus” quer dizer: “Deus salva”. Foi o nome que o Anjo, vindo da parte de Deus, indicou a Maria para que o desse ao seu Menino. No Natal começa, de facto, a salvação dos homens. É bom e útil olhar bem este Salvador que aparece no meio de nós na figura de uma criança, vulnerável, frágil, desarmada. É fácil abafar a criança. Esta sociedade de consumo, de esbanjamento na festa dos presentes e de luminosas decorações de cidades, vilas e aldeias, sufoca a criança, com o que lhe dá e com o que lhe tira. Há coisas interessantes no Natal: poesia, certo verniz de generosidade, um ar de emoção. Mas é tudo passageiro. Bem cantam os poetas que “natal é quando um homem quer”. A dificuldade está em saber que “natal” querem os homens. O Deus Menino é sufocado, porque muitas das nossas atitudes o impedem de crescer dentro de nós e assim Ele fica criança toda a vida. O cristão tem de crescer com Jesus, em idade, sabedoria e graça, diante de Deus e diante dos homens. O cristão tem de ouvir a Palavra de Jesus adulto, a palavra que Ele nos deixou como alimento, na Escritura e na Eucaristia, porque aí a palavra transforma o Pão e o Vinho em alimento espiritual. Vem aí um período de escolha da vida das crianças por nascer. A vida é o dom mais precioso que temos e ninguém pode dispor da vida própria, muito menos da vida alheia. O Mandamento que vem de há muitos séculos diz: “Não matarás!” Vamos acolher o Menino Jesus em nossos corações e n’Ele amar todas as crianças, mesmo aquelas que não conhecem pai nem mãe. Estamos a regressar ao tempo dos “expostos”, dos meninos da Roda dos Mosteiros da Idade Média. E tanto mal se tem dito da Idade Média! A Maternidade de Maria começou com a Anunciação, efectivou-se no dia em que deu à luz o seu Filho primogénito e prolonga-se pelo tempo fora. As mães de hoje precisam de atenção, carinho e apoio em todas as situações. Mais do que no “dia mundial”, o dia da Mãe é quando ela dá à luz um filho, o acarinha e educa pela vida fora. Todas as “interrupções” naturais ou provocadas são actos “prematuros”, imaturos, antes do tempo…, são o fim de um processo que devia desaguar na vida. É dia de Natal. Dêmos às crianças o direito de nascer. Dêmos aos esposos o direito e o dever de fazerem surgir a vida. Dêmos ao Menino do Presépio o direito de entrar, com sua licença, no coração dos homens desta geração. Dêmos às crianças, jovens ou adultos, a possibilidade de crescerem em idade, sabedoria e graça diante de Deus e diante dos homens. E nós todos colaboremos no nascimento e crescimento de um mundo melhor, isto é, segundo coração de Deus. Hoje, o caminho de Belém está obstruído por detritos de orgulho, vaidade, egoísmo, indiferença e violência. Há que limpar o caminho que conduz a Belém. É Natal! Prepara o berço, ou seja, prepara o teu coração, porque lá quer nascer Jesus. (cf. Ângelo Comastri, Prepara o berço: É Natal, pág. 5-6) Catedral do Porto, 25 de Dezembro de 2006 D. João Miranda, Administrador Apostólico da Diocese do Porto