Responsáveis da Pax Christi e da Comissão Nacional Justiça e Paz sublinham necessidade de solidariedade universal e comunitária, destacando apelos de Bento XVI para o Dia Mundial da Paz
Bento XVI coloca as questões do desenvolvimento e da ecologia no centro da sua mensagem para o Dia Mundial da Paz 2010. O presidente da secção portuguesa da Pax Christi, D. Januário Torgal, considera que o texto do Papa envolve a “questão da ecologia e liga-a, com rara felicidade, ao problema dos modelos de simplicidade de viver”.
Em entrevista à Agência ECCLESIA, o prelado admitiu o aparecimento de “graves constrangimentos sociais” caso não se resolvam as “urgências básicas e primárias de sobrevivência do ser humano”.
“Esse rumor, um tanto escondido, mas que anda nas estruturas do país que nós somos”, pode suscitar “desmandos que nos provam que não há justiça”, advertiu D. Januário.
Para o bispo das Forças Armadas e Segurança, a mensagem de Bento XVI, que “vem na linha da encíclica Caritas in Veritate”, advoga a instauração de uma “economia social, o deslocamento da prioridade das entidades lucrativas e a afirmação de modelos de solidariedade – alguns, felizmente, já praticados entre nós, como o microcrédito, as experiências de leigos ao serviço do desenvolvimento e a criação de bancos contra a fome, além de outras iniciativas cultivadas por institutos religiosos”.
A vice-presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), Maria do Rosário Carneiro, também concorda que a percepção dos desequilíbrios “tende a ter alguma tradução, embora não suficiente, na continuada procura de políticas sociais mais eficazes e que cheguem rapidamente perto daqueles que necessitam de uma maior compensação face à sua exiguidade e vulnerabilidade”.
A deputada da Assembleia da República pensa, no entanto, que estas atitudes “não resultam de uma alteração de paradigma de comportamento. “Pelo contrário – explicou – o que temos observado na sociedade contemporânea, nomeadamente as convulsões e os conflitos que se observam nas relações entre as pessoas, revelam comportamentos assimétricos, pouco sóbrios e pouco solidários”.
D. Januário Torgal reforçou esta tese com o exemplo das férias de Natal e de fim de ano: “Passe a ironia, num país com uma crise destas, acabo mais uma vez de ler – o que não me admira nada, conhecendo um pouco o desatino geral – que o Sul de Portugal está cheio”.
“O esquecimento de sofrimentos e angústias, paga-se desta forma; ora, o apelo do Papa vai no sentido da solidariedade universal e comunitária”, acrescentou.
Responsabilidade pessoal
A vice-presidente da CNJP não tem dúvidas de que a situação actual “é fruto da nossa liberdade”.
“Somos responsáveis – ou irresponsáveis, como se preferir dizer – pelos desequilíbrios, injustiças, assimetrias e vulnerabilidades que criámos, assim como por esta imensidade de pobres que não se consegue conter”, assinalou. E por isso a mensagem de Bento XVI indica, “de forma muito clara, que nos cabe a construção de uma cultura de paz”, destacou Maria do Rosário Carneiro.
A docente universitária recordou que cada pessoa é herdeira dos dons da criação, pelo que deve responsabilizar-se pela sua transmissão às gerações futuras.
Sem a consciência da necessidade de proteger a natureza, dificilmente se compreenderá as implicações que esta atitude pode ter na consolidação da paz, como propõe o título da mensagem de Bento XVI.
D. Januário Torgal hierarquizou a interdependência entre a criação e a promoção da equidade e da concórdia ao afirmar que “o respeito pela natureza tem que se articular com o primado da pessoa humana”.
Maria do Rosário Carneiro reconheceu que “tarda a percepção da necessidade urgente de se alterarem comportamentos”. “Mas temos que acreditar que haverá inteligência suficiente no espírito humano para perceber que o caminho que estamos a percorrer não conduz à paz”, adiantou.
Desapontamento com a conferência de Copenhaga
Referindo-se à conferência de Copenhaga sobre as alterações climáticas, D. Januário Torgal defendeu que os participantes “não tiveram a coragem de ir mais longe”.
“A prioridade escolhida por algumas pessoas revela um total desnivelamento com a natureza”, dado que os dirigentes mundiais pretendem garantir o acesso “aos recursos e à riqueza através de uma forma de desenvolvimento egoísta”.
“Quem paga a factura de tudo isto é a pessoa humana destruída”, especialmente quem não tem “qualquer defesa nem justiça por parte daqueles que controlam, exploram e não respeitam a integridade natural”, denunciou o prelado.
“O apelo que o Papa faz ao homem coincide com todos os movimentos ecologistas que eu conheço”, observou D. Januário Torgal. “Mesmo no seu radicalismo – explicitou – o que essas organizações não querem é que a pessoa humana seja vítima de poluições, de programas destruidores e de não ter um lugar consagrado na sociedade.”
“Há uma forma civilizada de tratar da natureza. E há uma forma incivilizada de a destruir ou de a pôr ao serviço do ganho de grupos e de algumas pessoas”, sintetizou o responsável máximo dos Serviços de Assistência Religiosa das Forças Armadas.
Maria do Rosário Carneiro partilha do mesmo entendimento: “A agressão que tem sido feita à obra da criação representa uma utilização indevida e egoísta, mediante pressupostos totalmente orientados para o interesse pessoal”.
Falta sensibilidade na sociedade e na Igreja
O presidente da Pax Christi constatou que a cultura do cuidado pela natureza ainda é muito nova, o que é agravado pelo facto de “ser muito pouco transmitida”. “Muitos falam do ‘respeito pelo ambiente’ – mas o que é que isso significa?”
“Quando se começa a tocar nesses problemas, dá-me a impressão de que a maioria das pessoas acha que estamos perante uma moda”, disse D. Januário, para quem a mentalidade geral não está “disponível nem amadurecida” para estas questões.
E o que é que a Igreja pode fazer em termos operativos? “Temos que confessar que é um programa que não está feito”, assumiu o prelado.
“No entanto – testemunhou – tenho assistido a muitos cristãos, até em casal, a lutarem por esta causa e a optarem, juntamente com os filhos, por práticas ecológicas”, como a poupança de água e electricidade, a separação do lixo ou o controlo dos gastos. “São coisas de que muitos se riem mas que são fundamentais e deveriam entrar nos programas de vida”, defendeu D. Januário Torgal.
A vice-presidente da CNPJ defende que a Igreja deve ser a primeira a dar o exemplo na adopção de modelos sustentáveis.
“Além das alterações de comportamentos individuais – que não são fáceis, porque toda a sociedade está orientada para consumos excessivos – temos que fazer um esforço concreto de educação, não só para as novas gerações, mas começando em nós próprios”, referiu Maria do Rosário Carneiro.
O presidente da Pax Christi sugeriu que os organismos eclesiais e os seus responsáveis veiculem experiências comunitárias centradas na protecção da natureza, dediquem homilias ao assunto e proponham cursos de aprofundamento. E conclui: “A cultura do respeito pelo ambiente é também uma espiritualidade”.