Mistérios da Páscoa em Idanha-a-Nova

O ciclo pascal no Concelho de Idanha-a-Nova é rico em vivências e tradições religiosas que se fazem sentir ao longo da Quaresma e na riqueza ritual das celebrações pascais. As aldeias do conselho partilham uma riqueza etnográfica e religiosa que é única no país.

O ciclo pascal no Concelho de Idanha-a-Nova é rico em vivências e tradições religiosas que se fazem sentir ao longo da Quaresma e na riqueza ritual das celebrações pascais. As aldeias do conselho partilham uma riqueza etnográfica e religiosa que é única no país. António Catana tem dedicado parte da vida ao estudo desta identidade religiosa que, no seu entender, forma uma unidade ímpar no nosso país.

 

É quase como uma ilha encantada que nós encontramos no nosso concelho. Estas tradições foram comuns em grande parte de Portugal mas que, com o tempo foram desaparecendo. A forte presença templária nesta região, onde possuiu oito castelos, contribuiu para a preservação de uma identidade que perdura até hoje. A valorização de Maria Madalena nos ritos pascais tem uma ligação a esta ordem militar. Importante também a presença de nove Irmandades da Misericórdia que, no seu compromisso, assumem em grande medida estas tradições da Páscoa.

António Catana

 

Agência Ecclesia – Estas tradições não se restringem à Semana Santa, ao longo da Quaresma existem manifestações da religiosidade popular no sentido de valorizar estes dias de preparação para a Páscoa…

António Catana – Durante as cinco semanas da Quaresma, o Ladoeiro tem a procissão dos homens que, em cada sexta-feira junta muitas pessoas. Os jovens aderem também a esta tradição, embora por motivos demográficos eles sejam cada vez menos nesta zona do país.

Em S. Miguel de d’Acha existe o terço dos homens em cada sexta feira da Quaresma, temos a encomendação das almas em diversas paróquias.

Sabendo que grande parte destas manifestações religiosas são asseguradas por pessoas idosas, sublinho a liderança de alguns que se assumem como verdadeiros guardiães da tradição e que a vivem, não de forma teatral ou como mera representação, mas com uma profunda convicção e fé. Recordo um dos solistas da encomendação das almas que faleceu recentemente, que dizia: Quando estou a cantar a encomendação das almas estou a ver os meus familiares já desaparecidos e tenho-os presentes.

 

AE – A Igreja tem acompanhado estas tradições como algo que brota do íntimo do sentimento popular e procura preservar estes ritos que se apresentam muito diferentes do que a liturgia sugere como forma de celebrar os Mistérios da Páscoa.

AC – Sabendo que após o Concílio de Trento a Igreja foi pondo de lado estas manifestações populares, mas considero que os párocos que foram passando pelo nosso conselho, tiveram sempre a sensibilidade de respeitar o sentimento popular. Dou o exemplo da procissão dos passos e as procissões corridas de Alcafozes em que o pároco se limita a incorporar numa manifestação de fé que é conduzida pelo povo. Tudo decorre segundo a tradição popular que entoa cânticos onde o latim se mistura com o português.

 

AE – Entre os momentos celebrativos, a bênção dos Ramos adquire um colorido especial no domingo que antecede a Semana Santa…

AC – Esta celebração adquire uma dimensão especial na aldeia de Monsanto. Todos os homens levam o seu ramo composto que habitualmente é preparado pela mulher. São ramos grandes de oliveira enfeitados com flores que levam à Igreja para serem benzidos. Depois, e segundo os lugares, os ramos são guardados. Em Monsanto há quem guarde este ramo durante um ano até quarta feira de cinzas em que é queimado, servindo as cinzas para assinalar esse dia que inicia a Quaresma. Outros, guardam o ramo junto a pequenos oratórios onde fazem as suas orações ao longo do ano.

 

AE – Na Quinta-feira Santa, o momento celebrativo centra-se no Lava-pés e numa realização a que se chama a Ceia dos Doze.

AC – Em Alcafozes e Segura, o lava-pés é assumido pelo provedor da Misericórdia. Como é habitual o pároco preside à celebração da Eucaristia da Ceia do Senhor mas não participa no rito do Lava-pés que é protagonizado pelo provedor da Misericórdia. Eu penso que isto deriva do período do liberalismo em que foram extintas as ordens religiosas e o clero era perseguido, então houve a necessidade de outras figuras colmatarem a ausência dos ministros sagrados assumindo algumas das suas tarefas. No final deste período de perseguição, o clero ao ver como o povo tinha assumido a celebração da sua fé, acabou por permitir que alguns ritos assim permanecessem. Nos primeiros tempos da República verificou-se algo idêntico, nessa altura algumas procissões realizavam-se no interior do templo por proibição de saírem à rua. Isto sem esquecer que o Provedor da Misericórdia assume uma missão de serviço aos mais pobres.

 

AE – A Ceia dos Doze é uma recriação da última ceia?

AC – Há cerca de trinta anos esta ceia realizava-se em casa do Provedor. A sua esposa preparava a refeição no final da Procissão do Encontro que em muitas localidades se faz na Quinta feira Santa, e havia o hábito de todas as mulheres saírem de casa para que fosse uma representação da última ceia de Cristo com os apóstolos, e por isso se chama a Ceia dos Doze.

 

AE – A celebração da Páscoa no Conselho de Idanha-a-Nova é envolve várias dimensões, até uma gastronomia própria que se sintoniza com os mistérios evocados pela fé…

AC – Em Segura, um dos pratos da ceia é um esparregado de ervas azedas que acompanha peixe do rio frito. É um prato delicioso em que as ervas azedas estabelecem uma ligação com o Êxodo e o facto dos judeus comerem ervas amargas na noite que antecedeu a sua libertação do Egito. A este elemento gastronómico também não é estranho o facto de esta região do país contar outrora com uma importante comunidade judaica.

 

AE – A Sexta-feira Santa é um dos dias em que a tradição e os momentos celebrativos da Paixão de Cristo adquirem, no concelho de Idanha-a-Nova, uma dimensão especial.

AC – Em todos os lugares realiza-se o Enterro do Senhor e em Monsanto é de realçar a cerimónia do Descimento da Cruz. Num silêncio sepulcral é de uma beleza extraordinária assistirmos ao descimento do corpo de Cristo que está crucificado e que é retirado da cruz sendo depositado no esquife. São retirados os pregos que o prendem à cruz, pelos irmãos da Misericórdia, e depois envolvem-no nuns panos brancos de linho, de forma muito compassada, até o deitarem no esquife para prosseguir a procissão. Trata-se de uma imagem de Cristo articulada que permite este descimento e confere um maior realismo ao momento.

Temos também um momento muito marcante que é o canto da Verónica, pela tradição a mulher que limpou o rosto de Cristo e que o viu impresso no pano que usou. À medida que se entoa este canto vai-se desdobrando o pano que no final revela o rosto de Cristo.

 

AE – Se estes momentos são marcados pelo silêncio e dominados por semblantes pesados, a ressurreição é o oposto. A alegria e a expressão ruidosa marca a tradição…

AC – Estes elementos fazem parte do encanto de quem vai a Idanha-a-Nova no sábado de Aleluia e assiste a uma multidão que leva os seus apitos ou chocalhos e manifesta a sua alegria de forma ruidosa. É também uma reação de rutura com um longo período em que apenas se entoavam cantos religiosos e que neste momento, são substituídos pelo ruído e pelos gritos de alegria. É neste clima que todos acorrem à casa do pároco que, da janela, lança 70 quilos de amêndoas para todos.

 

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