O Papa no Sameiro

Uma aurora, entre duas tempestades 1. Foi há vinte e cinco anos, completados hoje: o servo de Deus Papa João Paulo II visitou Braga, sobretudo o santuário mariano do Sameiro. Tratou-se de um acontecimento sem par, na história mais que bimilenária da Cidade e de quase igual idade da Arquidiocese bracarense. Não vou comentar o acontecimento e suas repercussões político-religiosas. Ele está palpitante na memória dos que o viveram e também de quantos se debruçaram sobre o grande evento. Julguei interessante fixar- me nos atribulados preparativos e alguns reflexos menos conhecidos. Em 10 de Fevereiro desse ano de 1982, fui informado oficialmente de que o Papa visitaria Portugal no mês de Maio, confirmando os boatos e desejos que pairavam no ar e nos corações. Apontavam-se, como possíveis pontos da visita, Fátima (13), Sameiro (14), Lisboa (15) e eventualmente Vila Viçosa. Mas foi-me imposto silêncio absoluto, até que o Vaticano desse publicidade ao anúncio e respectivo programa. Falava-se então numa visita particular de João Paulo II, como peregrino agradecido à Mãe de Deus pela protecção recebida no atentado sacrílego, em 13 de Maio do ano anterior, na Praça de São Pedro. Só mais tarde, havia de classificar- se como Visita Apostólica e de Estado, a convite da Conferência Episcopal e Presidente da República. No dia 16 daquele mês, efectuou-se a primeira reunião ante-preparatória e muito discreta dos Bispos mais directamente implicados na visita, ou sejam, o de Leiria e os três Metropolitas. 2. Em 7 de Março, o Papa fez o anúncio público na alocução dominical e, logo no dia seguinte, reuni com o Conselho episcopal para delinearmos o programa em Braga e distribuição de trabalhos. Só mais tarde a vinda a Braga se fixou em 15. A 12, houve uma reunião no Sameiro com o Núncio Apostólico, o monsenhor Paulo Marcinkus – responsável pela segurança do Papa – e alguns Bispos. Dez dias depois, houve uma reunião em Fátima de toda a Conferência Episcopal sobre o assunto, mas ainda apenas com o programa em esboço. Com data de 31 de Março, foi publicada uma extensa Nota oficiosa congratulatória, assinada por mim e pelo Bispo Auxiliar D. Joaquim Gonçalves, sobre a visita a Braga, já com algumas considerações e decisões respeitantes ao auspicioso acontecimento. Nomearam- se as cinco Comissões preparatórias, com os respectivos presidentes: Acolhimento e protocolo – Vigário geral Cónego Doutor Silva Marques; Dinamização e meios – Vigário episcopal do clero Pe. Dr. Jorge Ortiga; Liturgia e catequese – Vigário episcopal da educação Cón. Dr. Oliveira Fernandes; Comunicação social – Vigário episcopal dos leigos Pe. Doutor Sousa e Silva; Comissão coordenadora – Bispo Auxiliar D. Joaquim Gonçalves. Terminava a Nota: «Com a oração e o trabalho de todos, espera-se que o próximo dia 15 de Maio fique como um marco miliário na história desta Igreja que peregrina na região bracarense, há quase dois mil anos» (Vide “Acção Católica”, 1982, p. 175-177). No dia 2 de Abril, os três Arcebispos metropolitas e o Bispo de Aveiro – então Presidente da CEP – deslocaram- se a Roma, convidados pelo Papa. Conversámos com Monsenhor Marcinkus no Palácio Pontifício do Vaticano e fomos recebidos pelo Santo Padre que nos obsequiou com o almoço. Foi um encontro muito agradável, procurando o Papa informar-se bem, numa longa conversa em português, por ele assim exigida, para se treinar… explicou. Prosseguiram as reuniões preparatórias, a nível episcopal. Destaco uma em Lisboa, no Patriarcado (em 15 de Abril) e outra em Fátima (no dia 20). Nesta, Monsenhor Marcinkus, que estava presente, ousou pôr em dúvida a vinda a Braga, por ficar apertada entre as visitas a Coimbra e ao Porto, ambas fixadas a 15, dia do regresso a Roma. Reagi duramente, afirmando mesmo: «Se não vier a Braga, não irá a nenhum outro local, além de Fátima e Lisboa». Os Bispos presentes concordaram inteiramente na necessidade de incluir Braga, embora lutando com a penúria de tempo. No dia 27, houve uma reunião no Sameiro com os monsenhores John Magee e Bacquè e o padre Azevedo Oliveira, para os pormenores da Liturgia papal. A 10 de Maio, reuni com o Conselho episcopal para apreciar e seleccionar as numerosas e significativas ofertas destinadas ao Papa. 3. Entretanto, iniciaram-se os arranjos para a Missa ao ar livre, que um temporal no dia 11 estragou, havendo que recomeçar. Esse mesmo mau tempo prejudicou a estadia em Braga, no dia 15, Sábado. A viagem desde Coimbra, planeada para um helicóptero, teve de ser efectuada de comboio, à última hora, o que prejudicou o programa acordado, pois perderam-se mais de duas horas no trajecto. Mas conseguiu-se efectuar o essencial. A visita, embora muito comprimida, logrou o objectivo primordial, com uma Celebração eucarística muito solene e a homilia sobre “A família, comunidade insubstituível”. Esta foi um eco muito oportuno da Constituição Apostólica “Familiaris consortio”, por ele publicada meio ano antes (22.11.1981). Três anos mais tarde, em 23 de Março de 1985, veio ao Sameiro o Cardeal Casaroli, Secretário de Estado do Vaticano, presidir à ordenação episcopal de D. Manuel Monteiro e Castro, actual úncio Apostólico em Madrid. Numa longa conversa sobre a visita do Papa, em que participara, fiz uma breve referência às dificuldades e mesmo indelicadezas razidas por Monsenhor Marcinkus, entretanto exonerado dos altos argos que desempenhava no Vaticano – e regressado aos EUA, donde era natural e onde faleceu há pouco – por complicações urgidas entre um Banco italiano e o da Santa Sé (IOR), de que era o alto responsável. «Já recebeu a paga…» – rematou ele, com alguma ironia. Fiquei a saber que esta não é vedada aos Cardeais. Naturalmente só ao Papa… ou talvez nem a ele! 4. Em 19 de Maio de 1982, recebi um gentil telegrama de João Paulo II, sobre a recepção o Sameiro: congratulava-se, agradecia e abençoava. Um ano depois, ergueram-se em Braga dois monumentos comemorativos, a assinalar a visita: um no Sameiro, ao fundo da imponente escadaria, promovido pela Arquidiocese; outro em plena cidade, na Avenida Central, por decisão da Câmara Municipal. Foi ena esta dispersão de forças dinheiro, mas a culpa não coube àquela. Acresceu recentemente, em certo sentido, o amplo painel, por detrás do altar da Cripta. Muita gente trabalhou dedicadamente na preparação e execução do programa papal. No fim, ocorreram alguns melindres e zangas: todos queriam aproximar-se do Papa e muitos consideravam-se com mais direito. Era impossível satisfazer todos os anseios: pela própria natureza do evento, por limitações impostas pela segurança do Vaticano e pela estreiteza de tempo, reduzido de cinco para três horas, com pesar de todos nós. Mas, apesar das contingências e limitações, tudo decorreu bastante bem. Os aborrecimentos e zangas foram esquecendo; e ficou, para a História, a lembrança de um contecimento sem par, nos Fastos da Igreja Bracarense. Eurico Nogueira Arcebispo Emérito

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top