Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real
O mês de maio é muito marcado pela devoção mariana. Convém que esta devoção seja vivida de forma correta e não desligada do núcleo central da fé cristã, que é a relação com Jesus Cristo e com a Igreja. Quando ouço alguns cristãos a dizerem “para mim, Nossa Senhora de Fátima é tudo”, ou “o mais sagrado para mim é Nossa Senhora”, há aqui algo de muito errado e distorcido, que precisa de ser corrigido. E quando vejo muitos peregrinos a caminhar em direção a Fátima, que raramente participam na Missa da paróquia e que vivem alheados da vida da comunidade paroquial de que fazem parte, há aqui uma grave deturpação e uma vivência errada da fé cristã. Para começar, lembro ou lembramos que o centro da fé cristã é Jesus Cristo e o seu Evangelho, Ele é que salva e dá vida. Maria, apesar de na ordem da graça estar acima de nós, é simplesmente intercessora e nada mais. E se “abençoa”, fá-lo por estar profundamente unida a seu filho Jesus Cristo e pela força e graça de Deus, de quem é mãe, e não por sua própria força ou poder, que nunca teve.
Aqui há uns tempos, José Antonio Pagola, numa reflexão que publicou num blogue, chamava a atenção para as deformações e desvios que a devoção mariana pode acarretar, ainda para mais quando alimentada por acontecimentos como as aparições de Fátima. Começa por alertar que a devoção mariana não “se trata de fomentar uma piedade que alimenta secretamente uma relação infantil de dependência e fusão com uma mãe idealizada. A psicologia há muito nos advertiu contra os riscos de uma devoção que exalta falsamente Maria como “Virgem e Mãe”, favorecendo, no fundo, o desprezo pela “mulher real” como a eterna tentadora do homem.” Um dos critérios decisivos para se verificar que a devoção mariana está a ser retamente vivida com o devido espírito cristão “é ver se ela fecha o crente sobre si mesmo ou se o abre ao projeto de Deus; se o faz voltar a uma relação infantil com uma “mãe imaginária” ou se o encoraja a viver a sua fé de forma adulta e responsável, seguindo fielmente Jesus Cristo.” Temos aqui pano para mangas e para muitas horas de aturada reflexão. A devoção a Maria é para se aprender com ela a viver uma vida autenticamente cristã. Como escreve Pagola, “Maria é hoje para nós um modelo de aceitação fiel de Deus a partir de uma posição de fé obediente; exemplo de atitude solícita para com o Filho e de solicitude solidária por todos os que sofrem; mulher comprometida com o “Reino de Deus” pregado e promovido por seu Filho.” Portanto, “a devoção a Maria não é um elemento secundário para alimentar a religião de pessoas “simples”, inclinadas a práticas e ritos quase “folclóricos”. Aproximar-se de Maria é, antes, colocar-se no melhor ponto para descobrir o mistério de Cristo e acolhê-lo.” Espero que os muitos devotos de Maria e mais concretamente de Nossa Senhora de Fátima procurem viver a sua devoção mariana com esta disposição e abertura, porque, se assim não for, estão a incorrer numa grave distorção da sua fé cristã.
Temos assistido em Portugal ao nascimento do fenómeno dos fatimistas: cristãos que deslocaram o centro da sua fé de Cristo para Nossa Senhora e a vivência da sua fé da comunidade a que pertencem para o santuário de Fátima, com grande indiferença e falta de compromisso para com a Igreja local a que pertencem (não generalizando). Há que dizer que é uma grave distorção da fé cristã e um grave desvio quanto à vivência da mesma e do Batismo. Segundo dizem alguns estudiosos, Fátima cativou as pessoas porque a Igreja hierárquica fomentou uma religiosidade fria e calculista, assente num Deus demasiado paternal, um Deus juiz e autoritário, dispensador de recompensas e castigos, e escondeu o rosto maternal de Deus, a sua ternura e o seu carinho, o Deus próximo e acolhedor, o Deus do amor e da misericórdia. Até aceito o reparo e a hierarquia da Igreja não deve deixar de refletir nele. Mas, se lermos bem o Evangelho, o que se busca em Fátima está lá. Leiam a parábola do filho pródigo. Na minha opinião, o nascimento dos fatimistas vem mais na linha da religião sentimentalista, protetora e interesseira que muitos crentes gostam de cultivar, a costela “pagã” que ainda conservamos dentro de nós, a «religião dos favores e dos jeitos» sem grande exigência de contrapartidas e compromissos, a prática religiosa que busca Deus não pelo que Ele é, mas pelo o que Ele dá. É uma vivência profundamente errada da fé cristã.
Fátima só se compreende e se aceita se nos fizer chegar a Cristo e à Igreja, se nos torna mais discípulos de Cristo e cristãos comprometidos na Igreja e com a Igreja, testemunhas coerentes de Cristo e do Evangelho, anunciadores e construtores do Reino de Deus. Fátima não é para fugirmos de Cristo e da Igreja, e muito menos é uma evasão e um sedativo para a vida, como dá a ideia que é para muitos crentes. Logo à entrada do santuário, temos a Basílica da Santíssima Trindade, que nos recorda que tudo parte de Deus e é para chegar a Deus. Este é o centro da fé cristã. Fé que nos foi transmitida pelos Apóstolos, que dão nome às portas da Basílica. A guiar-nos na vivência e no fortalecimento da nossa fé e na descoberta dos seus desafios e maravilhas, temos Maria, que nos dá a mão quando pisamos aquela terra virgem e experimentamos aquele silêncio que nos enche a alma. Fátima, hoje, é uma escola de verdadeira espiritualidade cristã, é uma escola de oração, é um espaço de encontro com Cristo e por Cristo com Deus Pai, é um espaço de fraternidade, de encontro e comunhão de culturas, de universalidade cristã, é um espaço de verdadeira comunhão entre todos os cristãos do mundo. É para isto que apelam as imagens de Nossa Senhora de Fátima que temos nas nossas igrejas e é neste mistério que devemos penetrar quando lá vamos e quando de lá partimos.