D. Serafim de Sousa Ferreira e Silva, Bispo de Leiria-Fátima 1. A constituição dogmática do concílio Vaticano II (21-XI-1964) sobre a Igreja começa por declarar Cristo como “Luz das gentes” (Lumen gentium). E o Papa João XXIII, na abertura do mesmo Concílio (11-10-1962) rezava assim: ”O Deus, que a luz da Tua graça superna nos ajude a tomar as decisões”. Desde sempre a simbologia da luz, em todas as culturas, envolve os conceitos de conhecimento e rectidão. No Génesis, por exemplo, a tentação de comer o fruto proibido gravitava à luz de uma promessa sedutora: “Abrir-se-ão os vossos olhos” (38). O que não se fez luz, pois era um engano e foi uma frustração! Na histórica caminhada civilizacional, quando se desenvolveram os conhecimentos científicos, ficou registado para sempre “o século das luzes”… Vem isto a propósito de um grande homem, que buscou a luz e foi luz: Santo Agostinho. A Diocese de Leiria-Fátima está a comemorar o nascimento do seu Padroeiro. Agostinho nasceu em Tagaste (Suk-Arrás) em 13 de Novembro do ano 354. Vai perfazer 1650 anos. A nossa Diocese inicia um ano de celebrações, a que me associo com esta nota pastoral, que poderei titular de “um homem das duas luzes: a fé e a razão”. 2. Quisemos dar início à nossa peregrinação aos “passos de Santo Agostinho” no norte de África, nesta igreja de Santo Agostinho, cidade de Leiria, na margem esquerda do rio Lis, junto ao moinho de papel e no sopé do monte de Nossa Senhora da Encarnação, baluarte de fé, que contrasta frontalmente com o outro monte, que é de defesa e de ataque, ou guerra, o velho castelo. A igreja de Santo Agostinho, que teve início, não pacífico, em 5 de Agosto de 1577, sendo bispo D. Frei Gaspar do Casal (o que falou “multa paucis” no concílio de Trento), é também testemunho de possíveis atritos e conflitos entre a fé e a razão, ou melhor, entre as razões da fé e as razões circunstanciais de pessoas, tempo e lugar. A igreja, incorporada no respectivo convento, pertencia à Ordem de Santo Agostinho. A extinção das ordens religiosas em Portugal provocou profanações e vicissitudes várias na mesma igreja, até que em 4 de Agosto de 1944 foi restituída à Diocese. Continua espoliada dos seus anexos, que fazem parte da mesma volumetria e não atestam a harmonia de comunhão ou sinfonia de acção entre culto e cultura. 3. O magistério, ou missão profética, de Santo Agostinho, Bispo de Hipona, é muitas vezes classificado, na Patrística e nos textos pontifícios, de “luminoso”, ainda que com vocábulos sinónimos ou equiparados, como preclaro, exímio ou lúcido. João Paulo II, em 8-5-1982, à semelhança do seu predecessor S. Celestino que em Maio de 431 co1ocava Agostinho de Hipona entre “os melhores mestres da Igreja”, proclamava (no Instituto “Augustinianum”) que a doutrina deste Mestre deve ser “estudada e difundida”, de tal modo que continue na Igreja o seu “magistério luminoso”. Santo Agostinho, pensador e mestre para todos os tempos e lugares, permanece luz perante ocasionais núvens de passagem, ou diante de trevas mais densas e persistentes. O mestre foi sempre aluno diligente, abrindo-se ao Espírito. Bastará esta citação exemplar das “Confissões” (livro 7,X,16), que, na caminhada da conversão ou “progresso no entendimento das coisas divinas” faz confessar: ”Entrei no íntimo do meu coração e vi sobre a minha inteligência uma luz imutável” (em latim “incommuntabilem”). O mesmo Espírito não se esgotara na Bíblia, mas esta era a fonte normal e principal. Por isso Agostinho confessa: ”Fui ressabiado e cego contra as Escrituras luminosas da Tua luz” (9,IV,II). 4. A Bíblia é o compêndio da revelação e a alma de toda a Teologia. A imagem da luz aparece muitas vezes. Limitando-nos ao Novo Testamento, podemos ler aí ser chama de Luz o próprio Deus (1 Jo.1,5). E veio ao mundo (em Jesus Cristo) “para iluminar todos os homens” (Jo. 1,9). Por sua vez S. Paulo declara que Deus “habita na luz inacessível” (1 Tim.6,16), isto é, suprema e absoluta, que não está sujeita a qualquer apagão, mas que pôde não ser vislumbrada pela rebeldia e cegueira dos homens livres e pecadores. Também o Primeiro Papa, S. Pedro, diz na sua primeira encíclica, ou carta pastora1: ”Deus chamou-nos das trevas para a Sua luz admirável” (2,19). Finalmente, para não nos alongarmos, podemos ler no Apocalipse: ”A vida celeste não precisa do sol, porque é iluminada pela glória de Deus” (21,23). O filósofo e teólogo Agostinho buscou a luz, corrigiu fusíveis queimados, fez ligações, iluminou as estradas, e foi luz. 5. Todos sabemos, por experiência vivida, que as núvens e as penumbras obnubilam a nossa inteligência finita, e não facilitam que o pensamento navegue até ao infinito. São da condição humana as múltiplas hesitações e dúvidas. Aqueles que conseguiram romper as diversas “camadas atmosféricas” do seu habitat e na sua própria encarnação podem testemunhar a dimensão transcendental. Os cristãos aparecem na primeira linha, entre todos os crentes, pois têm a Revelação. Por isso Jesus Cristo insiste: ”Brilhe a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt.5,16). Na pegada do Mestre e único Salvador, aquele que deixou de ser Saulo, passou a ver, e a ser o apóstolo das gentes, assim exorta: ” Comportai-vos como filhos da luz, produzindo os frutos da luz, que são a bondade, a justiça e a verdade” (Ef. 5, 8-9). O rico património da fé cristã é constituído pela Sagrada Escritura, a Tradição e o Magistério da Igreja, de maneira inseparável. É assim que diz a constituição dogmática “Dei Verbum” sobre a divina Revelação: ”Fique claro que a Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo plano divino, estão de tal maneira unidos e associados, que um sem os outros não tem consistência, e todos contribuem eficazmente para a salvação das almas” (10). 6. Santo Agostinho bebeu nessa tríplice fonte do Espírito, e não só passou a ver, como o convertido de Damasco (AA,9), mas também enriqueceu o património doutrinal, com pepitas de ouro de alto quilate. Na solidão de Cassicíaco, Agostinho iniciou o processo da sua iluminação interior. Mas não parou, nem descansou, até que se encontrou face a face com o Senhor da Luz. O Papa João Paulo II escreveu a Carta Apostólica “Augustinum Hipponensem” (28-8-1986) no 16.º centenário da conversão de Santo Agostinho. É um belíssimo texto do Magistério da Igreja, que tentaremos difundir e aconselhar a ler. Aí o Sumo Pontífice sublinha as virtudes e prerrogativas mais notáveis do Hiponense, que classifica de “luminosas intuições” (em latim; illuminatas conceptiones) entre a fé e a razão. Mais tarde (14-9-1998), na carta encíclica “Fides et Ratio”, o mesmo Papa começa por dizer: ”A Fé e a Razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade… e possa chegar também à verdade plena sobre si próprio”. 7. Agostinho não precisou de visitar o templo de Delfos, para ler no dintel do seu pórtico: “Conhece-te a ti mesmo. Leu os filósofos, auscultou a vida e entrou dentro de si. A luz do Espírito e a palavra da Bíblia iluminaram o seu espírito, com o dom da palavra e da escrita. Continua a falar. Na caminhada da vida, a humanidade e cada um de nós, em qualquer tempo e em qualquer lugar, sentimos os paradóxos e os mistérios. Para se atingir a lucidez, requer-se muita humildade sincera, ao mesmo tempo que se exige determinação e coragem. Qualquer desvio pode fazer correr o risco de se cair no “fideísmo que despreza a razão”, ou no “racionalismo que exclui a fé”. Agostinho consegue fazer comunhão e síntese. E voou alto com essa duas asas. Foi esse o segredo de Agostinho. Reconheceu as diferenças e as tendências, mas conseguiu a convergência para a unidade e para o infinito. Do ambão ou do púlpito da sua missão profética (ele é sacerdote para sempre) podemos escutar o eco de um Professor e Pastor que repete: ”crede ut intelligas”, mas ao mesmo tempo “intellige ut credas”. Quer dizer: crê para que entendas, e procura entender, para que creias. Começa por te abrir à fé, que é tónico e antibiótico, para que o espírito se abra ao Espírito. 8. No seu magistério, Agostinho (cfr. De Civitate Dei) sublinha com frequência que os valores pagãos são património da humanidade. O que é verdade. Mas falta-lhes a luz sobrenatural de Cristo, que nos revelou um Deus que é Pai e nos incita a vivermos coerentemente como irmãos. Estes irmãos, tão dispersos e tão plurais, podem educar a liberdade e corrigir o egoísmo, tendo sempre presente que “Deus não justifica aquele que não quer ser justificado”. Eis toda a antropologia agostiniana e cristã. Agostinho conjugava, nas coordenadas da ética e da estática, o trinómio da liberdade, da verdade e do amor. Era à luz da liberdade responsável que descobria a força da verdade, e fazia frutificar o amor. Sem dúvida, é a liberdade luminosa que dá razões de viver e ressuscitar. A liberdade humana ilumina os caminhos e elimina as angústias, fornecendo atempadamente energia ou combustível para as luzes da fé e da razão. 9. Ousamos dizer que somos luz. Todavia, adverte Agostinho, esta luz “ainda não é visão” completa e definitiva. Folheando as “Confissões”, podemos ler (por coincidência no n.º 13 do livro 13) o seguinte: ”Outrora fomos trevas, agora somos luz no Senhor, pela fé; ainda não pela visão” (em latim: “per fidem” e “per speciem”)… Como caminheiros no tempo e para fora do tempo, vamos tendo vontade e força para dar os passos, e olhar para além do horizonte. Os crentes, nomeadamente os cristãos, conhecem os meios e os caminhos que conduzem à meta da chegada. Sempre na vigilância e na esperança! Agostinho caminhou e tropeçou. Mas foi sempre peregrino da verdade. Nunca caiu na tentação da preguiça e do “tanto faz” . Jamais se divorciou da humanidade. Mesmo quando se retirava para meditar, não se isolava dos outros e de todo o mundo. Nem ficava indiferente perante os lumaréus ou fugazes raios de luz para o pensamento, que poderia gerar atitudes tenebrosas. Por isso, corajosamente combateu os desvios, as heresias e os erros. E fez a festa do grande encontro com Aquele que é Luz e Vida. O pensador e lutador Agostinho continua a ser farol, na busca sem tréguas e no diálogo com audácia e esperança. 10. Oxalá o “ano agostiniano” na nossa Diocese de Leiria-Fátima, em permanente caminhada sinodal, seja mais um reforço e gesto de vida sacramental de “confissões” da nossa fragilidade e das nossas faltas, de “promessas” de perdão recíproco e entreajuda, de “celebrações festivas” da nossa vida e da nossa esperança. Diante dos dois Padroeiros da nossa Diocese, rezo também à “Senhora mais brilhante que o sol” que ajudem a vermos a Luz e a sermos luz. Com as “duas asas” milagrosas da fé e da razão, queremos voar até ao Infinito, e aí celebrar, desde já a Luz da Vida. Leiria, 13 de Novembro 2003, dia de todos os Santos da Família Agostiniana. + Serafim de Sousa Ferreira e Silva Bispo de Leiria-Fátima