Moreira das Neves: padre, jornalista e poeta

Centenário do nascimento do autor da obra «Mendigo de Deus» «Todo o poeta, Senhor, É mendigo de Deus» São estes os dois últimos versos de um dos melhores poemas de «Mendigo de Deus», o livro mais poeticamente humano do Pe. Francisco Moreira das Neves, nascido em Gandra, concelho de Paredes, a 18 de Novembro de 1906. Se fosse vivo completaria 100 anos. Os versos citados anteriormente definem o autor e esclarecem a sua obra: o Pe. Moreira das Neves tem consciência da sua pobreza perante a beleza que o envolve e sabe que um poema realizado é uma bênção, quase uma esmola, de Deus. Por idêntica razão previne os seus «irmãos» poetas: “Não pares na palavra. Deixa o vento / Levar para as distâncias infinitas / O som de terra que te sai disperso”. Depois de frequentar o Seminário do Porto, recebeu a ordenação presbiteral, em 1929, de D. António Augusto de Castro Meireles. Nos primeiros dois anos paroquiou em Milhundos (terra de D. António Ferreira Gomes) e dedicou-se, em simultâneo, ao apostolado infantil com a fundação do Patronato de Santa Rita de Cássia. Em 1934 veio para Lisboa para Chefe de Redacção do Jornal «Novidades». Entremeada com o jornalismo, a sua acção sacerdotal dispersa-se pela pregação, conferências e estudos eclesiásticos. Para além das reportagens e dos volumes de prosa e verso são bem conhecidos alguns programas radiofónicos e televisionados. Em 1946 foi nomeado presidente nacional da Obra de Protecção aos Leprosos e elaborou imensos trabalhos na secção «Letras e Artes» do jornal «Novidades». Faleceu a 31 de Março de 1992 mas deixou saudades e obra. Eis alguns Livros saídos da pena do Pe. Moreira das Neves: «Sonho Azul» (Sonetos – 1931); «Hóstia florida (1936)»; «António Correia de Oliveira – biobibliografia ilustrada (1932)»; «As sete palavras de Nossa Senhora – Poemas Marianos»; «Leal Conselheiro Infantil»; «Inquietação e Presença»; «Mendigo de Deus»; «O Grupo dos Cinco» e «O cardeal Cerejeira (1945-1948)» Versos sonoros na Poesia Popular Há dois volumes de poemas deste autor que se impõem pelo conjunto e pela arte poética com que esta ideia se explanou: «As sete palavras» e «O Mendigo de Deus». A veia poética de Moreira das Neves filia-se na poesia popular e no lirismo tradicional de Correia de Oliveira. Também se podem apontar certas presenças junqueirianas, especialmente no verso embalado e essencialmente sonoro. O original artístico do autor encontra-se no explicativo que dá ao seu lirismo, mais ou menos sentimental e sempre vibrante, e na convicção de que tudo se passa em poesia declamada. Ninguém sabe como fora Que a Virgem, Nossa Senhora. Saudara, um dia, sua santa Prima – Talvez em verso de doirada rima Pois levava na boca sol e aurora Eis um exemplo da poesia declamada. É intencional a forma. Uma das características da arte poética de Moreira das Neves. Os seus poemas não devem ser lidos para em voz baixa, nem para serem meditados. As suas palavras devem ouvir-se porque falam mais pelos sons do que pelo seu significado. Palavras vivas que transportam transcendência e encontram um aplauso justificado quando recitadas: Meu Deus, meu Deus, não me deixes Perder a vida a sonhar. Contemporâneo da geração da «Presença» (José Régio nasce em 1901 e Miguel Torga em 1907), esta escola não influencia a poética de Moreira das Neves que se mantém fiel à técnica clássica do verso obediente à rima, à métrica e à acentuação. Só mais tarde se deixa penetrar – ainda que superficialmente – pelo interiorismo psicológico dos temas presencistas. Na poesia do autor, a espiritualidade artística assume um lugar central. Esta é essencialmente religiosa e de sentido católico. Cada poema é uma afirmação de fé com panejamentos de beleza e arte. Predilecção pelos temas marianos Nas suas obras nota-se também uma predilecção pelos temas marianos (As sete palavras; Cantares de Santa Maria e poemas dispersos em todos os livros). A ligação a esta temática vem ao encontro da tradição religiosa de um povo que encontra Deus através de Maria e que o manifesta em qualquer realização artística. Em Moreira das Neves, os poemas marianos revelam-se ternos, emocionais e cheios de sentimento filial. Neles recorre muito à quadra de sabor e com imagens populares: Olhai a tarde! Parece Que é mesmo Nossa Senhora Nossa Senhora que desce E vai pela terra fora. Na elaboração dos seus poemas, o Pe. Moreira das Neves coloca a marca da sua vocação sacerdotal. Aceite pela crítica, o seu caso veio patentear que, desde que haja autêntica arte, esta será bem recebida até num meio anticlerical como é o meio literário. É certo que alguns críticos podem não entender tal poesia supondo-a penetrada pela «unção de sacristia» (caso de Jorge de Sena). Nestes casos, o defeito está no processo crítico que não tenta entrar num poema mas o retira do seu habitat natural. Autor de mais de uma centena de obras editadas – com uma pena fecunda e inspirada com prosa e poesia dispersa pelas mais diversas publicações – Moreira das Neves esteve cerca de 50 anos como chefe de redacção do histórico diário católico «Novidades» e foi co-fundador da Rádio Renascença. No «seu» jornal comandou uma verdadeira escola de jornalistas e também um alfobre de autores e artistas da mais consumada e meritória evocação. Dele escreveu Fernando Namora: “Há no Pe. Moreira das Neves uma árdua militância cultural, mas toda ela voltada para o investimento em valores de uma matriz «exemplar». Como homem das letras em nada se desviou da rota que se impôs, e nunca deu sinais de qualquer ambiguidade. Fez opções e por elas se bateu com argúcia e ardor generoso”. De si mesmo deixou escrita a mensagem-retrato com que apreciaria ser conhecido depois da sua morte, e para ser aposta sobre a sua campa: «Aqui jaz quem nunca foi Milionário nem herói Mas quis ser em alegria Apenas, em dor e amor Cantor de Nosso Senhor, Poeta da Eucaristia». Luís Filipe Santos

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