No pós-referendo

Eugénio Fonseca, Presidente da Caritas Portuguesa, destaca esforço contínuo em favor da vida Estive a aguardar o resultado do referendo que levou o país a debater o grave problema do aborto para escrever estas linhas de opinião. Durante as últimas semanas agitaram-se princípios, discutiram-se conceitos científicos, falou-se de vida e de concepção, estabeleceram-se diferenças entre procriar um ser e formar um futuro cidadão, tentou-se avaliar dissemelhanças entre a genética e as influências do meio envolvente, politizaram-se abertamente opiniões e argumentos, falou-se do papel da Igreja e do Estado, da posição e das influências das concepções religiosas de cada um, formaram-se grupos oficializados num processo mobilizador da sociedade civil – como é uso dizer-se agora -, enfim poucas vezes se viu na rádio, na TV, nos tempos de antena e nos jornais tanta opinião e tão díspares tomadas de posição. E, no aceso das discussões e da apresentação das opiniões, foi sobressaindo um facto concreto duma importância que consideramos fulcral: a necessidade dum planeamento familiar que atinja todas as camadas sociais, a necessidade de implementar o ensino sobre a sexualidade na juventude, o repúdio da destruição da gravidez como meio anticoncepcional, a verificação de que se impõe à sociedade tomar medidas sérias e urgentes que verdadeiramente permitam que a mulher (e o homem responsável pela gravidez) não necessite, nem sequer de pensar em abortar. Falou-se muito da fragilidade do ser em formação, à mercê ou não de decisões da mãe, discutiu-se sobre o direito da mulher poder ou não dispor do seu corpo, do seu ventre, de ter ou não em conta os direitos desse ser frágil e incapaz de se defender das prepotências dos adultos. Falou-se do direito à vida, do direito a ser desejado e do direito a ser um ser adulto de posse de todos os seus direitos de cidadania. Mas, no meio de todo este “ruído”, o argumento que mais me confundiu foi o de não sermos um país tão civilizado como outros que já tinham assumido a liberalização do aborto, nas condições sujeitas a referendo. Mais perplexo fiquei quando, após a divulgação dos resultados, escutei que, a partir de agora, Portugal junta-se aos países defensores dos direitos humanos. Espante-se! Gostaria, porém, que o grau de civismo de uma sociedade, incluindo a portuguesa, e a luta pelos direitos inalienáveis de cada ser humano fossem medidos pela necessidade de protecção a qualquer ser frágil – independentemente do seu estádio de vida – e com poucas possibilidades de se defender das agressões dessa sociedade. E nesta linha não posso deixar de pensar que, neste mundo egoísta e individualista, existem milhões de excluídos, de pessoas sem assistência de qualquer tipo, sem tecto, sem água potável, sem medicamentos, e morrendo de fome, nos quatro cantos do mundo. Só, em Portugal, são dois milhões os que vivem no limiar da pobreza e a luta contra a droga, a gravidez precoce, a crescente desertificação ou massificação do litoral, que geram isolamento e solidão, são batalhas mal sucedidas. A lentidão da justiça e a dificuldade dos que não dispõem de recursos financeiros lhe terem acesso em tempo oportuno; o acesso a cuidados de saúde, muitos deles elementares, (milhares sem médico de família e/ou a aguardar uma intervenção cirúrgica) é ainda uma miragem para muitos portugueses; o insuces-so escolar e a falta de infra-estruturas sociais (creches, por exemplo), de ensino, de desporto, de cultura e de saúde são realidades sentidas em vastas zonas do país… Por causa de tudo isto, e para que se construa um país verdadeiramente civilizado, gostaria que, uma vez resolvido com rectidão e sã consciência este debate de opiniões sobre o aborto, ficasse bem viva no coração de cada português esta necessidade de cuidar dos outros necessitados de apoio e ajuda. Gostaria que, no seguimento da primeira encíclica de Bento XVI, o Amor aparecesse como fulcro da vida de todos nós, cristãos e não cristãos, como guia do comportamento de todos os cidadãos levando à anulação das condições geradoras de guerras, de terrorismos ou de corrupções. Depois do primeiro referendo parece que se ficou com a impressão de que pouco ou nada se modificou. Mas não! Felizmente, em muitas Dioceses surgiram grupos de apoio à vida e abriram-se centros de apoio a mulheres grávidas. Depois deste, no campo particular do aborto, temo que não se eliminem os males que estiveram na origem desta consulta popular, mas gostaria e faço ardentes votos que os homens fiquem mais sensibilizados para o sofrimento dos outros, e para o facto de que só o “amor vivido” em toda a sua dimensão de entrega, serviço e doação, pode ser a salvação deste desfiladeiro para onde parece descer o nosso mundo – e por esse caminho também teríamos a solução verdadeira e plena do problema do aborto. Eugénio Fonseca

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