Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Esta semana começa um período muito interessante e importante na vida de todos os Cristãos: a Quaresma. Digo interessante porque o minimalismo digital que tenho reflectido nas últimas semanas parece estar plenamente em linha com o espírito quaresmal que este ano o Papa Francisco convida-nos a viver, estendendo essa vivência ao relacionamento que temos com a criação.
Na mensagem deste ano, o Papa Francisco usa a expressão “redenção do próprio corpo humano”; fala do desafio de “desejos incontrolados” associados a um estilo de vida que ultrapassa os limites da condição humana e do respeito pela natureza; da imposição de uma “lógica do tudo e imediatamente, do possuir cada vez mais”; e da ligação que existe entre nós e a criação através do nosso corpo.
Corpo
De facto, o drama da nossa vida que exige redenção passa muito pelo encontro com o nosso corpo. Mas, apesar do restauro da sua fisionomia – como refere o Papa a um dado momento – creio que a tónica mais importante, associada aos estilos de vida, é o efeito que os “desejos incontrolados”, “lógica do tudo e imediatamente, e possuir cada vez mais” tem sobre o nosso comportamento. No século XXI, a saúde do corpo passa também pela saúde digital devidos aos excessos que actualmente vivemos e, na maior parte das pessoas, sem consciência disso.
Do nosso corpo fazem parte os pensamentos que temos, a capacidade de fazer silêncio para os articular, deixar que Deus nos fale através deles e, sobretudo, através dos relacionamentos que temos com os outros face-a-face, não digitalmente.
O louvor a Deus, a oração, a contemplação e a arte não se fazem com likes ou coraçõezinhos, mas com a cabeça que pensa, o coração que bate, e as mãos que se erguem em louvor, se apertam em oração, ou se metem em acção pelos mais necessitados.
A contemplação não se faz reduzindo-a a tempos infindáveis diante de um pequeno écran quando temos à disposição os 360º da criação com a qual partilhamos o ar que respiramos e a visão de um “horizonte da Ressurreição“ – como diz o Papa – que nos abre à criatividade que nos distingue.
Rever e recomeçar
Como cristãos, penso que podemos fazer desta Quaresma uma oportunidade para rever a nossa vida digital sob o ponto de vista das três grandes características deste período sobre as quais o Papa Francisco reflecte.
“Jejuar, isto é, aprender a modificar a nossa atitude para com os outros e as criaturas: passar da tentação de «devorar» tudo para satisfazer a nossa voracidade, à capacidade de sofrer por amor, que pode preencher o vazio do nosso coração.”
Sofrer por amor é uma capacidade que desenvolvemos com o encontro físico com os outros e com a natureza. Se telefonamos é para nos encontrarmos. Se fazemos uma video-chamada é para nos vermos. Se caminharmos pela natureza restauramos a nossa atenção e desenvolvemos um relacionamento diferente com a criação. Mas, hoje, sofrer por amor passa pelo desenvolvimento de uma maior capacidade de escuta atenta ao outro, desapegado dos toques e vibrações que nos distraiem.
Que tal 40 dias com o telemóvel permanentemente em modo silêncio fora das horas laborais?
”Orar, para saber renunciar à idolatria e à autossuficiência do nosso eu, e nos declararmos necessitados do Senhor e da sua misericórdia.”
O gesto de actualizar o mural de uma rede social numa App, ou email, é o mesmo que fazemos naquelas máquinas de jogo que se encontram com frequência em bombas de gasolina espanholas e nos casinos. Sem nos darmos conta, fazemos do excesso de interactividade que temos com os smartphones um modo diferente de idolatria, neste caso, idolatria a toda e qualquer forma de entertenimento. Com o tremendo poder da informação nas nossas mãos, muitos sentem-se autossuficientes. Basta-me conectar ao mundo e não preciso de mais nada. Não admira que um certo jejum virtual pudesse dar mais espaço e tempo à oração.
Por outro lado, passar mais tempo com a natureza leva-nos à contemplação da sua beleza e à oração. Seja pelo ar que respiramos ou pela oportunidade de estarmos juntos com os que mais amamos.
”Dar esmola, para sair da insensatez de viver e acumular tudo para nós mesmos, com a ilusão de assegurarmos um futuro que não nos pertence.”
Viver da riqueza de ter muitos likes, ser apreciado nas redes sociais pelos comentários que fazemos ou experiências que partilhamos, pode tornar-se num modo de acumular aquilo que enche o nosso orgulho de ser popular no mundo digital. E para quê? Que futuro asseguramos com uma presença activa e apreciada na net? Tudo não passa de uma ilusão.
A esmola de hoje não passa apenas por dar aquilo que não temos a mais e nos queixamos de ter cada vez menos. Tempo.
Há quem precise dos bens materiais que temos a mais, mas como é difícil abdicar do tempo que gastamos conectados, quando podíamos dedicá-lo aos outros.
Temos mais tempo do que pensamos, mas damo-nos pouco conta de como o descartamos com o que nos conecta ao mundo, mas nos isola dos que nos estão próximos. A esmola da nossa época é um tempo de qualidade para construir verdadeiros relacionamentos que transformam vidas, incluindo a nossa.
A vida nova que provém da ressurreição de Jesus, na era digital, é uma vida física que envolve o olhar, a voz, o abraço, a escuta e o perfume do relacionamento autêntico com o outro. Aquele que leva tempo a construir, mas permanence para sempre. Aquele que não depende de um pedido e aceitação de amizade, mas perde-se no outro e aceita-o, não somente pelo que é, mas por aquilo que pode ser quando nos amamos reciprocamente.
O horizonte da ressurreição é vasto, criativo e inspirador, mas precisa de que levantemos o nosso olhar e contemplemos a humanidade e a criação diante de nós. Um convite quaresmal a rever os nossos valores e a recomeçar.