Tendo como pano de fundo a Feira do Livro de Lisboa, que decorre até 16 de junho, conversamos com o padre José Carlos Nunes, diretor-geral de uma das principais editoras católicas – a Paulus -, sobre livros, as dificuldades da edição, os desafios e apostas de quem trabalha nesta área.
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Fotos: Joana Gonçalves (Renascença)
Participar numa Feira do Livro é muito importante para uma editora como esta, que está ao serviço do Evangelho e da cultura cristã?
É importante, é fundamental. Cada vez mais, a Feira do Livro de Lisboa torna-se um evento cultural, ligado aos livros, do maior relevo. Não falo tanto numa perspetiva de vendas, comercial, mas numa perspetiva de presença, uma questão de imagem, também. Nós já participamos na Feiro da Livro há muitos anos…
Há quantos?
Esta é a 89ª edição, nós já participamos há pelo menos 65 anos, segundo os nossos registos. A nossa presença tem sido sempre esta: no meio da cultura portuguesa, mostrar que também há uma cultura religiosa?
Faz diferença em termos de exposição pública, dar-se a conhecer a mais gente?
Sim, sim. Passa muita gente pela Feira do Livro, cada vez mais com variadas razões e motivos. Porém, a nossa presença é uma presença no meio da cultura, no meio da cidade, no meio de tantas outras editoras e no meio de tantos outros temas. É bom que esteja presente a temática religiosa, e não só, porque a Paulus Editora tem vindo cada vez mais a apostar numa outra linha editorial, que tem a ver com o diálogo, com os não-crentes, sobretudo um diálogo de uma espiritualidade um pouco mais alargada.
Ao longo do ano promovem vários lançamentos e apresentações de livros, iniciativas próprias do mundo editorial. É importante usar as mesmas armas? Conseguem chegar a mais público?
É cada vez mais fundamental. Aliás, nós nascemos precisamente desta intuição do nosso fundador, isto é, devemos combater o mal, usando as mesmas armas, mas para o bem. Combater, obviamente, em sentido figurado, no sentido de que se a mensagem é boa, todos os meios utilizados devem ser excelentes, para poder ajudar a veicular esta mesma mensagem, que é uma mensagem de salvação, que traz felicidade às pessoas, que ajuda as pessoas a encontrar a sua realização, na própria vida. Neste sentido, procuramos adequar-nos aos vários públicos, a partir da necessidade de os conhecer.
Há preconceito, da parte de outras editoras, em relação às editoras assumidamente católicas?
Sim, por vezes associam as editoras católicas a um tipo de literatura mais devocional, a um nicho de mercado. Coisas mais ligadas à Igreja que não lhes interessam. Este é um caminho que temos feito, através de coleções novas, de novas apostas, não só numa perspetiva de conteúdos, mas também numa perspetiva de divulgação. Por isso, nos últimos anos estamos apostados em não publicar apenas as obras, mas associar eventos a essas obras; o nosso departamento de feiras e eventos tem tido um crescimento muito grande, no que diz respeito à participação noutras feiras e em eventos que fazemos, associados ao próprio livro.
Hoje não basta editar um livro, colocá-lo numa prateleira ou em exposição numa livraria. Não é suficiente, porque saem tantos livros por dia, tantos livros por mês, por ano, que não há público para ler todos estes livros. Então, sentimos necessidade de criar eventos à volta das obras: workshops, conferências, debates de ideias, diálogos com o autor, com os mais variados meios.
Fala-se muito da crise do livro, mas a Paulus, como outras editoras católicas (Paulinas, Princípia, Lucerna, ou Apostolado da Oração, dos Jesuítas) têm um ritmo de edições considerável… há público para tantos livros relacionado com a temática da fé?
Esse é o nosso desafio, procurar o público, porque ele existe. Cada vez mais, o público não vem até nós, nós é que temos de ir ao seu encontro. Esta é a nossa estratégia principal, aliás, passa pela nossa forma pastoral de estar e de existir, na Igreja e na sociedade: não ficamos à espera que venham ao nosso encontro, apesar de termos livrarias próprias, em Portugal e não só. Nós vamos ter com o público, com as mais variadas linguagens, os mais variados meios, que ajudam nesta ótica pastoral.
Há público para os mais variados, até mesmo ligados à espiritualidade. Porque a espiritualidade não se restringe a uma proposta de vida de fé. A espiritualidade tem um sentido mais alargado, tem a ver também com o bem-estar, a forma de nos relacionarmos com os outros e com Deus. A espiritualidade tem a ver, num sentido lato, com toda a existência humana, com toda a experiência humana enquanto tal.
É importante que estas editoras promovam e alarguem o debate, a reflexão teológica em Portugal?
É fundamental. Se nós queremos uma Igreja cada vez mais consciente da sua identidade, que mude a realidade à sua volta para melhor – porque, para pior, é a coisa mais fácil -, a qualidade da nossa fé ajuda à qualidade da nossa vida. No fundo, a qualidade da nossa vida depende da qualidade da nossa fé, porque uma coisa e a outra estão interligadas. É neste sentido que as propostas de leitura que nós fazemos, através das nossas obras, são propostas alargadas, tendo em conta vários públicos.
O que publicam é muito variado… dos textos mais eruditos, investigações, até autores de literatura infantil… privilegiam-se os temas relacionados com a fé e a religião, ou procuram-se diversificar as áreas e os autores?
Uma coisa e outras. Há uma imagem muito bela de São Paulo, nas suas cartas, que nos acompanha muito nos nossos projetos editoriais: a certo momento, diz ‘não vos dei outro alimento mais sólido, porque vós sois ainda crianças e tive de dar-vos leite materno’. Portanto, nós procuramos dar leite materno para aqueles que são mais jovens na fé e procuramos dar alimento mais sólido aos que são mais adultos e conseguem digerir outro tipo de alimento. Nós procuramos ir ao encontro das diversas necessidades que cada um tem, para poder crescer na fé, porque nós acreditamos numa fé madura, não é algo mágico que eu recebo, podendo viver de rendimentos; a fé tem de ser cultivada, dia após dia, tem de ser alimentada, tem de ser cuidada.
A nossa editora, a partir do Jubileu da Misericórdia, sobretudo quando o Papa insistiu muito nas Obras de Misericórdia Espirituais, percebemos que o nosso caminho passa muito por aí: ajudar os ignorantes a conhecer melhor as realidades da fé e da vida humana; corrigir os que erram. Por aqui passa a nossa missão, também, a nível editorial.
Essa perspetiva católica sobre o ser humano, o mundo, a vida, tem chegado a um público não-católico?
Sim. Por exemplo, nós temos uma coleção que se chama ‘Na primeira pessoa’, que tem sido um teste muito interessante, na nossa linha editorial. Pretende dar voz a personalidades públicas e, através da sua vida, a um conjunto de valores que podem servir de estímulo aos outros.
Nessa coleção publicamos o livro ‘O presidente dos afetos’, a propósito dos 70 anos do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
Foi um piscar de olhos à área política…
Não, foi sobretudo uma leitura, a partir da solidariedade, da sensibilidade do presidente da República para com os mais desfavorecidos. O objetivo era ajudar a perceber como, efetivamente, a política também é feita de afetos, mas não são os afetos que fazem a política, enquanto tal; é algo que já existia, antes, e foi isso que se pretendeu com essa obra. Isto é, perceber se o presidente da República sempre foi assim, afetuoso, ou se isso só aconteceu depois de entrar na política. A jornalista Cláudia Sebastião foi investigar e concluímos que sempre foi afetuoso. A questão do afeto como uma caraterística humana, mas também religiosa, está presente na vida de Marcelo Rebelo de Sousa.
Mais recentemente tivemos também o livro da Aura Miguel, ‘Aura Miguel – Convida’, precisamente a partir de um programa na Rádio Renascença, com personalidades tão diferentes, mas todas elas com um cunho tão humano, com uma mensagem humana, com valores que nos unem. Afinal de contas, os Dez Mandamentos estão inscritos no coração de todo o ser humano, não são apenas uma questão moral, são uma questão ética, da sociedade.
As obras são projetadas com uma noção da procura que podem ter?
Sim. Nós temos análises de mercado, a partir de outras empresas, e também fazemos as nossas próprias análises, partindo do nosso público: quem frequenta as nossas livrarias, quem são os assinantes das nossas revistas e, ao mesmo tempo, os nossos parceiros na divulgação das obras. Aliás, a parte comercial é um fator muito importante, na Paulus Editora: não falamos apenas de conteúdos, mas também de parcerias, com livrarias generalistas.
Os livros da Paulus encontram-se em qualquer livraria, portanto, há um espaço para eles. Isso significa que reconhecem qualidade e interesse para o próprio público, porque nós sabemos que as livrarias, hoje, têm um espaço limitado. Livros que não se vendem, não têm espaço nas livrarias, há uma rotatividade muito maior. Como os livros da Paulus estão muito presentes – nós não pagamos por isso, devo dizer -, até chegam ao Top10, pela qualidade do conteúdo e, sobretudo, pelo interesse do público, enquanto tal.
Vemos como os livros de autoajuda são procurados por muita gente, que tem sede de espiritualidade… há quem confunda livros de meditação cristã com esta “autoajuda”? Fazem-vos concorrência?
Responderia com alguma ironia: as pessoas deixaram de se confessar e passaram a ir ao psicólogo. É um pouco isso. É claro que um não substitui o outro, a interdisciplinaridade nestas áreas é fundamental. Porém, também há muita confusão em relação àquilo que é a meditação ou ao que são novas filosofias, que muitas vezes vêm ocupar espaços na vida das pessoas, quer por moda ou por necessidade inconsciente dessa mesma realidade. É bom que estejamos atentos e nós procuramos estar atentos a isso.
Hoje em dia, está cada vez mais na moda a questão do yoga, do reiki, todas estas filosofias orientais. Vários leitores questionam-nos, nas nossas livrarias, para saber se isto não está em contradição com a fé cristã, se é legítimo… O que costumamos dizer é que já temos tudo isso, na fé cristã: há a meditação, a lectio divina, música gregoriana que ajuda a acalmar o espírito, um exame de consciência que a Igreja recomenda, a frequência dos sacramentos, sobretudo da Reconciliação…
Há outros fatores, na sociedade, que muitas vezes acabam por tomar a dianteira, porque aparecem mais vezes, suscitando um maior desejo na vida das pessoas.
Algumas publicações mais relevantes têm sido as da coleção YOUCAT, o catecismo para os jovens…. Têm feedback dos leitores mais novos em relação a esta aposta editorial?
Esta coleção foi publicada por nós, em Portugal, precisamente para preencher uma lacuna, que existia a nível editorial, no espaço juvenil. Havia muita literatura devocional, havia alguma literatura teológica, mas para os jovens havia muito pouco. Por isso, apostamos muito nesta coleção, precisamente para responder a desafios pastorais. A experiência que temos tido é muitíssimo boa, prova disso são as várias reedições que temos feito de qualquer um destes volumes, aliás, o último saiu precisamente neste mês, o YOUCAT para crianças e para pais. É uma obra já para um público mais infantil, que quer ajudar as crianças a preparar a sua Primeira Comunhão, mas também os pais, porque sabemos que eles precisam, cada vez mais, de uma catequese familiar, como muitas dioceses e paróquias vão oferecendo, também.
Os jovens consideram esta coleção um dom de Deus para eles, porque não o trabalham só na catequese, como um complemente aos catecismos que existem; há grupos de jovens, grupos de oração, que pegam muitas vezes na coleção YOUCAT para abordar os mais variados temas. Não trata só do Catecismo, há um volume sobre a Doutrina Social da Igreja, com temas fundamentais dos dias de hoje e que muitas vezes não se abordam na catequese: o dinheiro, a política, a ecologia, a moral sexual.
Os jovens, à medida que vão tendo um amadurecimento e se vão interrogando sobre eles próprios, sobre o mundo, sobre a relação com Deus, precisam de conteúdos. Então, nesta coleção encontram, numa linguagem mais juvenil, os mesmos conteúdos dos magistérios da Igreja.
São edições internacionais, em várias línguas. Qual tem sido o contributo desta coleção YOUCAT nas JMJ e como será em 2022, na Jornada Mundial de Lisboa?
Todos os últimos volumes têm prefácio do Papa – Francisco e, antes, Bento XVI -, o que quer dizer que o sucessor de Pedro considera que este projeto é válido. Nas últimas Jornadas Mundiais da Juventude, o Papa tem oferecido estes volumes, gratuitamente, através da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre, a nível internacional, como um subsídio pastoral, para que os jovens, regressando às suas casas, depois de uma experiência de fé vivida e celebrada, não percam as indicações que receberam nessas Jornadas e possam, depois, aprofundar essa mesma fé, individualmente ou em grupo.
A Fundação YOUCAT – inicialmente era uma editora, mas passou a ser uma fundação com estrutura própria – tem dito que, depois da JMJ, os jovens não deitam o livro fora; chegando aos seus países, contactam a fundação, através da internet, a solicitar mais material de apoio, até mesmo perguntando quando é que o livro é publicado em determinada língua, como aconteceu com edições em português.
A Paulus Editora não esconde a sua natureza… está ligada à Sociedade de São Paulo, uma congregação religiosa de vida apostólica fundada pelo beato Tiago Alberione, em Itália, em 1914, e que celebra já 75 anos de presença em Portugal. A vossa vocação é comunicar, é evangelizar através da comunicação, com publicações periódicas, uma rede de livrarias…
É verdade, também um programa de rádio semanal, ‘O Caminho de Emaús’, que é distribuído, regra geral, à disposição de rádios regionais e locais, um pouco por todo o território nacional e não só. Temos uma presença nas redes sociais e, recentemente, tivemos uma experiência televisiva com o programa ‘Livros com Fé’, na Ângelus, que agora encerrou a emissão. Foi uma experiência interessante, porque percebemos como tudo isto se vai complementando, naquela que é a nossa missão.
A Paulus apresenta-se hoje como uma “editora multimédia”… O caminho passa inevitavelmente pelo digital, pelas novas tecnologias?
Sim, cada vez mais, porque é por aí que a sociedade caminha. A tecnologia invadiu a nossa vida e a nossa vida, sem tecnologia, torna-se muito mais complicada…
Esta aposta no digital vai, de alguma forma, tirar espaço à edição em papel?
Vai, com certeza. Aliás, nós já notamos isso, até mesmo pelas nossas revistas, com exceção da Liturgia Diária. As revistas de conteúdos, como a Família Cristã ou a Síntese, de informação paga, vão tendo um decréscimo de leitores e de assinantes, também. Portanto, nós percebemos essa tendência, porque muitas coisas concorrem com o papel, hoje em dia.
Daí a necessidade de se começar a fazer uma transição para o digital: a Família Cristã já tem uma edição digital, há poucos meses, que se vai aperfeiçoando, além de potenciarmos o próprio site.
Já foi provincial da Sociedade de São Paulo. Sabemos que em breve deixará de ser o responsável pela Paulus Editora para se dedicar de novos aos estudos, e na área do digital… o que é que vai fazer?
O nosso superior geral conversou comigo – eu já lhe tinha manifestado, no final do meu mandato, o desejo de poder continuar os estudos na área da comunicação – e disse-me que havia necessidade que fosse fazer uma especialização, um doutoramento na área da comunicação digital. Aceitei, fiquei muito contente com esta nova missão que ele me entrega, porque nós precisamos de pensar a missão da congregação, não no futuro, mas no presente, já, imediato, na comunicação digital.
Portanto, uma formação também a olhar para o futuro em termos pessoais e da congregação?
Pessoalmente, dá-me muito gosto esta área da comunicação, sempre deu e apenas interrompi por causa das funções que assumi nos últimos 15 anos. A nível da congregação, vivo como paulista e sinto que o nosso ministério na Igreja passa efetivamente pela comunicação.
Nesse sentido, temos de conhecer a realidade humana para podermos ter a mensagem divina adequada à compreensão e à vivência das pessoas, nos dias de hoje, com os seus desafios.