O desemprego é sintoma de que mudanças sociais?

Cooperar e competir: a sociedade em busca do trabalho e do emprego

Houve, muitas vezes, desemprego nas sociedades “industriais” modernas, geralmente passageiro, até mesmo episódico. Houve também grandes crises de desemprego. A mais notável foi a Grande Depressão que se seguiu ao craque de Wall Street, na sexta-feira negra de 1929, prolongada por três ou quatro anos, conduzindo a fenómenos de grande amplidão, como a subida ao poder de Adolfo Hitler, o nacional-socialismo e, sem dúvida, através deste contexto, a Segunda Guerra mundial. O facto que motivou a crise, conforme a análise keynésienna, consistiu provavelmente em elevado excesso de poupança, investimento quase nulo no período de esgotamento após a Primeira Guerra mundial, como se se tivesse perdido o gosto de viver. Basta esta alusão para pôr em destaque que um fenómeno como o desemprego de grande amplitude, tal como hoje de novo o conhecemos, está quase sempre ligado a profundas modificações. Causa admiração que a entrada no “trabalho” de tantas mulheres, cerca dos anos 60, não tenha feito crescer o desemprego: isso deve-se ao período de reconstrução, o qual requeria tanta mão-de-obra que a França e a Bélgica, por exemplo, recorreram à mão-de-obra do Norte de África. O desemprego contemporâneo surgiu no fim dos anos setenta, logo depois do choque petrolífero, um brutal aumento do preço do petróleo em bruto, por decisão da OPEP, encarecendo a energia para a maioria dos produtores e tornando impossíveis muitas produções (demasiado caras): de tal fenómeno resulta inevitavelmente uma queda dos mercados (das vendas) e, claro, uma diminuição dos fabricos, o desemprego de muitos trabalhadores… Desde esses dias, diga-se em abono da verdade, o preço do petróleo baixou consideravelmente e por algum tempo – antes de aumentar há pouco (no decorrer da guerra do Iraque). Mas nem por isso o desemprego deixou de persistir decénios inteiros. A explicação atribui-se, cada vez mais, à amplitude das automatizações devidas à introdução da informática num grande número de processos industriais, assim como, aliás, em várias actividades de serviço: uma revolução tecnológica que conduz indiscutivelmente a um recurso muito menor ao trabalho humano em muitos fabricos. Isto só é, com certeza, muito parcialmente reversível: em Paris, como noutras grandes cidades ninguém sonha em contratar de novo empregados para o metropolitano a fim de picarem os bilhetes dos passageiros. Mais recentemente insiste-se, sobretudo nos velhos países da Europa, na transferência de inúmeras actividades em direcção a alguns países emergentes, doravante a China e a Índia, para só nomear os maiores: eis, em parte, a consequência da abertura ao comércio mundial de regiões que até há poucos anos lhe estavam vedadas. Mas isto, provavelmente nada significa ao lado do efeito da mudança tecnológica informática que acabo de evocar. É este efeito que dá aso a que se fale de “fim do trabalho”, por exemplo no famoso livro de Jeremy Rivkin sob este título (um dos livros mais divulgados sobre este assunto há quinze anos). No que disse até aqui, ocupei-me mais em explicar, não o nego, a origem, a causa do desemprego contemporâneo, do que os seus efeitos e consequências, os quais consistem no meu verdadeiro tema, Talvez necessite ainda, entretanto, de explicar um pouco o que parece uma enorme diferença entre a Europa, com taxas de desemprego de 10% e mais, e os Estados Unidos com taxas da ordem dos 4 ou 5% em geral. A principal explicação que se conhece desta diferença reside no facto de haver uma forte imigração nos Estados Unidos, imigração, aliás, tradicional, correlativa (quase inevitavelmente) de uma política de fraca garantia de salários mínimos: os que chegam contentam-se com salários baixos, confiantes na possibilidade de ver as suas remunerações aumentar muito depressa. Observa-se algo do mesmo fenómeno em Inglaterra. Mas tal não significa que estes países não tenham sido abalados, como os outros, sob a pressão da mudança tecnológica, eliminando, mais cedo ou mais tarde, inúmeros postos de trabalho.

Que mudanças sociais daqui resultam?

Que irá acontecer se este estado de coisas, como é muito provável continuar? E que pensar das diversas perspectivas? Por outro lado, que fazer? Eis o ponto mais importante do nosso tema. Alguns prevêem um verdadeiro esgotamento dos recursos em trabalho e, por consequência, uma espécie de mudança de civilização, aliás mudança libertadora. Ou então, outros, menos optimistas, julgam que, sem remédio, nos devemos adaptar ao crescente aumento do desemprego, sem sonhar jamais com um emprego para a vida toda e a tempo inteiro, organizando-nos de outra maneira. Organizando-nos de outra maneira – que quer isto dizer? Fundamentalmente, garantir a subsistência de todos através dum generoso abono universal, medida possível nos países de nível industrial já elevado, deixando o acesso ao trabalho (por um provento complementar opcional) à escolha de cada um, ou à oportunidade (ou à sorte). A vantagem desta perspectiva, mais do que um o afirma, é considerável: fazer-nos sair de um sistema de trabalho no fundo “obrigatório”, forçado, autêntico sistema de repressão social, acrescentam eles, mantendo as populações tranquilas, devido ao facto de não disporem (não dispunham) de outro meio para garantir os seus sustento e sobrevivência. “Trata-se, dizia há alguns anos Marc Ferry, afirmando o direito ao rendimento, de dissociá-lo do constrangimento ao trabalho e, ao proceder assim, de repensar o direito ao trabalho como tal, isto é como um direito e não como um dever imposto do exterior pela necessidade de receber um ordenado, o qual nem sempre enforma o objecto de um direito independente.”1 Poder-se-ia acabar com “os preconceitos e os pressupostos de um trabalhismo repressivo”.2 A ideia “trabalhista” é repressiva, porque supõe que, fora do constrangimento pela subsistência, os homens de modo nenhum estariam dispostos a trabalhar. Fala-se, diz Ferry, do efeito “desincentivador” de uma medida como o abono universal. Mas, respondia ele, “relativamente a que tipo de actividades o abono universal desempenharia a priori um papel desincentivador? Não, com certeza, relativamente às actividades interessantes, gratificantes, enriquecedoras e remuneradas em simultâneo. Recordemos que o abono universal não funcionaria, por exemplo, como R m i (Rendimento mínimo de inserção), os subsídios de desemprego, os abonos sociais de alojamento, de salário único, ou como qualquer medida de indemnização e de assistência em geral. O abono universal é, com efeito, concedido a todos definitivamente: não termina com a entrada dos seus usufrutuários numa fase activa ou com a melhoria dos lucros do seu trabalho caseiro. Portanto, apenas desincentivaria, na generalidade ou em média, as formas de actividade julgadas socialmente as mais rebarbativas, e não poderia, diferenciando-se de outras prestações do Estado social, congelar uma situação de assistência ou de indemnização sob o pretexto de considerações de cálculo comparativo e orçamental. Além do mais atenuaria a urgência – e isso constitui um benefício -, a urgência que leva os excluídos a aceitar um emprego não importa sob que condições, ou quase. O que os sindicatos não souberam fazer de maneira convincente, em numerosos países: garantir a longo prazo, aos assalariados, uma força de negociação sobre o contrato de trabalho – o abono universal fá-Io-ia de feição estrutural, institucional, automática, colocando o potencial trabalhador num plano mais ou menos vantajoso de negociação com o seu empregador potencial”.

3 Diminuição do tempo de trabalho, partilha do trabalho

Uma outra perspectiva encara a diminuição do trabalho disponível, ou, se se prefere, do trabalho necessário para garantir a produção dos bens que os consumidores se dispõem a comprar, Impõe-se, então, tanto quanto possível, partilhar as tarefas. Foi um pouco do reconhecimento desta imposição que contribuiu para diminuir o tempo de trabalho, quer nas empresas particulares – há alguns anos a Volkswagen, na Alemanha – quer num país inteiro – pela lei das 35 horas semanais, em França. Vê-se surgir, no fim de contas, uma transformação bastante grande, com os assalariados, sobretudo com os que pertencem aos quadros, dispondo de um número considerável de feriados suplementares, dias de RTT, redução do tempo de trabalho, dispondo, portanto, de uma importante fonte de tempo para novo descanso. De facto, isto muda a vida… E isto é geralmente efectuado e conseguido sem alterar o ordenado do trabalhador, supondo forte progresso na produtividade, ou anulação de tempo até ali inútil mesmo dentro das horas de trabalho… Em França, a hipótese era também que, não obstante a manutenção do ordenado, a redução legal do tempo de trabalho fomenta o emprego de um número muito maior de trabalhadores, constituindo, portanto, uma redução do desemprego. E foi neste ponto, verdade seja dita, que se deparou com maior dificuldade, porque, se é fácil contratar novos trabalhadores numa grande unidade de produção, em unidades pequenas não é possível fazê-lo: não é um trabalhador inteiro e a tempo inteiro que podiam, deviam contratar, mas um terço, um quarto, ou um quinto de trabalhador. De repente, estas pequenas unidades abstêm-se. A aplicação da lei francesa verificou-se difícil e teve que ser adaptada, mediante arranjos, às pequenas e até às médias empresas. Recentemente começou a produzir-se, em França, como primeiro na Alemanha, um fenómeno quase oposto: os assalariados aceitam diminuir o salário, trabalhando mais horas pelo mesmo salário, a fim de evitar que a empresa seja transferida…, parta com armas e bagagens para a China. Mas isto não constitui, de modo nenhum, o fenómeno maciço comparável à diminuição do tempo de trabalho legal, das 35 horas, em França. Por outro lado, diminuiu em cerca de metade a duração do trabalho anual desde a primeira metade do século XIX, época do capitalismo triunfante, até aos nossos dias, portanto em 150 anos, segundo Olivier Marchand e Claude Thelot, in Le travai! en France 1800-2000, Nathan, Paris, 1997. De 3000 a 1500 horas. Houve, evidentemente, quedas notáveis durante tempos de grande crise, em 1848 e em 1936-37, e uma intensificação contrária nos tempos de guerra como em 1914-18 e 1939-45. Com ou sem leis há um diminuir progressivo, quase constante, desta duração, devido com certeza às sucessivas evoluções tecnológicas. Pode-se, entretanto, pensar, sem margem de erro, que neste momento se enfrenta uma aceleração proveniente da nova forma, mais radical, destas evoluções tecnológicas: a automatização pela informática.

Mudança de trabalho, novas fontes de trabalho

Há, parece-me, outra perspectiva a favorecer, di-Io-ei mais adiante, a de que, largamente e bastante satisfeitas as necessidades em bens materiais, com um tempo de trabalho limitado do conjunto da sociedade, os homens possam valorizar cada vez mais necessidades cuja satisfação quase nada se relaciona com produtos ou bens materiais, mas sim com acções da pessoa dirigida à pessoa, serviços, no sentido mais exacto do termo (sendo também esta palavra empregada, como se sabe, para designar muitas actividades, entretanto incorporadas na produção industrial e no comércio dos seus produtos – transporte. etc…). E que se torne possível satisfazer cada vez melhor estas necessidades. Acontece que os serviços da pessoa à pessoa são muito menos automatizáveis, e permanecem justamente pessoais, mesmo que se recorra à eventual tilização de meios ricos em electrónica e automatismos. É preciso a presença, a atenção, o que se define por tempo. Um grande uso da inteligência, até da intuição, da sensibilidade. Neste contexto pode-se encontrar um número muito grande de postos de trabalho: em toda a espécie de tarefas educativas, ou de desenvolvimento cultural e artístico, em toda a espécie de novos cuidados do homem ao homem, respeitante à saúde no sentido mais lato do termo, e noutras interacções ainda do homem ao homem das quais, sem dúvida, não fazemos a mínima ideia, mas que não deixarão de se desenvolver. Desde hoje, a estatística da repartição das actividades da população activa demonstra que este futuro já começou (apesar do amálgama ainda muitas vezes feito de serviços de tipo muito diverso, na estatística citada). Interrogai, como eu fazia há alguns anos, sindicalistas num país de médio desenvolvimento, a Argentina, que deve empregar um milhão de pessoas no ensino: quantos se poderia empregar no mesmo sector, com utilidade, visando um melhor resultado educativo no país? Eles não hesitaram em responder duas vezes mais, outros três vezes… O número pouco importa. O que conta é que cada um detecta facilmente a possibilidade de um acréscimo do emprego neste tipo de actividade. Cada um a detecta também, com toda a evidência, no serviço às pessoas idosas, dependentes, claro, mas até não dependentes, susceptíveis de usufruir de determinada ajuda. E dispondo, aliás, a partir de agora, de rendimentos que lhes permitem recorrer a serviços deste teor. Mas estes, muitas vezes, são insuficientes na organização e na oferta. Na verdade, muitas pessoas não conseguem ainda admitir que um serviço se possa pagar com outro serviço, tanto quanto com um bem ou produto material e que uma parte infinitamente maior das transacções poderia incidir sobre serviços, e uma parte menor sobre bens materiais, produtos no sentido corrente do termo. Nada há de estranho nem de incompreensível, contanto que se explique que, sendo o próprio produtor de um serviço, se faça pagar – indirectamente mediante numerário, ou em produtos materiais tanto quanto pela troca de serviços de que houver necessidade. Hoje, é preciso convidar as pessoas, sobretudo aquelas que dispõem de rendimentos suficientes, a valorizar as suas necessidades de serviços. Um serviço torna-se solvente porque dou a conhecer a minha preferência por esse serviço, em vez de por este ou aquele bem material obtido a um preço cada vez mais baixo (ou por qualquer outro serviço). Talvez haja quem contraponha que, tal convite, assemelha-se ao exercício de uma pressão sobre a liberdade das pessoas… Mas pode-se facilmente responder que apenas se trata de compensar o efeito de uma persuasão publicitária ainda muito poderosa das actividades industriais. Trata-se de ajudar as pessoas a tomar consciência das suas verdadeiras necessidades. Já citei várias vezes, a propósito deste assunto, o exemplo de um homem da terceira, ou, por outra, da quarta idade, que tinha uma necessidade real de serviços pessoais – no sentido mais exacto de serviços “à pessoa” – e dizia que os não podia encontrar, mas não estava na disposição de pagar um preço muito elevado por isso… Entretanto, comprou um automóvel, caríssimo, que, devido ao estado de saúde e de agilidade do proprietário, permaneceria a maior parte do ano na garagem, saindo só para breves excursões em dias de Sol! Eis uma caricatura que, no entanto, é verídica. Não restam dúvidas de que é possível, especialmente por via associativa (sem falar da educação antecedente) levar a certas mudanças de mentalidade decisivas para a manifestação da nova procura. A Igreja, entre outras instituições, pode, deve mesmo encorajar tal manifestação, nela pondo todo o seu empenho. Simultaneamente é preciso, por via associativa, até através da empresa, suscitar uma oferta correspondente: a de serviços qualificados, garantidos, baseados numa formação adequada. Formação que não é com certeza pequeno trabalho. Ela versa disciplinas e aprendizagens diferentes daquelas que eram úteis às indústrias tradicionais. Os programas educativos estão muito atrasados relativamente a este estado de coisas ou, verdade seja dita, em quase nada o antecipam. Tudo isto é susceptível, enfim, de ser grandemente reforçado por uma programação pública de acções a fim de facilitar estes desenvolvimentos, e imediatamente por um anúncio, proveniente de autoridades políticas, do rumo que pode tomar a mudança, do deslocamento que pode, e deve, acrescentaria, efectuar-se para um novo trabalho, noutros serviços. Sobretudo nas nossas democracias, os políticos são lentos na matéria, e temem perder votos, opondo-se às organizações sociais e políticas que garantem a defesa do trabalho tradicional, ou antigo.

Por quê insistir neste sentido?

O problema reside, não obstante, em acelerar esta evolução para que as disponibilidades de trabalho dos homens encontrem de novo emprego suficiente. É, em definitivo, uma questão de civilização, de forma de civilização, e eu quero ainda porfiar neste tópico, referindo-me desta vez às convicções da Igreja na matéria. Há pouco aludi a outra postura de pensamento, a de quem está convencido que, dar importância ao trabalho, equivale a hostilizar a pessoa, até reprimi-la, ponto de vista do guarda das galés… Tudo depende, na verdade, de uma compreensão do mundo. João Paulo II há cerca de uma vintena de anos, no começo do seu pontificado, retomou de maneira significativa o exame do sentido do trabalho na vida humana, proclamando também o que nunca tinha sido, até então, tão nitidamente focado no ensino social católico: a primazia do trabalho, a sua prioridade sobre o capital. Com mil consequências. Tudo isto figura na encíclica Laborem exercens (1981) a reler ainda hoje; é uma das encíclicas, impõe-se dize-lo, na qual o Papa teve mais iniciativa própria e que ele quis especialmente em função da sua história operária pessoal e da situação dos operários polacos4. “Se, no presente documento, diz ele no início, voltamos a falar sobre o problema (do trabalho), não é para compilar e repetir o que já está contido no ensinamento da Igreja, mas antes para pôr em destaque – talvez mais do que alguma vez já foi feito – que o trabalho humano enforma uma chave, e provavelmente a chave essencial de todas as questões sociais.”5 Mas muito característico é, sobretudo, em seguida, o enraizamento antropológico – melhor dito: o enraizamento na antropologia teológica – da sua consideração: “A Igreja, diz ele, está convencida de que o trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência humana.”6 Ela está convencida por mil razões psicológicas, sociológicas, filosóficas…, diz o Papa; entretanto, acrescenta ele, a Igreja extrai esta mesma convicção primeiro que tudo da fonte que é a palavra de Deus revelada, e por isso uma convicção da inteligência adquire também o carácter de uma convicção de fé”.7 A partir daqui, o Papa empenha-se num comentário às “primeiras páginas do Livro do Génesis” que estabelece precisamente, na sua óptica, que o trabalho “constitui uma dimensão fundamental da existência humana sobre a Terra”. Eis o ponto central: o homem é feito à imagem de Deus exactamente como trabalhador.8 E o ponto mais particular do qual, depois, tira as suas conclusões principais, é que, se o trabalho enforma, numa certa perspectiva, um processo objectivo em que “máquinas e mecanismos cada vez mais aperfeiçoados” desempenham um poderoso papel, mesmo na época do trabalho cada vez mais mecanizado “o sujeito próprio do trabalho permanece o homem”.9 Ou ainda: é o próprio homem que está inserido no trabalho e, através do seu trabalho, o homem insere-se na economia.10 Por isso o trabalho tem um sentido “ético”, não simplesmente um sentido técnico ou económico11. Nenhuma diferença a estabelecer, por outro lado, entre os géneros de trabalho, como se fazia na Antiguidade12. E “prioridade”, ou primazia, do trabalho relativamente a tudo o resto na economia13. Até a propriedade deriva do trabalho, diz o Papa14. E os meios de produção, além da natureza no seu estado virgem, são “o fruto do património histórico do trabalho humano”. “Todos os meios de produção, dos mais primitivos aos mais modernos, foi o homem que os elaborou progressivamente: a experiência e a inteligência do homem… Tudo o que serve ao trabalho, tudo o que constitui, no estado actual da técnica, o seu ‘instrumento’ sempre mais aperfeiçoado, é o fruto do trabalho.”15 “O capital nasceu do trabalho e traz as marcas do trabalho humano. O trabalho torna-se, hoje, na opinião do Papa, cada vez mais humano e mais qualificado: sempre, em maior número, penetrado pelos processos humanos de conhecimento. De hoje em diante não há trabalho sem muita inteligência manifestada. A superioridade do trabalho é colocada mais em evidência17. Compreende-se, então, a atitude de João Paulo II, nesta mesma encíclica, perante o desemprego: o não-aceitar de uma situação na qual o trabalho se tornaria indiferente: o trabalho é de tal modo importante para o homem – para a sua realização (forma-se, formando a natureza) – que tudo deve ser empreendido a fim de permitir a todos nele participar… Ele faz esta forte recomendação, que, com certeza, os nossos Estados não se atrevem a executar: “Para enfrentar o perigo do desemprego e garantir uma tarefa a cada um, as instâncias definidas aqui, como empregador indirecto, devem prover a uma planificação global deste campo de trabalho diferenciado, no seio do qual se forma a vida não apenas económica, mas também cultural, de uma dada sociedade; e devem prestar atenção, por outro lado, a organização correcta e racional do trabalho no dito campo.”18 Depois, decorrido um ano sobre a encíclica Laborem exercens, numa mensagem dirigida à Organização Internacional do Trabalho, em Genebra, 1982, João Paulo II apresentava-se com uma visão ainda mais agravada da situação, insistindo particularmente sobre a gravidade do desemprego dos jovens, e lançava um veemente apelo à solidariedade para lutar contra o desemprego (“que cada um esteja disposto a aceitar os sacrifícios necessários”).19 Ele clamava, é preciso que se diga, esta frase cheia de emoção, que impressionou: “Recuso-me a acreditar que a humanidade contemporânea, apta a realizar proezas científicas e técnicas tão prodigiosas, seja incapaz, mediante um esforço de criatividade inspirado pela própria natureza do trabalho humano e pela solidariedade que une todos os seres, de encontrar soluções justas e eficazes para resolver o problema essencialmente humano que é o do emprego!” Desde Laborem exercens, por outro lado, ele exprimia o seu sentimento de que os problemas actuais depressa se multiplicariam: “As mudanças poderão eventualmente significar, para milhões de trabalhadores qualificados, o desemprego, pelo menos temporário, ou a necessidade de uma nova aprendizagem…, mas tais mudanças poderão também trazer alívio e esperança aos milhões de pessoas que vivem actualmente em condições de miséria vergonhosa e indigna.”20

Entretanto até agora, ausência de propostas concretas

Estamos hoje neste ponto, bem podemos afirmá-lo… No que me concerne, lamentei, no meu livro Os silêncios da doutrina social católica, L’Atelier, 1999, que o recente ensino da Igreja não se tivesse prolongado, formulando propostas concretas – do género das que já apresentei – sobre a urgência de abrir a via ao novo trabalho. Os episcopados nacionais também não foram mais longe. Uma certa ideia de partilha do trabalho, melhor do “horário de trabalho”, foi bem evocada pela Comissão social do episcopado francês, num livrinho (vermelho) muito interessante21. E até a Comissão se adiantou ainda mais, falando da procura “de tarefas sociais hoje insuficientemente preenchidas que se revelam indispensáveis”. “A sociedade inteira, disse ela, deve procurar actividades úteis à sua existência, à sua qualidade, e que confiram a quem as exerça um real reconhecimento social.”22 A Comissão, entretanto, não se arriscou a encarar com mais ousadia a integração de tais tarefas nas actividades propriamente económicas e no circuito das permutas. Neste ponto ela acatou a timidez de numerosos sociólogos receosos da mercantilização dos serviços pessoais. Receio excessivo, penso eu, porque os poderes públicos são capazes, na condição de haver verdadeira vontade, de controlar e enquadrar actividades económicas mesmo que sejam privadas. Há necessidade, parece-me, de atrair mais a atenção sobre o essencial, sendo este essencial, em primeiro lugar que, o processo de diminuição do trabalho tradicional (nomeadamente agrícola, industrial e conexo), por causa da automatização proporcionada pela informática, só agora começou e não se pode sonhar em voltar atrás; consiste num processo que permite ao conjunto dos homens beneficiar de produtos agrícolas e industriais cada vez mais baratos, ou correspondendo a uma parte sempre menor de trabalho humano, o que é equivalente. A título provisório e não definitivo – ou melhor, sem saber qual será ao certo o futuro em termos de horário de trabalho –, a justiça social exige também que, na transição em que nos encontramos, partilhemos o tempo de trabalho disponível, ou, se se prefere, as oportunidades de trabalho que se apresentem. Mesmo compreendendo o que falta geralmente aos projectos correntes, em suma tímidos e conservadores (muitas vezes “corporativos”), a saber a aceitação de um certo diminuir ou não progressão do rendimento: a justiça social, é preciso voltar a usar esta expressão, exige-o. Mas urge sobretudo o empenho em busca da mudança de rumo do trabalho em direcção das novas necessidades e das novas actividades capazes de as satisfazer. E isto a Igreja devia pôr em prática, parece-me, na linha da sua doutrina sempre muito firme acerca do significado do trabalho. Procedendo assim, ela correrá eventualmente os seus riscos, mercê do que existe de contingente em qualquer proposta de novas medidas sociais, mas, ao menos, dirá algo de concreto e sairá do vago atmosférico que muitas vezes lhe apontam. Traduzirá, no terreno da acção, a sua convicção do valor do trabalho, meio essencial de se personalizar e socializar, como há pouco sublinhei, e simultaneamente a sua adesão a um princípio de justiça social, que jamais poderia ser sacrificado. Eis, portanto, uma linha de conduta muito firme para a doutrina social da Igreja de amanhã, permitindo a escolha entre as hipóteses, ou perspectivas diversas, que provoca a mudança assinalada pelo desemprego do nosso tempo. Com certeza que o desemprego implica, em qualquer caso, no fim de contas, grande mudança, mas depende da nossa vontade e das nossas escolhas, conforme a nossa concepção do homem, que tal mudança conduza a esta ou àquela forma de civilização e não a outra. O abono universal, por exemplo, pode parecer sedutor, mas é preciso avaliar o que ele significa de dependência de todas as pessoas relativamente ao Estado e, sem dúvida também, de negligência das novas necessidades. A promoção destas últimas, pelo contrário, proporcionando oportunidades de trabalho a muitos, oferece maior probabilidade de sociedade fraterna, em que cada um contribui (ou deve contribuir) para o bem comum.

Jean-Yves Calvez

Notas:

1 L’allocation universelle, Cerf, p.46.

2 Ibid., p.47.

3 Ibid., p.97.

4 Ele quis também muito expressamente a encíclica sobre o desenvolvimento, Sollicitudo rei socialis, mas, desta vez, mais em função das suas descobertas ao longo da primeira parte do seu pontificado.

5 Laborem exercens, 3, 2.

6 Ibid., 4.

7 Ibid., 4,1.

8 Ibid., 4, 2.

9 Ibid., 5,3.

10 Ibid., 6,2.

11 Ibid., 6,3.

12 Ibid., 6, 5-5.

13 Ibid., 12.

14 Ibid..

15 Ibid.,12, 4-5?

16 Ibid.

17 Ibid..

18 A atribuição de um subsídio é defendida por João Paulo II, ao escrever: “Este cuidado global pesa em definitivo sobre o Estado, mas não pode significar uma centralização operada unilateralmente pelos poderes públicos: trata-se, pelo contrário, de pôr em prática uma coordenação, justa e racional, no quadro da qual seja garantida a iniciativa das pessoas, dos grupos, dos diversos centros, dos ‘conjuntos de trabalho’ locais, tendo em conta o que já foi dito mais acima do carácter subjectivo do trabalho humano” (Laborem exercens, 18). Quanta responsabilidade social, colectiva está, de qualquer maneira, aqui implicada – algo que é, com certeza, hoje, por muitos, muito pouco entendido.

19 Alocução à Organização Internacional do Trabalho, 12.

20 Laborem exercens, 1.

21 Perante o desemprego, mudar o trabalho, op. cit., p.199. 22 Ibid., p.226.

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