Nova evangelização: propor Cristo de novo

D. Manuel Clemente, bispo do Porto e vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, é um dos participantes no próximo Sínodo, que vai decorrer em outubro, no Vaticano.

D. Manuel Clemente, bispo do Porto e vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, é um dos participantes no próximo Sínodo, que vai decorrer em outubro, no Vaticano. Em entrevista à Agência ECCLESIA, antecipa os principais temas que vão estar em debate, perante centenas de participantes, incluindo o Papa Bento XVI.

 

Agência ECCLESIA (AE) – Que significado novo trouxe à Igreja Católica a expressão “nova evangelização”?

D. Manuel Clemente (MC) – ”Nova evangelização” designou, desde João Paulo II, algo que vinha sendo sentido e não encontrara ainda expressão própria. Refiro-me à necessidade de relançar a evangelização na Europa e além desta, já patente em João XXIII e Paulo VI. Tal necessidade correspondia à consciência de que o mundo mudara muito ao longo do século XX e sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. Acentuara-se a deslocação das populações para os centros urbanos, perdendo ritmos religiosos tradicionais; rarefazia-se ou individualizava-se a conotação religiosa da existência; alargava-se a consciência mundialista e inter-religiosa, com acesso generalizado aos media…Estes e outros fatores questionavam íntima e externamente os crentes, em termos de desagregação social e familiar, secularismo, relativismo… Provindo duma Igreja resistente (ao ateísmo do regime  polaco da altura), João Paulo II trouxe para Roma e para o mundo católico uma nova militância, afirmativa e irradiante, muito além das fronteiras vaticanas. Incarnou à sua maneira forte e entusiasta a grande convicção cristocêntrica do Vaticano II e de Paulo VI. Como jovem bispo conciliar, colaborara na Gaudium et Spes, não se esquecendo de repetir e glosar em todo o seu longo pontificado um dos trechos mais incisivos daquela constituição pastoral: “O mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo Encarnado” (GS 22). Para João Paulo II, na esteira dos seus referidos antecessores, “nova evangelização” significa propor Cristo de novo, como realização cabal da esperança humana, pela graça divina.

 

AE – Em 1983, no Haiti, quando falava na abertura da XIX Assembleia Plenária da CELAM, João Paulo II dizia que esta evangelização deveria ser “nova no seu entusiasmo, nos seus métodos, na sua expressão”. Em causa estão questões formais?

MC – Entendemos a esta luz que a famosa expressão de João Paulo II, referindo uma evangelização “nova no ardor, nos métodos e na expressão” é muito mais do que retórica. E pela ordem enunciada, com primazia para o ardor ou entusiasmo. O Papa estava profundamente convicto de que a paixão por Cristo – e só esta! – encontraria no século XX os melhores métodos e expressões para O testemunhar a quem quer que fosse e onde quer que fosse. Assim como os discípulos de Emaús, a quem “ardia o coração”; assim como Paulo, que queria “alcançar Aquele que o alcançara”; assim como os evangelizadores das épocas expansivas do cristianismo bimilenar; assim como ele próprio assimilara na sua Polónia arriscadamente católica.

 

AE – Que alcance terão tido os projetos de nova evangelização já concretizados em Portugal?

MC –  Para os que nascemos e tivemos catequese antes do Concílio, mantendo-nos depois na vida eclesial ativa, a visão retrospetiva recolhe vários indícios de “nova evangelização”, antes e depois de ser assim formulada. Destaco entre eles: a maior atenção à Palavra de Deus (em chave cristológica), ouvida, lida, meditada e compartilhada; a maior vivência comunitária dos sacramentos, sobretudo da Eucaristia, como realização do “corpo eclesial de Cristo”; o reforço da ação sociocaritativa, do diálogo ecuménico e inter-religioso e dos novos modos e protagonistas da missão, longe ou perto; a presença na comunicação social e mediática, assimilando também os seus modos e ritmos; a responsabilização laical e familiar na sociedade, como “fermento na massa” – e numa “massa” que já não se garante em termos de “cristandade”, antes a desafia em pontos cruciais da mentalidade e dos comportamentos… Nessa e noutras áreas, há muita coisa feita e muitíssima por fazer ou em curso. Quando se estudarem sistematicamente os planos, programas e iniciativas das dioceses, da CEP, dos institutos e movimentos em Portugal, do Concílio aos nossos dias, a visão geral será surpreendente.

 

AE – Que contributo espera que o Sínodo ofereça ao projeto da nova evangelização?

MC – O Sínodo dará, antes de mais, um conspecto geral e circunstanciado do que se tem feito e pensado sobre o tema, por esse mundo além. Depois, permitirá apurar conceitos, não sendo exatamente o mesmo encarar a “nova evangelização” do ponto de vista “cultural” – incluindo os indispensáveis debates filosóficos e a equação correta das relações entre ciência, razão e fé, bem como a dimensão estética do cristianismo -, ou verificar a condição básica do seu processamento, que passa pela redefinição ou reconfiguração comunitária da vida cristã, meio vital para que tudo o mais aconteça e irradie. Estas e outras são dimensões distintas e complementares da “nova evangelização”, que o Sínodo ajudará a esclarecer e sistematizar.   

 

AE – É possível determinar o rumo de uma nova evangelização à escala universal? Que desafios estão reservados para as instâncias de decisão e de evangelização locais?

MC –  O rumo será decerto cristocêntrico, porque, enquanto cristãos, é com a pessoa de Jesus Cristo que entraremos na reconstrução dum mundo tão fragmentário e dissonante como o atual. Entraremos pessoal, familiar e comunitariamente, vivendo em todas estas dimensões a dinâmica pascal da existência e oferecendo-a aos outros, como possibilidade de realização “em Cristo”. Isto em geral, porque localmente as concretizações serão conformes a cada espaço e cultura. Na primeira evangelização, o cristianismo ganhou a cor própria dos lugares onde chegou, mantendo a seiva comum do Espírito de Cristo. Mas, ainda hoje, mesmo com as particularidades linguísticas e rituais duma Igreja malabar ou copta, grega ou latina, em todas elas nos sentimos “em casa”. E o cristianismo é uma casa para toda a gente, porque toda a humanidade é a casa de Cristo. Também por isso João Paulo II lembrava que “o homem é o caminho da Igreja” (cf. Redemptor Hominis, 14).

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top