O serviço público são conteúdos concretos

Análise de Eduardo Cintra Torres

Uma vez mais, o país vive uma comoção em torno do serviço público de TV e rádio. Infelizmente, não é em torno do essencial: a comoção tende a concentrar-se na discussão sobre o operador e não sobre o próprio serviço público; quase todos dizem que ninguém sabe o que é ou que toda a gente sabe o que é — sem verdadeiramente se indicar qual o serviço público que o país precisa e pode ter.

Aqui deixo um breve contributo. Serviço público de TV e rádio é aquele que possa ser propiciado pelo Estado sem alternativa no resto da sociedade organizada. Deste modo, exclui-se todo os conteúdos apresentados por um operador de serviço público que sejam idênticos ou até concorrenciais com os que o mercado já ofereça.

Este princípio tão simples permite, a partir dele, pensar o serviço público, até em termos institucionais. O operador deve ser uma instituição motivada pela convicção de que oferecerá algo que é necessário à sociedade e mais ninguém tem condições ou interesse para produzir e apresentar; e motivada pela humildade de que os conteúdos não têm de conquistar todos ao mesmo tempo, mas influenciar todos pela sua existência, mesmo que não os vejam ou ouçam, pelo seu poder intrínseco.

Em termos práticos, e tendo em conta as circunstâncias institucionais, constitucionais, sociais e políticas em que nos encontramos, julgo que o modelo adequado ao serviço público de rádio e TV passaria pelos seguintes pontos:

– Transformação da RTP numa empresa ágil, eficaz, despartidarizada, sem influência dos órgãos políticos.

– Concentração do serviço público num único e obsessivo princípio: a criação de conteúdos de interesse público (o serviço público são conteúdos, não é uma empresa).

– Fim da publicidade, por contaminar os conteúdos e por fazer concorrência desleal com os privados (pagamos a RTP com os nossos impostos e ainda é preciso publicidade para estragar programas e acabar por piorar os programas dos privados?)

– Concentração dos conteúdos num único canal de TV, colocando o outro em pousio.

– Concentração dos conteúdos de rádio numa ou duas estações.

– Diminuição do número de canais da RTP em operadoras de TV paga (não temos de pagar duas vezes pelo serviço público; a TV paga não chega a todos os cidadãos).

– Concentração dos serviços internacionais num único canal que mostre o verdadeiro Portugal contemporâneo e que dignifique a língua, os conteúdos e o empreendedorismo português junto de todos os falantes de língua portuguesa.

– Limitar os recursos da RTP às receitas da taxa, dignificando este esforço dos cidadãos como únicos pagadores directos do serviço. Fim, portanto, das “Indemnizações compensatórias” e outras dotações estatais.

– Reestruturar a RTP, acabando com inúmeras direcções-gerais inúteis (resultado da partidarização), moralizando vencimentos exagerados.

 

Quanto aos conteúdos, é difícil expor um programa concreto sem cair num paternalismo em que não me reconheço. Mas os seus princípios orientadores seriam:

– Criação, desenvolvimento e acompanhamento da produção de conteúdos alternativos aos que o mercado privado já oferece.

– Reforço da programação infantil e juvenil.

– Regresso à abertura da antena à sociedade civil.

– Produção de ficção que marque, com valores estéticos e narrativos, e se possa ver no futuro e não, como agora, esquecer ao fim de cinco segundos.

– Consideração do conjunto de conteúdos não apenas como uma sequência de programas, mas como unidades individuais que os espectadores podem recuperar, através das boxes digitais ou através da internet.

– Concentração em conteúdos, factuais ou ficcionais, que, sem paternalismo ou dirigismo, fomentem a reflexão sobre temas actuais ou históricos, que contextualizem, que permitam aos espectadores formar as suas próprias ideias e aumentar os seus conhecimentos sobre as matérias.

– Desconsiderar conceitos como “programas elitistas” ou “programas populares”, dado que eles contaminam a qualidade final dos conteúdos. Elitistas ou populares, sérios ou de entretenimento, para dez mil ou para um milhão, todos os programas devem ser concretizados como ideais para serem vistos ou ouvidos por todos os cidadãos e devem basear-se em princípios éticos que nos permitam, enquanto cidadãos livres e interessados, melhorar a nossa condição humana.

Eduardo Cintra Torres
Professor Universitário
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia)

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