«Não queremos que as escolas católicas sejam escolas para aqueles que possam pagar» – Presidente da APEC

Fernando Magalhães, presidente da Associação Nacional de Escolas Católicas (APEC), é entrevistado pela Renascença e ECCLESIA, propósito da Semana Nacional da Educação Cristã, que está a decorrer até domingo, e da nova realidade que a pandemia coloca aos educadores e às famílias

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Foto: Joana Gonçalves/RR

Conversamos quando acaba de regressar da V Peregrinação Nacional Das Escolas Católicas a Fátima. Desta vez foi uma peregrinação simbólica, devido às restrições sanitárias. Como é que decorreu?

Simbólica e representativa, de facto. Ela teve várias programações, do modelo mais próximo ao que é o habitual – com os meninos presentes e um conjunto de atividades…

 

Desta vez não era possível…

Não era possível nem consciente, nem nada. De tal maneira que fomos diminuindo o programa até chegarmos a esta forma, que é de há poucos dias, muito representativa e simbólica. Entendemos, face às circunstâncias, ainda reduzir mais e torná-la mais simbólica, centrá-la na Santa Missa. Foi isso que aconteceu, celebramos a Missa na Capelinha das Aparições, sob a presidência de D. António Moiteiro, e juntamo-nos um bocadinho, para nos saudarmos. Sentimos, enquanto lá estivemos, que cumprimos a nossa missão de agradecer à Mãe, no colo dela, a proteção que recebemos e confiar-lhe aqueles que nos estão confiados.

 

A pandemia obrigou a reajustar iniciativas deste género. Tem sido possível dar a volta a todos estes constrangimentos, encontrando novas formas de relação nas escolas?

Essa tem sido a saudável caraterística de tudo isto, ter-nos obrigado a esta reinvenção. Tudo era muito mais fácil, obviamente, se tivéssemos dito: “que aborrecimento, que chatice, deitamos a toalha ao chão, nada disto é possível, paciência, não se faz…” Mas achamos que o importante é ter esta capacidade de reinvenção, até porque quando a fazemos vem associada uma missão: contagiar os outros com esta capacidade de reinvenção, levar os outros a fazer este caminho, também, não porque este seja perfeito, mas porque é efetivamente a nossa missão, fazer um “upgrade” ao que é a tendência normal de deixar as coisas como estão…

 

Este tempo de pandemia tem sido muito desafiante e tem-nos obrigado a olhar para a escola de outra maneira. Neste novo ano letivo está a ser um grande desafio garantir serenidade e confiança a quem vos confia os seus filhos?

Antes de mais, ela tem de se fundar numa confiança e numa segurança de base. Levar os filhos à escola, de manhã, é um ato de confiança e esse ato tem de estar celebrado. Recentemente, o Papa lançou um Pacto Educativo Global que é exatamente isso, um pacto de confiança, o que se tem de estabelecer entre nós é uma relação de confiança.

Nós, na APEC, deixamos um convite, na primeira mensagem enviada à escola, a celebrarmos este ano letivo como um ano de confiança. Se não for nesta base, não vamos fazer o caminho. Recordávamos às escolas e associados a frase do irmão Roger, de Taizé: “Se a confiança do coração estivesse no começo de tudo, ias longe, muito longe”.

Depois, há uma componente de emoções variadíssimas, temos pessoas muito diferentes, pais e famílias, histórias de vida muito diferentes. Não podemos querer que uma família que passou por uma experiência de doença, no contexto desta pandemia, ou tenha outra história de doença, de morte, que viva isto de uma forma completamente serena. Temos de ser nós a induzir essa serenidade, mas sem negacionismos, sem negar a experiência que essa família tem e aquela que nós estamos todos a fazer. Isso faz-se com muita paciência, muita caridade, muito amor, alguma dificuldade, e também tentando levar os outros a este caminho. Não é fácil, claramente não é fácil, mas é também aí que se demonstra a nossa missão de escola.

Como escola católica, temos uma missão acrescida, nesse domínio.

 

Em março tivemos uma missão radicalmente nova, que foi a do confinamento, com o ensino à distância. Já em setembro houve necessidade de retomar relações, dinâmicas, criar rotinas dentro do possível. Perdeu-se muito, com esta experiência forçada?

Houve histórias que ficaram a meio… Fomos todos para casa e não se percebeu bem como é que era.

 

Foto: Joana Gonçalves/RR

Houve ciclos que não se fecharam?

Tal e qual. Houve prémios de mérito que não se entregaram, diplomas, bailes de finalistas que não ocorreram. As escolas, por norma, tiveram um grande cuidado em ir fazendo substitutos – não é a mesma coisa, mas se não houvesse era pior, no fundo. Mas também não eram “paninhos quentes”, para fazer de contas que é… Não, é fazer as coisas com as adaptações necessárias e possíveis.

Agora, houve coisas que não se fizeram, abraços que não se deram, e houve um regresso que também não contou com essa possibilidade total do abraço, do tato. Nós somos táteis – queixamo-nos que os miúdos andam sempre no ‘touch’, mas nós também precisamos do toque, desse tato. O regresso acabou por se fazer com um ‘touch’ diferente, sem toque, com metro e meio de distância….

O que é importante é não deixarmos de chamar a atenção para as coisas que têm de acontecer. A escola católica, em particular, cumpriu durante o confinamento – e tem em si este largo cuidado, neste outro tempo. Se houve grande especificidade nossa, independentemente da qualidade do ensino, no período do confinamento e agora de novo, é não termos nunca deixado de pensar na formação integral da pessoa. Teria sido muito fácil, porque não estávamos juntos, não havia estratégias, dinâmicas, havia que cuidar das aprendizagens, essenciais e das outas, das competências de base… Mas o grande cuidado foi que as nossas escolas não deixassem nunca de assegurar o que as carateriza tanto, que é a formação integral das pessoas.

 

Embora atualmente, neste ano letivo, haja atividades, como a Educação Física, que mantêm algumas condicionantes…

Sim. Pensemos nas dinâmicas da Educação Física, EV e ET, com todas as desinfeções. Há coisas que estamos sempre a favorecer nos miúdos, como a partilha de materiais, mas agora a mensagem é “não partilha, não toca, não mexe”. É esquisito, há muita adaptação a fazer. A própria Educação Musical, também. Alguns, com humor, dizem que “finalmente deixamos de ouvir as flautas com o Rei Leão nos corredores”… Tivemos de adaptar-nos, necessariamente, a aprendizagem da música também se faz de outro jeito.

As próprias dinâmicas de grupo, nas nossas pastorais, na EMRC, em tantos trabalhos que agora passam a ter outras alternativas. É preciso descobri-las e avançar com elas.

 

Falávamos há pouco do Pacto Educativo Global, uma iniciativa lançada pelo Papa Francisco na última semana. No seu discurso, o Papa evocava as milhões de crianças que ficaram de fora do sistema educativo, na pandemia, porque não podem ir à escola ou não têm acesso à tecnologia… Há risco efetivo, também em Portugal, de que algumas crianças fiquem para trás?

Não há a mínima dúvida. Isso faz parte do nosso quotidiano, e não se trata apenas das crianças que não têm os recursos tecnológicos para poderem estar a par…

As escolas católicos mobilizaram-se, desdobraram-se para encontrar recursos informáticos, tecnológicos, para colocar ao dispor de todos. Houve várias campanhas, foi notável. Mas, no meio de tudo isto, há não sei quantos, em todo o sistema de ensino, que podem ficar de fora.

O Papa tem uma preocupação universal. Queria deixar um pequeno apontamento: a APEC, com o Secretariado Nacional da Educação Cristã, integra o Comité Europeu da Escola Católica e também se relaciona com a Organização Internacional da Escola Católica (OIEC). Esta promoveu, em pleno confinamento, reuniões para que os países pudessem partilhar a realidade que estavam a viver e eu participei num desses fóruns. Estavam nações europeias, da África, do Oriente, e eu não me posso esquecer de um testemunho – depois de nós todos, da Europa, termos falado da nossa realidade, do problema das máscaras, dos meninos que iam chegar sem saber das matérias, etc… Um responsável pelas escolas católicas de um país africano disse: com o maior respeito em relação aos colegas que falaram da Europa, o meu problema é outro, porque eu não sei se as crianças vão regressar.

Neste momento, porventura, serão meninos de guerra, estarão com riscos de mutilação, trabalho infantil.

Tenho de confessar que depois de ter falado com os colegas sobre a experiência de Portugal, tive vontade de me esbofetear naquele momento e cair num buraco, porque a nossa realidade, apesar de tudo, não é nada, quando a comparamos com aquela. Agora, também a nossa realidade tem essas clivagens, mas existe uma consciência mais societária de chegar junto a elas.

Percebe-se perfeitamente o grito do Papa, o seu grito em favor das meninas, e sinto gratidão plena porque nos faz recordar os compromissos e outros mais que nos há de recordar a seguir.

 

Em Portugal é uma preocupação das escolas católicas olhar para esta diferença que existe entre os alunos, e tentar ultrapassar estas desigualdades?

É claramente, até porque a entendemos como uma missão. Gostávamos que pudesse ir mais longe, não só neste contexto, mas em todos, daí pugnarmos tanto pela liberdade de educação e lutarmos tanto pelo direito que entendemos que as famílias têm de escolher os projetos educativos para os seus filhos. Essa é a maneira de melhor tratarmos aqueles que efetivamente não podem escolher. Não queremos que as escolas católicas sejam escolas para aqueles que possam pagar, queremos que sejam para todos aqueles que a elas querem aceder, porque entendem que esse é o melhor projeto educativo para os seus filhos.

 

Temos um problema específico que são os Contratos de Associação, e a opção política de os reduzir. Que impacto é que isso tem na vida das escolas e na vida das famílias?

Na vida das famílias parece-me evidente, muitas deixaram de ter as respostas que podiam ter até então, ou só puderam continuar a aceder a essas respostas pagando, viram-se privadas do direito de opção que tinham sobre o projeto educativo que pretendiam para os seus filhos.

Para as escolas houve situações de dupla natureza, de amarga magreza de funcionamento ou de encerramento. Temos um volume de escolas que efetivamente encerraram e que deixaram de ser projetos educativos altamente válidos naquele contexto, e para além daquele contexto.

Não quero aqui falar de duas, três ou quatro escolas, porque podia estar a ser injusto para tantas outras, mas não era difícil pegarmos em meia dúzia de nomes de escolas que sabemos que foram altamente representativas, não só para aqueles contextos regionais, como foram muito importantes em todo o tecido nacional, através das pessoas que as frequentaram e que nelas se formaram.

 

Foto: Joana Gonçalves/RR

A comunidades foram consultadas? Alguém perguntou se queriam que o Estado continuasse a apoiar as escolas que tinham contratos de associação, em vez de construírem uma escola nova?

Acho que posso responder, sem margem de erro, que não, mas se estiver errado peço antecipadamente desculpa.

Em sede de eleições para a Assembleia da República temos de ter muita consciência do que são os programas políticos dos diferentes partidos, e se eles deixarem perfeitamente claro qual é a sua carta, as pessoas têm de saber fazer as suas opções. E isto não é nenhuma orientação de natureza partidária, para o partido X, Y, Z ou W. Temos é de saber muito bem como é que nos havemos de orientar, e saber orientar o nosso voto de acordo com as opções que são colocadas diante de nós.

Localmente, como digo, não tenho informação de que as comunidades tenham sido consultadas, mas sei de casos em que a decisão foi revista quando o decisor se dirigiu ao local, visitou a realidade, contactou com as populações, com o edil, com a autarquia, e acabou por tomar outra decisão. Às tantas era isso que era preciso…

Ninguém nos venha falar da má experiência, do aproveitamento do X, do W, do Z… Castigue-se, puna-se, faça-se o que se quiser, mas não se generalizem situações, nem se confunda aquilo que é um direito das famílias com outro aspeto completamente diferente da natureza da vida das sociedades.

 

A suspensão do financiamento de colégios privados, situados em locais onde há oferta de escola pública, começou em 2016. Houve recurso de algumas decisões, e soube-se há dias que os colégios privados perderam todas as ações que moveram contra o Estado, e que foram 55 no total…

Pois… eu digo ‘pois’, porque efetivamente isso vai da forma como colocamos as coisas. Às tantas assiste-nos a razão em não sei quantas perspetivas, pode não nos assistir num ou noutro sentido, mas há assuntos que são decididos de uma forma e que depois em recurso são decididos de outra. Portanto nestas matérias jurídicas eu digo sempre ‘pois’.

Nós tentámos efetivamente ir o mais longe que pudéssemos, e não deixaremos de, em perspetiva negocial com o ministério da educação, estar sempre abertos a encontrar outras formas e outros modelos que não privem as pessoas daquilo a que entendemos elas têm direito.

 

Porque a questão ainda está em cima da mesa? Prevê-se a redução de mais turmas?

Pode prever-se, é líquido que isso pode acontecer. Queremos crer que possa haver abertura para que possam ser revistos alguns números. Vamos manter-nos abertos, e acreditar que vai haver abertura suficiente nesse sentido.

 

Dados recentes apontam para uma fuga de professores dos colégios privados para a escola pública, onde faltam docentes. Este pode vir a ser um problema sério para os colégios?

Não pode, é um problema sério, a vários níveis: de exigência, de vinculação, de remuneração, de atratividades, da ADSE, de vários aspetos… Trabalhar no Estado é melhor?

Pode ter essa componente de melhor atratividade. E quando estamos com um processo de carência, e há ali uma possibilidade de concretização de ficar com o lugar…

Mas, à parte isto temos outra dimensão, que são as vinculações aos projetos. Os nossos colégios são colégios que para as famílias apresentam uma fortíssima estabilidade do corpo docente, que significa para os pais uma enorme garantia.

O processo de fuga pode vir a ser complicado para nós, em termos de recrutamento, fixação dos colaboradores, dos professores, de estabilidade do nosso próprio corpo docente, mas não é necessariamente para os pais uma garantia de estabilidade do corpo docente na escola (pública), porque pode ser neste ano naquela, pode ser depois noutra….

Temos de criar mecanismos para incentivar a fixação dos professores, que não são fáceis. Desde logo os pecuniários, são difíceis sob o ponto de vista da gestão financeira das escolas, não há a mínima dúvida. Mas há outros, e são esses que nós tentamos criar ou favorecer.

Há uma coisa que temos como líquida: é que quando olho para o contexto – e  posso falar dos colégios, mas também do meu (Externato Frei Luís  de Sousa, em Almada), e aquilo que sinto que as pessoas têm é, de facto, uma vinculação ao projeto do colégio, uma identificação com o modo como o  funciona. Ninguém está a dizer que toda a gente vai todos os dias feliz para o colégio, a cantar e traulitar, mas no final das contas há esse balanço e há essa fortíssima identificação.

A fixação que vamos fazer com os professores é muito por aqui, por esta fixação e identificação com o projeto. A classe dos professores é uma classe notável no sentido da missão – sem desprimor para a vossa. Mas não podemos esquecer que tem sido muito maltratada nos últimos tempos. A dificuldade de recrutamento e a escassez de professores que existe em larguíssima medida fica a dever-se aos maus tratos que foram feitos à classe dos professores.

 

Deixou de ser uma profissão atrativa?

De prestígio, atrativa, de respeito. A forma como se maltratam, e não é só societariamente ou politicamente… De repente toda a gente tem qualquer coisa a dizer sobre o professor, toda a gente tem um palpite a dar.

Ontem recebi um cartoon fantástico em que uns pais da década de 90 tinham um teste e estavam virados para o menino e diziam assim: ‘isto são notas que se apresente?’, e ao lado outros pais, na década atual, voltados para a secretária do professor diziam ‘isto são notas que se apresente?’… Com excesso, ou não, do cartoon, há muito desta alteração em relação ao respeito pela classe e pela profissão de professor, que se pode refletir na representatividade da profissão. Será que os jovens querem ser professores?

Há determinadas disciplinas em que se dizia ‘professor disto’ ou ‘professor daquilo’. Mas, há uns tempos ninguém queria ir para ‘professor disto’ ou ‘professor daquilo’, não começou sequer a frequentar os cursos, e o que é que há agora? Não há professores. É uma questão de mercado, de puro mercado, e temos de ir à procura deles. Isso vai obrigar-nos a uma grande reinvenção, provavelmente, ao nível das habilitações para a docência, e temos de ter essa capacidade.

Não é apenas uma questão pecuniária, ou de projetos de vinculação, projetos educativos – embora ache que no projeto educativo está sempre uma forte razão -, mas temos de ter abertura em relação a rever as avaliações para a docência. E não é apenas por uma questão de falta mão de obra, é por uma questão de – sempre dissemos e sempre quisemos – podermos trabalhar as habilitações para a docência de uma outra forma, o que poderá ser um duplo caminho feliz: resolver um problema de recurso, e criar um espaço aberto para que os nossos projetos educativos decorram de outra forma, com pessoas com outro tipo de qualificações, sem desprimor para aquelas que já são as tradicionais e habituais da docência.

 

Estamos na reta final da Semana Nacional de Educação Cristã, que decorre até domingo, este ano com um olhar muito particular sobre as famílias e os recursos digitais. As famílias têm sido muito desafiadas pela Igreja a uma participação mais ativa, por exemplo na catequese. Nas escolas católicas isso também acontece? Tem havido um envolvimento maior das famílias?

Devo confessar que aí não sei se há uma alteração significativa. Acho que essa já era uma matriz que nos era muito característica, e continuamos. O que sinto é que este processo, a experiência de vida que tivemos nos últimos meses, levou a que fidelizássemos mais essa relação, essa confiança recíproca. Mas não creio que tivesse trazido mais a família à escola, ou à nossa preocupação. Isso está na nossa matriz identitária.

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Agência ECCLESIA

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