Natal: Homilia da Missa da Meia-Noite do bispo do Funchal

SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR

Missa da Meia-noite, 25 de dezembro 2019

Catedral do Funchal

“Um Menino nasceu para nós, um Filho nos foi dado”

1. “Um Menino nasceu para nós, um Filho nos foi dado” (Is 9,5). Por entre o mundo confuso e desorientado do seu tempo, o Profeta Isaías (que viveu 700 anos antes de Jesus) via mais longe. O Profeta não se dava apenas conta do presente de um povo pecador, que virou costas a Deus, e se via, por isso, mergulhado na angústia e na noite escura. O Profeta tinha um outro ponto de observação da realidade. Ele não via os acontecimentos só a partir da história e do coração dos homens. Ele via toda a realidade a partir de Deus. Aliás, a profecia é isso mesmo: um olhar sobre a história e sobre vida, não a partir dos homens — seria simples arte humana de adivinhar — mas a partir de Deus. Porque apenas a partir da Palavra divina os acontecimentos de salvação podem ser realidade.

No momento histórico vivido por Isaías, eram densas as trevas vividas pelo povo: sem um rei fiel e ousado, capaz de confiar no Senhor, o povo via-se “oprimido e faminto”, de olhos postos na terra. “Por toda a parte, só vê angústia, escuridão, noite de aflição, trevas dissolventes”, dizia o Profeta (Is 8,21-22).

A partir de um olhar humano, ainda que arguto, nada mais mais existia a não ser desilusão: desilusão com os homens e as suas capacidades; desilusão com o próprio Deus e com a demora em ver cumpridas as promessas. Mas, a partir do olhar de Deus, eis que “uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria” (Is 9,1). E esta luz não consiste numa onda electromagnética a que o olho humano é sensível mas num Menino: “um Menino nasceu para nós; um filho nos foi dado” (Is 9,5). Foi o seu nascimento (que, de longe, o Profeta apenas percebia) que permitiu a Isaías proclamar a alegria “como no tempo da colheita”. Foi ele que permitiu ao Profeta anunciar a derrota da opressão e antever que as armas da guerra seriam definitivamente destruídas.

2. A profecia de Isaías foi cumprida na noite do nascimento de Jesus. Também então as trevas envolviam a vida do povo de Deus. E envolviam, de modo particular, a vida daquela família de Maria e José, obrigados a descer de Nazaré para Belém, a mendigar um abrigo na Cidade de David, a ver recusados todos os pedidos de acolhimento. A noite envolvia também os pastores que viviam nos campos. A noite envolvia o mundo.

Mas eis que uma luz — que não pode deixar de anunciar a luz da Páscoa — uma luz rompe a escuridão: “O Anjo do Senhor, diz-nos S. Lucas, aproximou-se dos pastores e a glória do Senhor cercou-os de luz”. E o Anjo anunciou-lhes o Evangelho: anuncio-vos uma grande alegria para todo o povo: nasceu-vos […] um Salvador, que é Cristo Senhor”. O mesmo é dizer: “Um Menino nasceu para nós; um Filho nos foi dado”; nasceu o Messias prometido e esperado; nasceu o Senhor, quer dizer: Deus.

E a luz de todo o exército celeste juntou-se à voz daquele primeiro Anjo: porque diante da maravilha deste nascimento tão divino e tão humano, diante da sua luz, exulta a terra, exultam os pobres, exultam os sábios, exulta até a totalidade do mundo celeste, rompendo as trevas que o homem criara e nas quais a sua vida se perdia: as trevas que o cegavam, que o envolviam e não o deixavam ser.

“O modo de agir de Deus quase cria vertigens, pois parece impossível que Ele renuncie à sua glória para se fazer homem como nós”, recordou-nos, há bem pouco tempo, o Papa Francisco (O sinal admirável, 8).

3. Com aqueles pastores de há dois mil anos, nós partilhamos as trevas. Como partilhamos as trevas! Não raras vezes, elas fazem-nos duvidar do cumprimento da promessa em nosso Senhor Jesus Cristo. Partilhamos com os pastores as trevas em que parece nos sentirmos bem, apenas porque escondem as nossas debilidades — poderão estar envolvidas numa forma mais contemporânea, mas são as mesmas. São as trevas de quem recusa Deus e se perde na cegueira da sua auto-suficiência. São as trevas de quem se procura impor aos demais. São as trevas de quem pensa que, vivendo apenas por si e para si consegue ser mais que todos os outros. São as trevas de quem, no seu coração, não encontra lugar para os outros, para a compaixão, para Deus. São as trevas dos que não têm o suficiente para viver dignamente. São as trevas da mentira.

Mas — Deus seja louvado! — com aqueles humildes pastores de Belém, partilhamos igualmente o anúncio do Evangelho. É por isso que hoje vos quero repetir ao vosso coração, a vós que encheis esta Catedral, as palavras proferidas pelo Anjo no momento primeiro do mundo novo: “Anuncio-vos uma grande alegria para todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é Cristo Senhor”.

Hoje, Deus insiste em nascer, em fazer-se carne, em fazer-se pequeno, em fazer-se menino. Insiste em fazer-se Deus connosco e em nós. Ele nasce em cada criança concebida. Nasce em cada coração que se converte. Nasce em cada batizado. Nasce em cada gesto de paz e de amizade. Nasce em cada cristão que toma a sério o seu caminho para Deus e com Deus.

A luz que iluminou aquela noite de Belém atravessa os séculos. Já o tinha feito de Belém para o tempo de Isaías — de tal forma que, de longe mas a partir da perspectiva divina, o Profeta foi capaz de a entrever. Mas, daquele momento inicial da nova humanidade (o ano “0”), do Presépio, a luz chega também até nós, para continuar hoje, aqui, a brilhar, a inundar esta Catedral e todas as igrejas do mundo inteiro. Ela enche de luz divina as nossas trevas, as trevas da humanidade. Ela enche de luz divina as culturas, os povos, a vida de cada ser humano que por ela se deixa invadir. É a luz daquele Menino, do Deus-connosco.

Ele nasceu em Belém. Mas a sua vida, a sua luz continuam hoje a resgatar, com o mesmo brilho e a mesma intensidade, a mesma glória e a mesma alegria, o mesmo fulgor e a mesma paz, todos quantos, adormecidos nas trevas, despertam para a vida verdadeira e se põem a caminho do Presépio, “a ver o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer” (Lc 2,15).

A luz que é o Menino de Belém continua hoje a dizer a cada um de nós: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados”. Que este Menino, esta luz, inunde o nosso coração. Que Ele nos encha de paz e de alegria. Que Ele ilumine a noite e o coração de todos!

D. Nuno Brás

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