O povo português está a abdicar de saber quem é!

D. José Policarpo analisa as transformações sociais e eclesiais e a oportunidade que constitui a visita de Bento XVI a Portugal.

Agência Ecclesia – Que oportunidade constitui esta visita de Bento XVI a Portugal?

D. José da Cruz Policarpo – É a oportunidade de estar com o Papa, o que não é frequente! É uma novidade dos últimos 50 anos: as igrejas de todo o Mundo podem estar fisicamente com o Santo Padre. E isso é sempre importante porque o Papa é sempre o Papa, independentemente da pessoa.

Para a Igreja o Papa é um sacramento, desenvolve um ministério único, o ministério de Pedro, é o garante a unidade. E a unidade não é só estarmos bem uns com os outros. Trata-se de garantir a unidade na fé, por exemplo, e que hoje é um problema difícil em virtude da variedade de opinião, do fenómeno – que já existe desde o início da Igreja mas que hoje é mais abundante – das pessoas usarem o seu direito de pensar a fé. Esta unidade da fé é absolutamente fundamental. E este Papa, além do ministério que é o dele, a graça própria do ministério de Pedro, é um homem muito preparado para isto, pela sua formação teológica e pelo estatuto que tem de grande teólogo, talvez dos maiores de todos os tempos.

AE – Inscreve-se nessa construção da unidade o diálogo com os anglicanos?

CP – O problema ecuménico é um problema velho na Igreja, uma das chagas da Igreja. E  mostra que esta unidade não é fácil. Aliás, a Igreja sentiu desde o princípio esse desafio, que é também um desafio da Humanidade. Hoje, com a globalização e com o mundo contemporâneo, é um desafio mais premente: fazer a unidade apesar das diferenças (é mais fácil fazer unidade na uniformidade, serem todos iguais, pensarem todos da mesma maneira, comportarem-se todos da mesma maneira).

A Igreja sempre aceitou este desafio! Infelizmente ao longo dos séculos não foi fácil e não foi possível manter essa unidade na diferença. As diferenças autonomizaram-se, aconteceram separações e cismas. Esse é certamente um dos desafios que se põem à Igreja desde que as separações começaram a acontecer. E começaram a acontecer muito cedo.

Há uma coisa que, ao mesmo tempo, nos faz pensar e é uma interpelação para a Igreja Católica: verificar que a unidade entre essas diferenças é mais difícil ainda do que deles com a Igreja Católica. A Igreja Católica, o Papa concretamente, continua a ser o grande pólo, a grande hipótese! Todos dialogam com o Papa. Mas não dialogam todos uns com os outros!

AE – O ministério do Sucessor de Pedro está também na origem de muitas separações?

JCP – As grandes separações dentro da Igreja tiveram sempre na sua origem a dificuldade de aceitar o ministério de Pedro. A primeira grande separação foi a de Constantinopla, no século XI, e é sempre a dificuldade de aceitar que a última palavra é a de Pedro, do sucessor de Pedro.

Hoje, penso que toda a gente olha para o Papa com simpatia.

AE – O Papa João Paulo II lançou o debate acerca do ministério do sucessor de Pedro. Esse é um debate que está em aberto na Igreja?

JCP – Não é propriamente um debate.

O Papa João Paulo II foi sensível a sugestões que surgiam no âmago do processo ecuménico, sobretudo nas Igrejas Ortodoxas, que estariam dispostas a uma certa unidade global se o Papa não fosse o que é.

Foi por acaso na missa do dia em que fui cardeal que João Paulo II lançou esse desafio: pediu-nos que o ajudássemos e reflectir em novas formas de exercício do ministério de Pedro. Mas depois terminou a frase dizendo: “mas como é que podemos renunciar a mil anos de exercício indiscutível do ministério de Pedro?”

É evidente que a Igreja Católica não pode renunciar ao ministério de Pedro como a última palavra decisiva em questões de fé, de compreensão do que é a Igreja. Não creio que seja uma certeza que está em debate. A Igreja Católica está aberta a formas novas desse exercício. Até em comunhão com os outros irmãos, por exemplo as grandes igrejas ortodoxas.

Já surgiu uma sugestão, e eu próprio também a apoio: que se realizasse uma espécie de sínodo entre os grandes chefes das Igrejas para que as grandes questões fossem vistas em conjunto. Mas desde que o Papa seja o Papa!

Bento XVI pela esperança

AE – O Papa vem a Portugal numa altura em que a sociedade está a atravessar uma crise económica e financeira que poderá potenciar um clima de contestação como já existe na Grécia. Que sinais de esperança espera que a viagem de Bento XVI possa trazer a Portugal?

JCP – Na medida que as experiências espirituais fortes existam elas têm influência na vivência das dificuldades que a sociedade atravessa.

Nesse sentido, não só a vinda do Papa mas uma seriedade na vivência da fé.

É um facto que o sofrimento torna as pessoas mais sensíveis à dimensão espiritual. Oxalá Portugal e a Europa possam perceber isso: que as dificuldades nos abrem, nos façam fazem perceber que “nem só de pão vive o Homem”, como diz o Evangelho, que há outras dimensões que são mais profundamente humanas que as materiais, que nos dão força, luz e resistência para vencer as dificuldades.

De resto os dois fenómenos não têm necessariamente convergências um com o outro. O Papa vem a um país que está com algumas dificuldades, já foi a outro que estava com maiores. A Igreja tem aí uma palavra de calma, de esperança e de iluminação através da sua Doutrina Social.

AE – Que diferenças se descobrem na sociedade de hoje em relação àquela visitada pelo Papa João Paulo II?

JCP – Não encontro assim tantas diferenças… As diferenças que existem decorrem da evolução da sociedade e da cultura.

Do ponto de vista das questões sociais e políticas há diferenças: entramos na zona Euro, adoptamos parâmetros e modelos de bem-estar que não estavam acessíveis no ritmo normal ao crescimento de Portugal.

O acesso a determinados patamares de bem-estar tem duas características: por um lado dificilmente são ao mesmo tempo para toda a gente o que cria clivagens na sociedade; por outro lado, cria necessidades e parâmetros de “apetite” que, se não são satisfeitos, criam muito mal-estar.

O que nós hoje estamos a sofrer são as doenças próprias de uma sociedade desenvolvida. Nesse aspecto sim: estamos num outro patamar de progresso, mas também de problemas, diferente do que estávamos em 1982, a primeira vez que o Papa veio a Portugal. É bom que o povo português tenha consciência: o que estamos a viver são as consequências e, de certo modo, as frustrações de um sistema em que estamos metidos e que também tem as suas vantagens.

O que há de novo hoje em relação a 1982 e a 1991, quando Santo Padre veio a segunda vez, é o fenómeno da globalização. Nós somos muito mais interdependentes. A maioria das pessoas não o sente, mas isso tem uma consequência real na formação de opinião, na maneira como as pessoas reagem aos problemas…

O Santo Padre pode ajudar-nos a termos calma e serenidade porque, desde que o povo português tenha consciência na verdade dos problemas reais e dos caminhos necessários para os superar, eu não acredito que o povo português não se una para os resolver. Estamos num patamar já muito avançado da civilização. Quando ouço falar em todas crises, faz-me impressão que as pessoas não digam, ao mesmo tempo, que estamos entre os 21 países mais desenvolvidos do Mundo!

Na época de globalização, não podemos ver os nossos problemas a olhar para o nosso umbigo, temos que os situar no conjunto da Humanidade em que estamos inseridos e – repito a ideia – desde que os problemas sejam equacionados com objectividade e com verdade e o povo português assuma que as soluções apontadas são necessárias, eu não acredito que o povo português que, ao longo da sua história deu tantas provas de ser capaz de lutar contra as adversidades, que não o faça.

Eu penso que estas crises não só superáveis como provocam o crescimento e o desenvolvimento.

Diminuímos o número de cristãos que andam a fazer de conta

AE – E a Igreja que hoje acolhe Bento XVI é uma Igreja muito diferente da que acolheu João Paulo II tendo em conta todos esses desenvolvimentos?

CP – É a mesma. A Igreja é um fenómeno que vive perfeitamente inserida no tempo, mas tem uma capacidade de resistência ao tempo. Porque tem uma mensagem de eternidade e acredita na vida eterna, quando muita gente não acredita. O que não é um pormenor: marca profundamente a maneira de estar no Mundo e de viver esta história em que nós estamos inseridos.

Não é uma Igreja diferente. Mesmo numericamente. É uma Igreja que sente hoje, talvez com mais acuidade, alguns desafios que já nessa altura se punham. É uma Igreja que ou se afirma pela autenticidade da sua fé ou tem pouca influência no Mundo em que está inserida. Diminuímos o número de cristãos que andam a fazer de conta! Temos de ser cristãos a sério.

É o desafio duma radicalidade e autenticidade, que sempre existiu. Encontramo-lo em todas as páginas do Evangelho e agora na nossa Igreja, no princípio do século XXI, com o fenómeno de uma descristianização e de uma secularização muito intensa. Nós não estamos sozinhos! Vivemos numa sociedade onde existem outras forças que querem marcar a sua presença, porventura dominadora em termos de compreensão do Homem, de compreensão da vida e da História. É a sociedade plural.

Mas não ficamos de braços cruzados. Queremos marcar a nossa visão do Homem e da vida numa sociedade onde há outras visões do Homem e da vida. Esses desafios são porventura mais acutilantes hoje do que eram há 30 anos.

AE – O Patriarcado de Lisboa passou por um projecto de evangelização, o ICNE (Congresso Internacional para a Nova Evangelização). Introduziu diferenças na vida da Igreja e na convicção dos católicos?

JCP – Já nessa altura do ICNE avisei os entusiastas da minha posição: que não estivessem à espera de resultados imediatos e visíveis.

Aconteceu uma sensibilidade nova à universalidade. Pela primeira vez a diocese de Lisboa sentiu-se irmã e em igualdade de circunstâncias com Viena de Áustria, com Paris, com Bruxelas, com Budapeste… Isso foi importante!

Há um facto, que nunca mais esquecerei: um grupo de congressistas de Lisboa foi fiel e estive em todos os congressos. Isso foi uma experiência nova para a Igreja de Lisboa.

Por outro lado, permanece a intuição de que há uma atenção particular às grandes cidades. Ser Igreja numa grande cidade não é a mesma coisa de uma diocese rural. Essa sensibilidade existiu. Dá passos curtos. Mas nós próprios, neste momento, estamos com processos de reflexão pastoral que nos levam a admitir que, numa grande cidade, há ritmos e esquemas que não são os mesmos das Caldas da Rainha ou de Alcobaça.

Depois houve uma maior sensibilidade dada à missão e isso levou a que haja, ainda hoje, vigararias que organizam experiências missionárias. E esta sensibilidade à missão cresceu e muitos milhares de pessoas, todos os anos, jovens e menos jovens e até casais, fazem experiências missionárias, quer cá dentro quer lá fora.

Há ainda intuições de fundo, que quando aderimos ao programa já tínhamos, como a revisão do que é ser cristãos, a formação dos cristãos e a participação dos leigos. Uma grande conquista do ICNE é uma consciência mais aguda de que a missão da Igreja é obra de todos e não só dos bispos e padres.

Isto já é muito. Mas não se contabiliza. É uma alma que se vai renovando.

Igreja em renovação

AE – “É preciso mudar o estilo de organização da comunidade eclesial portuguesa e a mentalidade dos seus membros para se ter uma Igreja ao ritmo do Concílio Vaticano II”. São palavras do Papa Bento XVI dirigidas ao episcopado português na última visita Ad Limina (em 2007). Que consequências teve este desafio?

JCP – Descobrimos posteriormente que o desafio que o Santo Padre nos lançou tinha sido inspirado num outro discurso a uma outra conferência episcopal. Isso acontece!

O Santo Padre disse-o e nós levamo-lo a sério. Mas ele apareceu-nos, na altura, um pouco desajustado em relação aos nossos relatórios (antes da visita Ad Limina nós apresentámos um longo relatório dos 5 anos da diocese. O meu tinha 160 páginas)

Ainda em Roma nós fizemos uma reunião onde eu próprio, a pedido do Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, lancei um repto de caminhos de renovação. A Conferência Episcopal assumiu-o e está em curso, num ritmo que tem a sua lentidão. Neste momento encontra-se numa fase muito interessante: perscrutar, levar as igrejas todas a pensar em si mesmas e ouvir o mundo para perceber novos caminhos da missão. Esta é uma grande resposta. Se todas as Conferências Episcopais dessem uma resposta destas aos discursos do Papa no fim de visita Ad Limina seria muito bom.

 AE – Numa recente entrevista à ECCLESIA, o Ministro da Presidência disse que o Papa viria a Portugal num momento em que há um bom ambiente nas relações entre o Estado e a Igreja. Concorda com esta afirmação?

JCP – Nós não queremos, seja com que governo for, um ambiente de conflito porque não é essa a maneira da Igreja estar em diálogo com a sociedade. Que não se confunda isso com uma identificação com os critérios de cada governo.

A Igreja, numa sociedade democrática, tem obrigação – no meu caso quero também – de dialogar respeitosamente, para bem da sociedade, com todos os governos legitimamente empossados.

Eu sou partidário e estou profundamente convencido que uma conversa franca entre nós e os responsáveis públicos sobre os problemas que se põem à Nação na óptica da Igreja é mais fecundas do que qualquer manifestação.

Essa é a política que nós temos seguido e que, devo dizer, temos sido correspondidos pelos governos, independentemente do partido.

Quando começámos a revisão da concordata – como Patriarca de Lisboa, não fiz parte da comissão negocial da Santa Sé, mas fui sempre ouvido – lutei muito (e o Governo de então partilhou da minha perspectiva) para que não se tratasse de fazer retoques na concordata. Em causa estava um espírito novo. Evitámos a expressão “Nova Concordata” porque sabíamos que ia contra os princípios do Cardeal Secretário de Estado de então. Mas, no fundo, era uma nova versão.

Porquê nova: porque o princípio que a inspirava era o da cooperação. Cada um na sua diferença, a laicidade do Estado e a independência da Igreja num estado laico, mas cada um na sua missão específica. O princípio da cooperação para o bem da sociedade. Este princípio inspira a concordata do primeiro ao último número e exprime bem o que deve ser.

É evidente que podem existir focos que parecem conflitos, mas nós não queremos conflitos. Conhecemos as diferenças e dizemos francamente a Doutrina da Igreja quando as diferenças são mais importantes e notórias.

Veto político: a última afirmação presidencial

AE – Há um processo legislativo prestes a terminar: o casamento de pessoas do mesmo sexo. O que desejaria que o Presidente da República fizesse neste momento?

JCP – Não tenho coragem de lhe dar um conselho até porque constitucionalmente a margem dele não é muito grande. Tenho muita pena que a pessoa do Prof. Aníbal Cavaco Silva, de quem sou amigo há muito tempo, tenha de assinar uma lei dessas.

Só vejo o veto político como uma forma de ele marcar a sua posição pessoal.

Eu costumo dizer que há dimensões na Europa de hoje nas quais “temos de beber o cálice até ao fim”. Passa de país para país, com grande lobby internacional.

É uma questão grave, não em si mesma. É uma questão antropológica de compreensão da pessoa humana, em si mesma e na família. É uma questão de civilização. E a história mostra que quando as comunidades se afastaram da sã cultura da pessoa humana não foram longe.

Eu diria que é um “pormenor” no conjunto da vida da Nação, mas com particular significado para aquilo que nós somos como povo, para o espírito que nos anima, para aquilo que pensamos de nós mesmos.

Um povo, como uma pessoa, nunca pode abdicar de ter uma ideia de si mesmo: quem és tu? O que andas aqui a fazer? O que pensas da vida?

Um povo não pode abdicar disso. Sinto que o povo português está a abdicar de saber quem é!

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