Escritora acredita que a pandemia fez aproximar mais famílias e vizinhos, mas também mostrou que é urgente repensar as respostas de apoio aos idosos. Numa conversa a propósito do Dia dos Avós, fala da falta que sente dos abraços aos netos, e da preocupação que passou a ter em telefonar a quem está mais só. E conta como tudo isso a inspirou para um novo livro, que já vai com 40 capítulos.
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia)
Nos últimos anos foi ganhando mais popularidade o Dia dos Avós, que se celebra a 26 de julho, a data em que a Igreja assinala o dia de S. Joaquim e Santa Ana, os avós do Menino Jesus. É importante que haja um Dia dos Avós?
Eu acho que é. Já que há Dia da Mãe e Dia do Pai, porque não haver também um dia dos avós? Embora os avós devam pensar nos netos, e os netos nos avós, nos outros dias todos. Mas, eu sou muito de festejar as coisas, de maneira que se há um motivo para festejar, então vamos festejar. E pelo menos no Dia dos Avós podemos falar um bocadinho mais do que é a relação – porque às vezes é um bocadinho complicada – entre avós e netos. Acho que só por isso vale a pena haver um dia dos avós.
A Alice foi avó cedo?
O meu filho tem quatros filhos (e sete cães!), foi pai relativamente cedo, com 20 e poucos anos. Portanto, tenho quatro netos, a mais velha tem 25 anos, o segundo tem 21, o outro 20 e a mais nova 15.
E como avó, como é que viveu a fase do confinamento?
Muito mal. Aquilo que mais me custa é não poder beijar os meninos, não poder abraçar os meus netos. E quando algum vem – porque eles não vivem em Lisboa -, é só assim as mãozinhas e mais nada… o que é complicado, porque eu sou muito de afetos, de beijar os miúdos. Mas, isso não impede que não se converse, que não se fale.
Acho que com isto nos habituámos a falar mais com as pessoas. Havia pessoas a quem eu nunca ligava, e que nunca me ligavam, e agora ligam-me todos os dias. E com os meus netos também, até faço vídeo chamadas para a que está em Cambridge, que é cientista lá. É evidente que há um vidro entre nós, que é uma coisa fria, mas sempre dá para ver como é que ela está. E com os outros também, que estão em Torres Novas. Mas, eu digo sempre: assim que isto acabar – não sei quando, nem como, mas espero que acabe – eu vou para a rua beijocar as pessoas todas! Isso faz muita falta.
Essa recuperação do tempo de conversa – e tem refletido sobre isso – é uma das coisas que a pandemia trouxe. Não vou dizer que o vírus trouxe coisas boas, mas há efetivamente lições a aprender?
Para já aprendemos que há imensas coisas que não nos fazem falta nenhuma! Depois, eu pelo menos, não é gostar mais das pessoas, mas passei a ligar-lhes mais, a saber como estão. E há coisas extraordinárias: eu tenho um amigo que é contador de histórias, as pessoas pedem-lhe que vá contar uma história a um amigo, a um primo que vive não sei onde, ele telefona para lá, conta uma história, e a pessoa fica feliz e contente.
Cada pessoa tem de ver o que é que pode fazer. Eu ia muito, muito a escolas, e isso faz-me falta, mas agora faço por Zoom. Ainda há dias estive quase uma hora e meia na Universidade do Funchal. É bom, é agradável, podemos ver as pessoas e falar com elas.
Às vezes penso: se este vírus tivesse chegado numa altura sem novas tecnologias, como é que era? Devia ser ainda muito pior.
Numa entrevista que deu há uns anos sublinhou que muitas das avós de hoje ainda estão no ativo, têm a sua vida, mas que muitas vezes a casa dos avós também é um ‘depósito’ dos netos. Esta pandemia terá feito mudar alguma coisa na forma como entendemos o papel dos mais velhos em geral, e dos avós em particular na sociedade e na família?
Penso que as pessoas estão mais juntas, mas se as avós não estiverem em casa com os netos, eles também não podem ir para casa deles… Mas, apesar de tudo, acho que as relações ficam melhores. Também não estou a dizer que o vírus traz coisas boas, mas há uma nova consciência. Preocupávamo-nos com coisas sem importância nenhuma, e agora, de repente, aquilo com que nos preocupamos são muito menos coisas, mas são muito mais importantes: saber se ele estudou, se ele fez isto, telefonar para ele, ‘como é que foi?’. É uma coisa que nos une muito, embora, evidentemente, não se possa estar mesmo ao lado. Mas havemos de poder.
E teremos ficado mais atentos à questão da solidão?
A solidão… Uma amiga minha dizia, neste tempo todo, ‘ai, eu gosto tanto de estar em casa’. Eu também, desde que saiba que se quiser posso sair.
Por um lado, há pessoas que lidam mal com a solidão, porque estão sozinhas e as pessoas não se lembram delas, por isso é que eu me esforço muito por telefonar para as minhas amigas mais velhas. Ainda agora, quando chegar a casa. Tenho uma lista para não me esquecer, porque elas precisam disso, e estamos ali na conversa. Mas, há pessoas que sofrem muito por estar sozinhas em casa. Por outro lado, não sei se não terá sido complicado – agora as pessoas já podem sair, mas quando foi do confinamento – estar tanto tempo em casa com o marido e com os filhos, ter de fazer as coisas e aturar o marido. Não deve ter sido muito fácil.
A verdade é que temos sempre de pensar nas pessoas mais velhas. Eu – não sei se isto é bom, se é mau -, a esmagadora maioria dos meus amigos tem a idade dos meus filhos, de maneira que tenho de pensar bem quem é que são as mais velhas, ou da minha idade, para lhes telefonar. Mas acho que isso é importante, elas gostam, estamos ali ao telefone, e é uma alegria enquanto estamos na conversa.
A mensagem que a Comissão Episcopal do Laicado e Família divulgou para este Dia dos Avos diz logo no título que ‘Os avós são um tesouro’, que deve ser protegido e cuidado, porque “uma sociedade que não protege, não cuida e não admira os mais velhos, está condenada ao fracasso”. A pandemia pôs isto mais em evidência? Acredita que se passará a valorizar mais o papel dos idosos?
Penso que sim, até porque nesta pandemia estão muito mais próximos de nós. Não estou a dizer ‘próximos’ fisicamente, mas falamos mais com eles, e tenho ideia de que isso vai continuar, esse cuidado com os mais velhos, com os avós.
Há coisas que os avós “ensinam”, transmitem, que os pais não fazem, e isso deve ser continuado. O professor João dos Santos dizia, em relação a isso, que era muito importante haver uma geração de premeio, e eu vejo isso: eu digo e conto à minha neta coisas que não conto aos meus filhos, porque ela é minha neta, já há uma geração pelo meio que faz toda a diferença.
A relação é diferente…
É diferente. A minha relação com os meus netos é extraordinária! E falo sempre mais dos netos, porque não tive avós, já não os conheci.
Mas, acho que esta pandemia é capaz de ter feito isso, sobretudo com as pessoas de mais idade. Ainda ontem recebi um telefonema de uma pessoa a dizer ‘não sei se ainda se lembra de mim’, e eu já não sabia dela há não sei quanto tempo. E não era para nada especial, só para dizer ‘está boa, está tudo bem?’.
Mas, soube-lhe bem?
Então não soube! É muito bom, porque é outra pessoa que nos fala, não estamos sozinhos. A minha filha diz que não, que isto é um disparate, mas eu acho que as pessoas, no fim disto tudo, se calhar vão ficar melhores pessoas.
A mensagem da Igreja católica para o Dia dos Avós também fala da importância dos avós como “transmissores” de saberes e de valores fundamentais. Concorda?
Ai, concordo! Os avós transmitem coisas que os outros não podem transmitir. Eu trabalhei muito tempo na província mais miserável da Argentina, o El Chaco, onde a cidade capital é Resistencia, e só tem uma rua alcatroada. Há lá um homem extraordinário que faz todos os anos um encontro (de avós). Durante todo o ano as avós têm um grande contacto com os netos, delas ou de outros, para lhes contar a sua experiência – e está a ver a história da Argentina! -, o que é que fizeram, como é que foi, o que se passou. No final há sempre uma grande festa e há um prémio para a melhor avó e para o melhor avô. Os avós são muito valorizados, porque têm uma experiência de vida que os netos já não têm. Nós cá também devíamos fazer isso, porque às vezes falamos de coisas que para nós ainda foram anteontem, e eles já nem sabem o que é que aconteceu. Temos de contar como é que foi a nossa vida, o que é que foi este país antes, o que é agora, o que é que se fez. Acho isso fundamental, haver esse contacto entre os avós e os netos. Por isso é que muitas vezes digo que a casa dos avós não é o ATL, porque me custa muito ver que os miúdos, em tempos normais, vão para casa dos avós para fazer os trabalhos de casa, e depois vão-se embora. Devia ser outra coisa. Eu com os meus netos – mas sou uma avó um bocado maluca – sempre fiz outras coisas que nem a escola nem os pais pudessem fazer. Íamos passear, ver coisas, estudar. Porque é importante dar-lhes um outro conhecimento.
Com esta pandemia também percebemos que muito do voluntariado, por exemplo, era assegurado por idosos, e houve instituições que ficaram de repente sem voluntários. Esta dimensão solidária e de ajuda dos mais velhos tem sido devidamente valorizada?
Tem sido boa, mas não sei se tem sido muito valorizada. Onde eu vivo, vejo muitas vezes coisas penduradas na porta de vizinhos meus, que eu sei que são de idade, e batem-lhe à porta para dizer que estão ali. A minha Junta de Freguesia tem esse cuidado, de telefonar para saber se está tudo, se é preciso alguma coisa, e isso é importante. Porque às vezes os mais velhos – e digo ‘velhos’, parece que eu sou nova! – às vezes não conseguem sair de casa, porque estão mal, não têm família. É fundamental saber que gente idosa há nas freguesias, e tentar comunicar com eles para saber se é preciso alguma coisa.
A minha freguesia é a das Avenidas Novas. Quando foi o 25 de Abril, houve aquela ideia de irmos todos para a janela, cantar a Grândola. E eu disse: “então não vamos?”. Quer dizer, olha esta freguesia…
Mas então não é que começou toda a gente a cantar à janela? E era eu a dizer adeus à janela, a pessoas que eu nunca tinha visto. Porque, de repente, vimo-nos todos ali…
Porque é uma freguesia envelhecida, também…
Completamente envelhecida. Mas foi tão engraçado… Eu estava a olhar para lá e a dizer: eu nem sei que é aquela pessoa. E ela também não, mas pronto, dizemos adeus. Agora, quando saímos à rua, se elas estão lá, dizemos adeus. Posso não saber como é que se chama, mas é a minha vizinha da frente.
Houve uma grande despersonalização da sociedade, perda de relações de vizinhança…
Exato. Eu tinha a minha vizinha da frente, que via todos os dias, até via o que ela estava fazer. Não sabia nada, como se chamava… Até no meu prédio.
E agora já sabe?
Então não sei? Nós falamos, conversamos. Tenho lá um Alojamento Local e até ele, de que a gente não gostava nada, coitadinho, o senhor é estrangeiro e fala-nos. De máscara, porque sem máscara é que a gente não faz nada.
Essa relação de vizinhança de que falou, que a gente já nem sabe o que é ser vizinho, as relações de vizinhança estão muito mais importantes. Eu vou a um café – grande, que é para a gente poder lá estar – e vejo uma vizinha a entrar, ela sorri, fica ao pé de mim, passado um bocado estamos na conversa, e de repente aquele café fica a ser o café dos vizinhos, quando ninguém se conhecia antes… Agora a gente está “o que é que ela está a fazer?”. Acho que vamos ficar melhores pessoas.
A pandemia revelou muitas fragilidades na forma como cuidamos dos mais velhos. Nos Lares houve situações dramáticas, não só em Portugal, como noutros países…
Pois, o que a pandemia tem é que nós não podemos dizer: “Isto aqui está tão mal, vou apanhar um avião e vou para a Espanha ou França”. Está tudo igual ou pior. Isto também nos veio mostrar mais esta fragilidade.
Isto exige repensar as estruturas que temos para os mais velhos?
Já se viu que os lares são uma coisa horrível, a quantidade de gente que se infetava… É muito complicado. Se calhar as pessoas, em casa, também não os podem ter, mas como é que nós vamos cuidar dos nossos velhos? Vamos pôr num lar? Eu não gostaria muito, mas se calhar ainda é o melhor. Mas onde é que pomos? Os lares são caros e não têm condições… É muito difícil lidar com estes problemas e às vezes as pessoas também não podem.
Importa que seja uma resposta da sociedade, mais do que um imputar de culpas às famílias?
Com certeza. A família, muitas vezes, tem uma casa pequena, não pode haver lá mais ninguém, tem de haver uma solução. Não os lares como estão agora, mas uma coisa parecida, em bom. Eu tinha um tio que, tudo o que via, dizia: “eu também tenho, mas em bom”. Aqui também era, devíamos ter os lares, mas em bom. Quer dizer, com condições, onde as pessoas pudessem ir, em tempos normais, para ver os idosos, sair um bocadinho com eles, tornar a pô-los. Uma casa onde eles estivessem. E a gente sabe perfeitamente que nos lares há um acumular de pessoas… Vi uma vez na TV imagens que eram horrorosas, tratavam mal as pessoas. Mesmo sem Covid, é muito complicada a condição dos velhos. Pode ser que agora se pense melhor que tem de haver uma solução, sem deitar às culpas às famílias.
Agora que desconfinamos, há ainda muitos cuidados a ter. Como é que se equilibra a necessidade de proteção dos idosos, as principais vítimas da Covid, com a necessidade de convívio e atenção que devem ter?
Acho que se tem de fazer com eles o mesmo que tem de fazer com os mais novos, que já podem sair um bocadinho. A gente vai saindo com eles, tem de ter muito cuidado, usar máscaras, não estar muito perto das pessoas – isso também deve ser difícil para eles -, mas também têm de começar a sair um bocadinho, até para andarem, para se movimentarem.
E para deixar de ter medo.
Para deixar de ter medo, também. Isso é uma coisa terrível. Também não é preciso tirar todo o medo, todo o medo, senão tiram as máscaras. Mas sim, há de passar, é uma crise. Eles têm mesmo de sair, até para se movimentarem, para não estarem sempre dentro de casa.
O que é complicado é que quando alguém vai ter com eles, não se podem agarrar à pessoa. Devagarinho, já lá vão. Mas têm de ser motivados, realmente, a sair de casa.
O Papa Francisco tem uma frase, “sem idosos não há futuro”, que deu nome à petição lançada pela comunidade de Santo Egídio e da qual é uma das signatárias, recordando os grandes problemas que se verificaram nos lares. O que é que a levou a assinar esta petição?
Se calhar não devia dizer isto, mas quando recebi a petição, vinda de quem vinha, disse: assino já. Foi o cardeal Tolentino Mendonça. Eu disse: “Oh Zé, nem vou ler, assino logo”. Depois fui ler, claro. Esse texto, no fundo, dizia o que nós pensávamos e também dizíamos, sobre o cuidado com os velhos, aproveitá-los. Porque não são uma coisa que se põe de lado, há que aproveitar o que eles ainda podem fazer e sabem fazer. Pensei que isso era importantíssimo, porque os velhos sabem fazer coisas, não são inúteis. Fazê-los sentir que não servem para nada é horrível. A sociedade tem de os usar, como pessoas que são, isso é fundamental.
Tem tido um percurso de aproximação à Igreja. A fé tem-na ajudado na forma como encara a vida?
Tem e aí o Tolentino foi muito importante. Estou-lhe sempre a dizer: não te perdoo teres ido embora. Mas pronto…
Antes da pandemia, ele foi celebrar Missa na Capela do Rato e a igreja encheu-se logo, claro. Achei muita graça porque o padre António [Martins], quem está lá agora, no lugar dele, foi buscá-lo, “eminência”, levou-o lá, disse o que tinha a dizer, o padre António voltou a dizer “eminência”, depois olhou e disse: “Desculpa lá, mas para nós tu hás de ser sempre o José Tolentino”. A relação dele é muito próxima, muito afetuosa.
O meu marido era católico. Mas era assim… Dizia que era católico, mas estava zangado com a hierarquia, pronto. E, portanto, fui um bocado por ali. Quando ele morreu, já há 16 anos, fui-me um bocado abaixo. Foi muito importante o Tolentino para mim, realmente ele ouvia-me a toda a hora e todo o momento, a minha aproximação vem a partir daí. É fundamental.
E é uma dimensão importante na sua vida?
É, é muito importante. Faço aquilo que posso. Agora, na pandemia, via a Missa pelo computador, não era a mesma coisa. Mas ter de ligar para lá e reservar lugar, porque a Capela é muito pequenina… custa-me muito. Eu vou vendo e assistindo, porque me custa muito ver pouca gente ali, a Capela do Rato estava sempre à cunha e, de repente, tem de se marcar, como nos cinemas. Mas fez-me realmente muito bem, isso fez.
Sendo escritora, há uma pergunta que tenho de fazer: podemos esperar um livro, no final desta pandemia, com reflexões sobre esta experiência? Ou outra experiência qualquer…
Podem esperar, com certeza. A gente tem de arranjar coisas para fazer, senão fica doida. Falei com uma amiga, que também é escritora, a Manuela Niza, e estamos a fazer um romance, que é publicado nas nossas páginas do Facebook. Cada faz um capítulo e não assina, portanto, ninguém sabe quem é que escreveu o quê, no final vamos perguntar para ver se as pessoas adivinham. Chama-se ‘Pó de arroz e Janelinha’. Era para se chamar ‘Menina que estás à janela’, mas esse nome já estava…
É a história de um prédio onde estão pessoas que não podem sair. Agora já podem sair um bocadinho. É quase a evolução da pandemia naquelas pessoas. Uma é jornalista, outra é dona de casa… Isso anima-nos muito, porque a gente ri-se imenso a fazer aquilo, e o meu patrão da Leya já disse que, quando estiver acabado, que publica. De maneira que, quando estiver acabado, vem cá para fora o ‘Pó de arroz e Janelinha’.
Esta era uma frase que me acompanhou muito na minha infância, porque me diziam – eu não vivia com a minha mãe – que a minha mãe, quando era criança, lá na aldeia, não queria fazer nada e a única que dizia era: “Só quero é pó de arroz e janelinha” De maneira que peguei naquilo e é o título da história. Mas tem coisas sérias, também, a gente não está só a brincar.
Naturalmente. E vai sair quando?
A gente não sabe muito bem quando é que acaba, mas mais uma semanita ou isso… 40 capítulos ainda é pouco.