O futuro da ONU e a guerra no Iraque

José Manuel Pureza, membro da Comissão Nacional Justiça e Paz O cenário de guerra no Iraque colocou em questão, desde logo, o presente e o futuro de uma estrutura que sirva de suporte ao cumprimento da legalidade internacional. José Manuel Pureza, membro da Comissão Nacional Justiça e Paz e especialista em Relações internacionais perspectiva, para a agência ECCLESIA, o futuro da ONU após o ultimato norte-americano. Agência ECCLESIA – O conceito de interdependência entre os Estados, a que João Paulo II fez referência no seu discurso de 13 de Janeiro ao corpo diplomático foi colocado em causa pelo conflito iraquiano? José Manuel Pureza – A minha reflexão é de que a forma de entender o relacionamento entre os Estados foi posta em causa com os cenários que se traçam nesta crise. Um dos riscos maiores é o de se acentuar um princípio de hierarquia em detrimento de um principio de interdependência. Não me parece que a interdependência vá, de facto, ser abandonada, porque ela existe, é uma condição do nosso tempo: do ponto de vista ambiental, económico, político e social. A questão é que há uma tendência clara para, nos cenários de governação e nos cenários de decisão, haver uma supremacia de uma lógica hierárquica, de uma lógica de mando e de sobreposição. Este é um dos cenários mais inquietantes. AE – Havia quem recusasse a guerra, mesmo com o aval do Conselho de Segurança da ONU. Qual é o limite à intervenção internacional em assuntos internos? JMP – Esta guerra que se anuncia, além de ilegal, será ilegítima. Ilegal se for feita há margem dos procedimentos que a carta das Nações Unidas consagram e ilegítima porque se trata de uma guerra que vem com rótulo e com o conteúdo de uma “guerra preventiva”, que inaugura uma justificação da guerra que é, do ponto de vista da doutrina da Igreja, algo completamente inaceitável. Em relação a saber quais são os limites da ingerência em assuntos internos, a resposta parece simples: esses limites são os limites da sua condução dentro de um quadro multilateral, sob pena de se abrir uma caixa de pandora, que é a daqui para a frente a intervenção – em ultima análise, a guerra – ficarem dependentes estritamente da “decisão/apetite” de um Estado poderoso. AE – Assim sendo, quem garante a legalidade internacional? JMP – Quem garante a legalidade internacional são, em primeiro linha, os Estados, ou seja, o cumprimento e até o desenho das normas internacionais é uma competência e um dever dos Estados soberanos. Só em segunda linha são as organizações internacionais, sejam universais ou regionais, a garantir o cumprimento dessa legalidade. As organizações internacionais são muito pouco mais do que associações de Estados, pelo que os Estados são a garantia primeira e última da legalidade internacional. Os fundamentos dessa legalidade são, do meu ponto de vista os seguintes: o estabelecimento de regras de coexistência, ou seja, um dos propósitos primeiros do direito internacional é a garantia de que os Estados coexistem uns com os outros sem recorrerem ao uso, ou a ameaça de uso da força. Mais no nosso tempo, nomeadamente a partir da II guerra mundial, há um outro fundamento que se torna claro no direito internacional, e isso foi sublinhado vivamente por João XXIII, Paulo VI e João Paulo II: é o sentido de comunidade internacional. A comunidade é mais do que uma justaposição de Estados e, nesse sentido, creio poder afirmar que há um conjunto de áreas no direito internacional cujo fundamento é a noção de comum-humanidade. AE – Que mudanças se podem prever para o funcionamento das Nações Unidas no futuro? JMP – Nesta altura acho que se podem desenhar pelo menos dois cenários: um cenário que eu considero negativo é o de que se acentue no próprio sistema de funcionamento das Nações Unidas a sua dependência do conjunto cada vez mais restrito de potências – o que eu chamaria o modelo de “directório das potências”. Esse é o modelo que está dentro das Nações Unidas desde o princípio, tem no Conselho de Segurança a sua expressão máxima, com cinco estados a terem o direito de veto e, portanto, a comandarem os destinos do mundo nas questões mais sensíveis. O outro cenário, que eu consideraria como optimista, é o de uma reforma das Nações Unidas que aponte para um funcionamento da própria organização internacional mais participado, mais equilibrado, mais regulado, que não lhe roube eficácia, mas que acrescente participação. Isso é uma exigência que não se traduz apenas em juntar meia-dúzia de Estados ao Conselho de Segurança, mas em encontrar um novo conjunto de procedimentos em todos os órgãos e mesmo na criação de outros órgãos.

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