O Presépio Português

Antes da era cristã ocidental, as civilizações mais adiantadas (grega e romana) tinham como explicação para os problemas da existência espiritual da vida humana, as suas religiões, baseadas em diversos deuses que, segundo pensavam, presidiam aos destinos do mundo “segundo as especialidades” . Eram portanto politeístas, como o também o foram os egípcios, muito antes deles. Nesta ordem de ideias, dizem os especialistas em história comparada das religiões, o Natal cristão veio a preencher involuntariamente uma festa pagã denominada pelos romanos Natalis Solis invicti, isto é, o solstício de Inverno (Dezembro). Não pretendemos alargar muito o nosso discurso sobre a história comparada das religiões, todavia sempre poderemos dizer que os antigos europeus, uma vez cristianizados, acabaram por adoptar em toda a sua essência os várias festas cristãs… O que nos importa frisar é que foi S. Francisco de Assis, e os seus frades, quem iniciou em 1218, a partir dos seus Conventos na Provença (Arles e Brignoles) o culto da representação plástica do nascimento de Jesus Cristo, denominado Presépio. Foi desta região que o Presépio se espalhou depois por todos os países do sul da Europa, a partir do século XIV. A história da manufactura do Presépio em Portugal foi iniciada por dois italianos a que há a juntar algumas influências espanholas. Todavia, ao longo do tempo, a tradição nacional conseguiu libertar-se das influências estrangeiras atingindo um estilo próprio, marcado por um gosto pelo monumental, intensa expressividade das figuras, raro e alegre sentido da cor. Sabe-se que nos finais do século XV eram já muitos os barristas (artesãos que trabalhavam o barro) portugueses, porém, segundo os costumes aristocráticos da época, ocupavam os últimos graus na escala das artes e ofícios, não se lhes atribuindo qualquer talento acima do comum. O rei D. João II (cognominado príncipe perfeito), talvez tocado pela mensagem de paz e boa vontade entre os homens que o Presépio inspirava, solicitou a Lorenzo de Médicis (Itália) a vinda para a sua Corte do escultor de mármore, arquitecto e modelador em terracota, Contucci Sansovino. Chegado a Portugal em 1491, Sansovino contratou os melhores barristas de várias povoações do País, aperfeiçoou o seu talento nato e ensinou-lhes os “mistérios” da arte. Consideram hoje os especialistas que desta forma deverá ter nascido a primeira escola portuguesa de barristas e, com ela, a arte de moldar os Presépios que, embora menosprezados pelo público consumista de hoje, ainda perdura de Norte a Sul do território. Ao regressaram às suas oficinas, estes barristas populares do século XVI começaram a produzir, entre outras obras, figuras para os «Mistérios» encomendadas pelas igrejas paroquiais para exposição pública e, naturalmente, os seus próprios Presépios, a que a influência do meio social e a região de origem iam emprestando uma identificação característica. Outros artistas estrangeiros trouxeram ao País influências estéticas e lições técnicas que foram introduzidas paulatinamente na nossa arte de moldar o barro. O Presépio português alcançou generalizada difusão no século XVII. De facto, os artistas mais requintados e melhor cotados eram objecto de encomendas de Presépios para palácios de soberanos e grandes casas de nobres, com representação das figuras do nascimento de Jesus Cristo em cera e marfim de que se perdeu completamente a pista, facto este a que não deve ser estranho o terramoto de Lisboa em 1755… O grande e efectivo desenvolvimento do Presépio português deu-se no século XVIII, com a estadia em Portugal, a partir de 1741, do italiano Alessandro Giusti, contratado por D. João V, para embelezar o Mosteiro de Mafra. Assim nasceu uma autêntica escola de barristas em Mafra, tendo por mestre o italiano que, com o barro resistente e grãofino de Estremoz, matéria-prima de primeira qualidade (além do seu mármore branco!), por sua vez foi mestre de Joaquim Machado de Castro, artista português de raros dotes e seu natural continuador de extraordinária capacidade criativa, cujo exemplo do seu estilo é o Presépio da Sé Catedral de Lisboa (produzido em 1766). O Presépio português ganhou fama, popularizou-se e, de região para região, tomou a forma dos usos e costumes de cada uma das Províncias, pela mão de barristas de oficinas ainda famosas na 1ª metade do século XX em Évora, Estremoz, Barcelos, Mafra, etc. É na pequena indústria oleira que podemos encontrar as mais vivas manifestações de originalidade e catolicismo que inspira o Natal. Por tendências (diríamos congénitas) ancestrais está bem vincada nestes modestos artífices que domam o barro, guiados pela experiência secular, a índole inconsciente de estetas e criadores de beleza, através de figurinhas de argila, com o seu quê de fantasia ou o seu “tique” de patusco. Os barristas de Estremoz, possuídos de inebriante imaginação, procuram colorir as peças fabricadas para o Presépio de tal forma, que o produto final resulta num festim policromo alegre e cheio de frescura. As peças do Presépio de Estremoz, descurando modelos rígidos em cioso respeito pelas reproduções clássicas, libertam-se de regras e de preceitos estabelecidos, imprimindo assim às modelações certo burlesco efeito plástico inconfundível. O episódio do nascimento de Jesus Cristo, de enternecedora religiosidade, foi muito da predilecção dos grandes artistas de outrora que o legaram à posteridade. Com o rodar dos tempos, esta tradição terá passado para as singelas olarias populares de vilas e aldeias portuguesas. A vulgarização do Presépio, com os seus cenários rústicos, pedras musgosas, figurinhas da história religiosa e tipos do povo da região, agrupamentos e acessórios, chegou a ser um fenómeno geral, montado de Norte a Sul do País em cada lar, escola, freguesia, igreja paroquial. Entretanto, os imaginosos artesãos, foram experimentando outros materiais para recortar as figuras tradicionais de que se destacou no Alentejo, embora com alguma raridade, a cortiça. Tal é o exemplo do sr. Isidro Manuel Verdasca, antigo barbeiro na Azaruja, com as suas figuras de tal forma perfeitas e com um agudo sentido das proporções que se diria pequenas esculturas, rigorosamente à escala. A divulgação do Presépio devia tornar-se mais ampla, participativa, para projecção de alguma luz espiritual e amor ao próximo, no que respeita aos cristãos, ou de maior sentido de fraternidade e humanidade no que respeita aos não crentes, e ainda para enlevo amoroso do povo alentejano que, na veneração das suas ancestrais tradições, ainda sabe cantar ao Menino trovas risonhas como estas, cantadas no anos 40 do século XX, que igualam a condição do nascimento de Jesus Cristo à imagem e semelhança dum lar de trabalhador: «O Menino está dormindo Nas palhinhas despidinho! Os anjos lhe estão cantando: Puro amor, tão pobrezinho. De quem são os cuerinhos Que além estão no estendal? São do Menino Jesus Que nasceu no Natal. O meu Menino Jesus Chora, chora até mais não; Fizeram-lhe a cama curta Tem os pézinhos no chão. Ó meu Menino Jesus Quem vos pudera valer! Com sopinhas da panela Sem vossa Mãe saber. Ó meu Menino Jesus Tomai lá castanhas quentes: Abri a vossa boquinha Quero ver se tendes dentes.» O Natal, o Presépio montado num canto da sala de jantar pelas crianças da casa, recheado de figurinhas de barro colorido em volta da gruta da Natividade, compradas e coleccionadas anos após ano, a Missa do Galo (para os católicos), a consoada para todos, o Ano Novo, o Dia de Reis… que mundo de evocações vão envelhecendo connosco na companhia dos que hoje são crianças e jovens, e ainda dos que o futuro há-de trazer a ocupar o sítio que lhes havemos de deixar vazio… Reviver estas festas, estes hábitos e costumeiras tradicionais, cimentadas através de gerações e bafejadas de poesia uns, de Fé e ternura outros, é acordar neste nosso Alentejo, suado por séculos de trabalho e fraternidade, o que a alma transtagana tem de nacional e, especialmente, de mais enternecedor, o seu ancestral cristianismo. A festa de Natal, empolgante de amor e poesia evocadora, tem sido deturpada ao longo das últimas décadas. O fluxo constante da vida de estreito materialismo e consumismo desenfreado, levaram os portugueses a trocar as usanças nacionais e regionais pelas imitações estrangeiras. O lento desaparecimento de tudo o que nos individualizava (a nossa maneira de ser e estar no mundo), é um dos mais aterradores sintomas da desnacionalização dos nossos costumes, da perda consciente do nosso carácter próprio, da nossa fisionomia e feição especiais, através da sofisticada máquina de interesses económicos que nos ultrapassa e envolve na mediocridade da globalização. Perdemos quase por completo o espírito crítico e, petulantemente, aceitamos tudo o que vem de fora: modas, distracções, produtos, hábitos e formas de vida… Tudo, mas tudo mesmo, sem distinção nem selecção, é maravilhoso e surpreendente, desde que venha do estrangeiro. E assim, até a festa do Natal, de um idealismo amorável, viu o seu Presépio ser substituído pelo pinheiro (a árvore de Natal), imitando o abeto da tradição do Norte da Europa, que se carrega de brinquedos mais ou menos caros, despertando na criança ambições e interesses mesquinhos, sem idealismo algum e que não fala, como o Presépio, à sensibilidade dos corações infantis. E em vez do cenário do episódio da Natividade, simulado em figurinhas de barro policromado que “falam” directamente aos sentidos dos mais pequeninos, aceitamos introduzir a tradição nórdica do denominado “pai natal”, velha figura de botifarras que a multinacional norte-americana “coca-cola” popularizou pelo mundo há muitas décadas atrás, vestindo-o de vermelho no decurso de uma campanha de “marketing”… Vem isto para dizer que é chegada a altura de devolvermos o Natal português e cristão às nossas crianças e, porque não, a nós mesmos adultos, se queremos de forma inconfundível recordar nos nossos filhos e crianças que nos são próximas a nossa própria infância, aquele tempo enternecedor dos sonhos e da inocência, onde pairavam laços invisíveis de simpatia e fraternidade entre os espíritos. Joaquim Palminha Silva, In «A Defesa»

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