Monaquismo e peregrinação

D. Manuel Clemente, Bispo do Porto

Os mosteiros nasceram para se peregrinar dentro de si. A grande afirmação dos primeiros monges foi a duma vida que não se resolvia nas circunstâncias externas, como se, por exemplo, a interrupção ou o fim das perseguições romanas dispensasse a dimensão martirial do Cristianismo. O caminho que Jesus é nunca mais acaba, porque o seu horizonte é tão infindo como Deus Pai: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir até ao Pai senão por mim” (Jo 14, 6).

No Cristianismo a primeira verdade oferecida é a da filiação: é como Filho de Deus que Jesus se apresenta e assim mesmo o vão descobrindo os outros. Não apenas como mais um mestre ou um homem extraordinário; sendo-o também, como referem os Evangelhos (mestre e extraordinário), a sua revelação específica incide precisamente na filiação divina.

– E em que sentido? Importa elucidá-lo também, porque a expressão “Filho de Deus” não se utilizou apenas em relação a Jesus. Dos faraós egípcios aos imperadores romanos diziam-se coisas semelhantes, para inculcar nos povos uma reverência acrescida e porque os povos mantinham uma concepção mítica ou religiosa do poder.

Obviamente, nada disto se aplicava a Jesus de Nazaré, que rejeitava qualquer apropriação política da sua pessoa e se manifestava, neste capítulo, como um completo não-poder. Também como não-aparência, na acepção ostensiva do termo (cf. Mt 4, 1 ss: a sua resistência à tripla tentação do ter, do parecer e do poder).

Ultrapassando mesmo as compreensíveis expectativas proféticas e messiânicas, Jesus revela-se “Filho de Deus” no sentido mais radical e íntimo do termo. Refere ao “Pai” tudo quanto diz e faz; tem na relação com Ele a sua constância, o seu segredo e a sua alegria; e dessa ligação íntima e permanente pode concluir que quem o vê, vê o Pai (cf. Jo 14, 9). Porque ele e o Pai são um só (cf. Jo 10, 30). A vida que recebe do Pai e inteiramente lhe devolve é outro nome do Espírito: Espírito de filiação, precisamente, em que nos faz participar também (cf. Rm 8, 14 ss).

Por isso chamei ao monaquismo cristão uma “peregrinação dentro de si”. Diferentemente – muito diferentemente – doutros monaquismos anteriores ou posteriores, dos extremo-orientais a todos os tipos do gnose, não é no registo “psicológico” que o encontramos, qual exercício de apaziguamento de paixões ou de superação dos medos (de sofrer, de perder, de morrer…). Poderá incluir algo duma ou outra coisa, mas, quando autêntico, o monaquismo cristão é essencialmente a vivência insistente da filiação divina, no Espírito de Cristo. Define-se como vivência baptismal absoluta.

De peregrinação se trata, porque responde ao convite de seguimento que o próprio Jesus continua a fazer (cf. Mt 19, 21). Peregrinação que, podendo implicar mudanças externas e geográficas, não tem nelas o seu fulcro, mas apenas a expressão ocasional.

Valha, como inaugural de tantas outras, a história de Antão, pai do monaquismo cristão, como a viveu no Egipto dos séculos III e IV. Para seguir o apelo evangélico, distribuiu quanto o prendia à vida habitual e dedicou-se inteiramente ao diálogo íntimo ou rezado com o Pai, feito de escuta sem dissonâncias, resumindo-se nessa atitude, de jovem a ancião. A ser, no Espírito de Cristo, filho de Deus.

 

Como sabemos, não tardou que esta dimensão íntima do monaquismo se alargasse como acolhimento e entreajuda fraterna, quer em relação aos que procuravam os monges, para ajuda ou conselho, quer entre os próprios monges, que se juntavam sob a direcção dum “abade” mais experiente ou carismático. Assim se uniram monaquismo anacorético (solitário) e cenobítico (comunitário), do Oriente para o Ocidente.

No Ocidente, entre outras expressões anteriores e coevas, desenvolveu-se particularmente o monaquismo beneditino, a partir do século VI, trazendo a esta demanda espiritual a conotação “romana” do equilíbrio entre as várias dimensões da vida filial e fraterna. Repartia a ocupação espiritual e corporal pelo amanho da terra e a sustentação da comunidade e dos hóspedes, a vida intelectual que possibilitava a leitura bíblica e o respectivo comentário e a oração pessoal e litúrgica, que tudo alimentava e coroava.

Pouco a pouco, foi esta a tradição monástica que se impôs no Ocidente, consentindo aliás sucessivas especificações, como a cluniacense no século X e a cisterciense no final do seguinte.

E sucedeu que, sendo sinais activos duma demanda íntima, exercitando também a hospitalidade permanente, muitos mosteiros se tornaram ponto de paragem ou atracção de peregrinações exteriores, activas ou reactivadas, como acontece agora. E certamente que interpelaram e interpelam muitos peregrinos em relação a um caminho que tem dentro de cada pessoa as suas fronteiras decisivas.

E também parece que os mosteiros encontrarão aqui uma particular vocação contemporânea, quer como comunidades hospitaleiras para quem procura outra qualidade de paz e precisa de (re)descobrir a dimensão orante e solidária da existência, quer dando às nossa cidades a alma que lhes falta. São muito assinaláveis, por exemplo, algumas (novas) comunidades que se estabelecem em grandes cidades – verdadeiros “desertos” hoje em dia – quais oásis de hospitalidade e oração. Aí mesmo, onde a peregrinação se interioriza e passa a significar a própria vida, filial e fraterna.

 

D. Manuel Clemente

(Intervenção no IV Congresso Internacional sobre Cister em Portugal e na Galiza, Braga, 2 de Outubro de 2009)

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