Noite de Natal

Homilia de D. José Policarpo, na «missa do galo» “No nascimento de Jesus, Deus entra na História dos Homens” 1. As filosofias, o pensamento e a arte, toda a cultura como quadro interpretativo da existência, sempre perceberam que a salvação do homem, isto é, a sua libertação para uma realização plena, acontecem na história, estão ligadas à sua história. Não podia ser de outra maneira, pois a própria história é construída pelo homem, tecida longamente por todas as expressões da sua liberdade e da sua criatividade e a relação do homem com Deus sempre foi uma das inspirações do agir humano e, por isso, da própria história e a Palavra de Deus e a fé dos homens tornaram-se luz interpretativa da existência colectiva dos povos. Para nós cristãos é impossível desligar a nossa salvação, acção de Deus em nós e connosco, da história onde ela acontece, a história da nossa salvação. Os nossos irmãos do Antigo Testamento já tinham uma consciência viva da relação da Palavra de Deus com a história. Quando a Palavra era dita por Deus ao Seu Povo e por este escutada, ela tornava-se acontecimento e para quantos quisessem, no presente ou no futuro, captar o sentido profundo desses acontecimentos, tinham de escutar de novo essa Palavra que os gerara, pois só ela encerrava o segredo do seu mistério. A própria esperança messiânica era sempre situada no âmago da história presente e futura do Povo de Israel. Ele herdará o trono real de David, implantará a justiça e construirá a paz definitiva. Era impossível alimentar a esperança messiânica sem esperar um futuro diferente para o Povo, finalmente assente no direito, na justiça e na paz. Mas o nascimento de Jesus ultrapassou todas as expectativas da esperança messiânica: com Ele é o próprio Deus que entra na história. O nascimento de Jesus é um momento decisivo na construção e na interpretação da história da humanidade. Há um período antes de Cristo e um outro, intrinsecamente diferente, depois de Cristo. Com a manifestação de Deus na história, em Jesus Cristo, a acção de Deus já não inspira apenas a história sagrada do Povo eleito, mas a história de toda a humanidade. O autor sagrado foi ajudado, nesse alargamento do horizonte da relação da acção de Deus com a história da humanidade pelo facto de Jesus ter nascido num tempo em que Israel fazia parte do Império Romano, que simboliza toda a terra. São Lucas faz questão em relacionar o nascimento de Jesus com um grande acontecimento do Império: o primeiro recenseamento universal ordenado por César Augusto: “Naqueles dias, saiu um decreto de César Augusto, para ser recenseada toda a terra. Este primeiro recenseamento efectuou-se quando Quirino era governador da Síria”. Depois de identificar, hiperbolicamente, o Império Romano com toda a terra, os parâmetros históricos para o nascimento de Jesus vai São Lucas buscá-los à história do Império Romano e não apenas à do Povo de Israel. Não deixa de ser simbolicamente significativo que os “pequenos acontecimentos” que ditaram os pormenores do nascimento de Jesus, sejam provocados por “grandes acontecimentos” da história da humanidade. Ele, realização definitiva da promessa da salvação para todos os homens, nasce num momento em que o Imperador quer saber quantos são esses homens e que Jesus tenha, porventura, sido contado como apenas mais um dessa multidão imensa de seres humanos, cuja conta exacta só Deus conhece. Ele é recenseado, com Maria e José, por um Imperador que queria contar os habitantes da terra, mas só Ele sabe o número dessa “multidão imensa que ninguém pode contar”, mas que Ele conhece, um a um, porque nasceu e há-de morrer e ressuscitar, para que tenham a vida. Celebrar o Natal ou a Páscoa, viver a nossa vida unidos a Jesus Cristo, como seus discípulos, é indesligável da história que construímos com todos os outros homens e mulheres, nossos irmãos. Isolar a vivência da fé da história é o mesmo que desligá-la da vida ou renunciar à harmonia unificadora de toda a existência. E isolar a fé cristã da história é separá-la da vida da cidade dos homens, reduzindo-a a um espaço intimista de outra natureza. Desde que Deus nasceu homem, em Jesus Cristo, a vivência da fé cristã é uma força motivadora e interpretativa da história. É esse o sentido da presença dos cristãos na cidade e da contínua proclamação do Evangelho. Como dinamismo construtor da história, a fé em Jesus Cristo é uma exigência de qualidade humana na edificação da cidade, porque Ele veio implantar o direito e a justiça e tornar definitivamente possível a paz. No Evangelho do Reino Jesus fará da liberdade do coração e do amor fraterno os dinamismos que aproximam a história dos homens do próprio Reino de Deus. Este é o sentido da presença dos cristãos na cidade, pois esta força criativa de Deus na história, são os cristãos que a guardam no seu coração, como exigência generosa, luz de discernimento, para a edificação de um mundo novo, cada vez mais expressivo da dignidade do homem e, por isso, mais perto do próprio desígnio de Deus. A acção evangelizadora da Igreja é indesligável desta responsabilidade dos cristãos na cidade dos homens, empenhados em todas as dimensões da edificação da cidade terrestre, com a luz e a força de Jesus Cristo. Na política, na economia, na justiça, na escola e na empresa, em todos os lugares e momentos onde se constrói e se decide a vida da comunidade humana, os cristãos devem estar como cristãos, introduzindo agora na história humana a tensão de superação e perfeição a que Jesus Cristo nos convida. Oxalá a “missão na cidade” em que estamos empenhados suscite esta consciência de intervenção dos cristãos na construção da cidade dos homens, edificada sobre o direito e a justiça, repassada de amor generoso e consciente das exigências morais que brotam da dignidade do homem, como realização da sua vocação cristã. Ao convocar a Igreja de Lisboa para a “missão na cidade” eu convido todos os cristãos e cristãs, cada um na esfera da sua capacidade e competência, no lugar onde exercem a sua qualidade de cidadãos, a serem protagonistas de um mundo novo, procurando incutir na sua intervenção e no seu trabalho, a generosidade e a qualidade que todos desejamos para a nossa sociedade. Vivemos este Natal num momento particularmente empenhativo da nossa comunidade humana. Mais uma vez vemos discutir, confrontar, procurar caminhos para Portugal, soluções para problemas, objectivos a atingir, modelos de desenvolvimento e de convivência. Que os cristãos não se alheiem deste momento, no exercício pleno das suas responsabilidades democráticas; lutem por objectivos e soluções que concretizem o ideal de sociedade em que acreditamos, que garantam os valores que defendemos e que não significam apenas a defesa da nossa fé, mas a defesa da dignidade da pessoa humana. Estamos a escrever mais uma página da nossa história; desde que Deus entrou na história, em Jesus Cristo, Ele não pode ficar ausente de nenhum momento da história dos homens. E isso depende, em grande parte, da qualidade com que os cristãos se comprometem na construção do futuro de todos nós. Havemos de fazê-lo com a força do Espírito que nos fortalece e ilumina, com a ousadia dos profetas, com a serenidade e o respeito dos construtores da paz. Que Nossa Senhora da Conceição, Rainha de Portugal, nos proteja, nos ilumine e nos conduza. Ela ensina-nos a sermos fiéis ao Evangelho do Seu Filho, que hoje adoramos em Belém, no mistério do Seu nascimento. Sé Patriarcal, 24 de Dezembro de 2004 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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