«O homem, peregrino da verdade»

Catequese do 2º Domingo da Quaresma de D. José Policarpo 1. Para aprofundar e solidificar as razões da fé, o homem tem de ser um peregrino incansável da verdade, procurá-la todos os dias da sua vida, até àquele dia em que a luz de Deus será a sua verdade definitiva. Buscar a verdade é procurar a vida. Ser peregrino da verdade significa não parar em nenhuma etapa, como se ela fosse definitiva. Caminhar na vida é ir sempre mais longe na busca do seu sentido, deixar-se conduzir pela luz que, irradiação do esplendor da verdade, vai iluminando as nossas trevas, abrindo-nos à luz incriada, porque criadora, que continua a pronunciar sobre a vida dos homens a Palavra original: “Faça-se a luz” (Gen. 1,3). João Paulo II escreveu: “o esplendor da verdade brilha em todas as obras do criador, particularmente no homem criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gen. 1,26). A verdade ilumina a inteligência e modela a liberdade do homem, que, deste modo, é levado a conhecer e a amar o Senhor. Por isso, rezamos com o salmista: «fazei brilhar, sobre nós, Senhor, a luz da Vossa face» (Sl. 4,7)”. Procurar a verdade é buscar a luz sobre a realidade do homem, para encontrar segurança e firmeza na vida. Na existência humana, a segurança é importante para a tranquilidade e a harmonia. É por isso que a formação cristã é exigência contínua, porque a fé adensa e radicaliza a urgência de caminhar para a verdade. O que é a verdade 2. Ela é, fundamentalmente, o sentido profundo da realidade do homem e de todos os seres com quem ele convive, Deus e a criação. Na tradição helenista, verdadeiro é o que não está escondido, que se torna claro. O homem busca essa compreensão da realidade, quer a partir de si mesmo, com as suas capacidades de penetrar na realidade, quer a partir das realidades concretas que se deixam desvendar, se desvelam e se revelam. Já na tradição bíblica, cujo ponto de partida é a revelação de Deus e o abandono confiante à sua Palavra, a verdade está relacionada com a fé. A raiz das palavras acreditar e verdade é a mesma, e significa encontrar a firmeza e a segurança de que o homem precisa para ser feliz. Desvendar o sentido profundo da realidade e encontrar na fé, abandono confiante a alguém, a segurança que procuramos, ajudam-nos a situar os dinamismos de busca da verdade. A inteligência, enquanto capacidade de escuta e de procura, o coração que nos permite confiar, e a fidelidade vista como coerência da fé e adesão à verdade tocada e encontrada, são dinamismos que se cruzam e completam nesta busca do sentido da vida por parte do homem. Nessa busca, o homem procura respostas para as questões primordiais: origem e destino, a vida e a morte, a liberdade e a felicidade. Deixar de procurar essas respostas é desistir da vida. O dinamismo da busca da verdade foi impresso no coração do homem por Deus que o criou. O desejo de encontrar a verdade é elemento constitutivo da realidade humana, que nem o pecado destruiu, apenas obnubilou, e que Jesus Cristo veio confirmar e esclarecer. Ouçamos, mais uma vez, o Santo Padre João Paulo II: “nenhuma sombra de erro e de pecado pode eliminar totalmente do homem a luz de Deus criador. Nas profundezas do seu coração, permanece sempre a nostalgia da verdade absoluta e a sede de chegar à plenitude do seu conhecimento. Prova-o, de modo eloquente, a incansável pesquisa do homem em todas as áreas e sectores. Demonstra-o ainda mais a sua busca do sentido da vida. O progresso da ciência e da técnica, esplêndido testemunho da capacidade da inteligência e da tenacidade dos homens, não dispensa a humanidade de encarar as questões religiosas últimas, mas antes, estimula-a a enfrentar as lutas mais dolorosas e decisivas, que são as do coração e da consciência moral”. Para nós cristãos, Jesus Cristo é elemento decisivo nesta percepção do que é a verdade que procuramos. Como afirmou o Concílio Vaticano II, só n’Ele se esclarece definitivamente o mistério do homem. São João apresenta-O, no prólogo do seu Evangelho, como “a luz verdadeira que a todo o homem ilumina” (Jo. 1,9) e o próprio Senhor se apresentou a Si Mesmo como sendo a verdade e o caminho para a verdade: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo. 14,6). Jesus situa a verdade no caminho para a vida e apresenta-Se assim, porque nos revela a luz de Deus, a Palavra do Pai. Para os que acreditam em Cristo, Ele tornou-se no ponto de partida necessário para todo o aprofundamento da fé e do enraizamento desta na racionalidade humana. Ele entra na nossa vida como Verbo eterno, Palavra de Deus humanizada. A luz de Deus, que brilha no Seu rosto, ilumina o mistério do homem. “Por isso, a resposta decisiva a cada interrogação do homem, e particularmente às suas questões religiosas e morais, é dada por Jesus Cristo, mais, é o próprio Jesus Cristo”. Se Ele é a resposta, porque é o caminho, a todas as interrogações da inteligência e do coração do homem, é o fundamento da racionalidade da fé, porque entra na nossa busca da verdade como “Logos”, inteligência divina, a potenciar a inteligência humana por Ele criada. Ele só pode ser o fundamento das razões do nosso acreditar, porque não anula, antes potencia, todos os dinamismos humanos de busca da verdade. Isto oferece à própria Igreja a pedagogia e o caminho a percorrer para ajudar os cristãos a fundamentarem a sua fé. Ela está atenta à realidade humana, não se assusta com os problemas e interrogações, partilha as angústias e as alegrias, ousa discernir no âmago dessa realidade sinais, para tudo iluminar com a luz de Cristo. “A Igreja, Povo de Deus no meio das nações, ao mesmo tempo que permanece atenta aos novos desafios da história e aos esforços que os homens realizam na procura do sentido da vida, oferece a todos a resposta que provém da verdade de Jesus Cristo e do Seu Evangelho”. Os meios de que o homem dispõe para procurar a verdade 3. A possibilidade de buscar e caminhar para a verdade, isto é, para a compreensão do seu próprio mistério, é inata no coração do homem. O homem foi criado com a inquietação da busca da verdade e, como dirá maravilhosamente Santo Agostinho, Jesus Cristo faz-nos perceber que só em Deus essa inquietação se saciará. Como escreve João Paulo II, “são questões que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem. Da resposta a tais perguntas depende a orientação que se imprime à existência”. O primeiro e mais nobre dinamismo humano para a busca da verdade, é a inteligência racional, que o distingue de todos os outros seres criados e o torna semelhante a Deus. Consciência de si mesmo, torna o homem capaz de se questionar sobre si mesmo e sobre toda a realidade que o rodeia, e de procurar a resposta para as questões que se põem. Ao longo de milénios, através da filosofia, da arte, da cultura, o homem procurou respostas para as questões fundamentais, em busca da compreensão de si mesmo, gerando diversas sabedorias que mostram “que o desejo da verdade pertence à própria natureza do homem”. A inteligência racional é um dinamismo que pode conduzir o homem até à dimensão transcendente da verdade e ao próprio Deus. Provam-no todas as grandes sabedorias culturais que, na busca da verdade, desabrocharam sempre na dimensão religiosa da vida. O fenómeno religioso é tão antigo como a humanidade, que na sua busca de sentido chegou ao conhecimento natural de Deus. Com o surgir das religiões reveladas que se fundamentam numa revelação de Deus, acerca de Si mesmo e do próprio homem, surge a necessidade de situar a capacidade da razão humana de chegar à verdade perante a verdade revelada. Noutro domingo falaremos explicitamente deste problema, mas desde já tenhamos perante nós as diversas linhas de solução. Há os que excluem qualquer verdade revelada, só admitindo a verdade a que a razão humana pode chegar, admitindo um Deus da razão e uma religião racional. Outros foram mais longe e negaram qualquer dimensão transcendente da verdade, situando esta no restrito horizonte da razão humana, que se afirma ateizante por natureza. Para estes, a razão humana afirma a autonomia do homem na busca da verdade sobre si mesmo, e só pode levar à prova da não existência de Deus. Outros situaram a verdade revelada num âmbito não racional, privando a fé da solidez da razão, que levou a todos os pietismos emocionais e à separação da existência moral da racionalidade humana. Isto significa que na sua auto-compreensão, como dinamismo de verdade, a razão humana limitou a sua capacidade e o seu horizonte, quase sempre devido a posições apriorísticas prévias ao próprio exercício da razão. No nosso tempo, com a crise da Filosofia, e o triunfo das ciências exactas, esta situação agravou-se, caindo-se no horizonte limitado da razão pragmática, incapaz dos grandes voos na busca da verdade e da compreensão da realidade. Para nós cristãos é impossível encontrar fundamentos sólidos para a nossa fé, sem a inteligência racional. É certo que a verdade revelada a surpreende, dando-lhe acesso a uma profundidade da verdade a que ela não era capaz de chegar; mas não a violenta, pois esse novo estádio da verdade só será verdadeiramente humano se for acolhido pela razão e esta puder identificar aí o objecto da sua busca. É que Cristo, revelação definitiva da verdade, manifesta-se como “Logos”, inteligência perfeita, que revela, ao mesmo tempo, as reais potencialidades da razão humana. Esta, se não pode, com a sua capacidade, chegar aos conteúdos da fé, alegra-se com a surpresa da revelação. 4. Um outro dinamismo humano na busca da verdade é a atracção pela beleza e a capacidade de contemplar o que é belo. Na cultura grega os poetas eram chamados teólogos, porque através da beleza tinham acesso e exprimiam a inteligibilidade do divino. Deus é belo, pois imprimiu a marca da beleza em toda a criação e a contemplação da beleza foi sempre um caminho para chegar à compreensão do homem, tão importante como a penetração nos segredos da realidade, através da luz da inteligência. E não são dois caminhos separados, mas convergentes, pois só a inteligência é capaz de transformar em verdade assumida a beleza contemplada. Todo o homem é atraído pela beleza e esta é tão universal como a verdade, não sendo reservada ao privilégio de alguns. O primeiro rosto da criação é a beleza, que é harmonia, perfeição, reflectindo a beleza do seu criador. Não é por acaso que quando a cultura ambiente diminui nas pessoas o anseio da verdade, as torna também mais insensíveis à beleza. A contemplação da beleza não gera, apenas, uma experiência estética, conduz o homem à consciência das verdades fundamentais sobre o sentido da vida. Ouçamos o Santo Padre João Paulo II: “Os conhecimentos fundamentais nascem da maravilha que nele suscita a contemplação da criação: o ser humano enche-se de encanto ao descobrir-se incluído no mundo e relacionado com outros seres semelhantes, com quem partilha o destino. Parte daqui o caminho que o levará, depois, à descoberta de horizontes de conhecimentos sempre novos. Sem tal assombro, o homem tornar-se-ia repetitivo e, pouco a pouco, incapaz de uma existência verdadeiramente pessoal”. 5. E, finalmente, entre os dinamismos de que o homem dispõe para procurar a verdade, refiro a experiência do amor. O amor verdadeiro é sempre participação na vida de Deus, sendo, por isso, fonte de conhecimento e de verdade. Todo o amor é fonte de conhecimento da pessoa amada e de auto-conhecimento na experiência do dom e do encontro. Isto confirma-se, pela negativa, na verificação do facto de as pessoas, quando se tornam egoístas e centradas sobre si mesmas, ficam menos sensíveis à beleza e à verdade. A revelação de Deus é um acto de amor, e a fé é um encontro marcado pela fidelidade, exprime-se no desejo desse encontro cada vez mais profundo (a esperança), e na caridade. Um dos aspectos mais belos da vida cristã é verificar como a intimidade com Deus, sobretudo na oração e na fidelidade aos seus mandamentos, é fonte de uma compreensão profunda de Deus e do homem. “Serão todos ensinados por Deus”, anunciou Jesus (cf. Jo. 6,44). Não foram os caminhos humanos da ciência e da cultura que levaram grandes místicos, como Teresa de Lisieux ou Catarina de Sena, àquela compreensão profundíssima da verdade e que conduziria à sua proclamação como Doutoras da Igreja. O conhecimento da verdade que brota do amor é mais da ordem da sabedoria do que da ciência e está acessível a todos os que amam. Pode ser um dos efeitos negativos da ciência positiva, baseada na razão lógica, o diminuir o sentido da sabedoria, para onde deveria convergir toda a conquista humana da verdade. A verdade e a liberdade 6. A cultura contemporânea exalta mais a liberdade do que a verdade. Toda a busca da verdade é realizada por seres livres, sendo, em si mesma, uma expressão do dinamismo da liberdade. Mas isto põe, necessariamente, o problema do relacionamento mútuo entre a verdade e a liberdade, pois só a harmonia de ambas leva ao aprofundamento da consciência pessoal, sobretudo da consciência moral, máxima expressão da liberdade. Qual das duas tem a primazia: é a liberdade individual que define o que é a verdade, ou a verdade orienta e condiciona o exercício da liberdade? As palavras de Jesus parecem não deixar dúvidas a esse respeito: “Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres” (Jo. 8,32). Há uma objectividade da verdade, anterior à sua descoberta pelo homem, expressa no seu próprio coração, na criação que o rodeia, na tradição que herdou, na comunidade a que pertence, em Deus que se lhe revela, em Jesus Cristo encarnação visível da verdade eterna. O dinamismo fundamental da busca da verdade é a atracção por esta “verdade incriada”, que estando já em nós, é maior do que nós, e que iluminará a nossa liberdade como capacidade de orientação da vida. Ao contrário, se se absolutiza a liberdade individual, cai-se numa visão subjectiva da verdade, em que cada um inventa a sua própria verdade, o que levará, inevitavelmente, à relativização da própria verdade. A ética individualista, em que cada um decide o que é bem ou mal, é a principal consequência desta atitude. Ouçamos, a este propósito, o Santo Padre João Paulo II: “Atribuíram-se à consciência individual as prerrogativas de instância suprema do juízo moral, que decide categórica e infalivelmente o bem e o mal. À afirmação do dever de seguir a própria consciência foi indevidamente acrescentada aqueloutra de que o juízo moral é verdadeiro pelo próprio facto de provir da consciência. Deste modo, porém, a imprescindível exigência de verdade desapareceu em prol de um critério de sinceridade, de autenticidade, de «acordo consigo próprio», a ponto de se ter chegado a uma concepção radicalmente subjectivista do juízo moral”. 7. Para aprofundar as razões do nosso acreditar, é preciso nunca desistir desta caminhada para a verdade. Nós somos atraídos pela verdade absoluta, que nos foi revelada em Jesus Cristo, e de que já participamos na vida da fé. Mas empenhemos nessa busca toda a nossa capacidade de verdade: a nossa inteligência, a atracção pela beleza e pelo amor e aceitemos humildemente que só a verdade iluminará a nossa liberdade. Esta é a exigência da formação cristã. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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