Mensagem do Bispo de Beja para a Quaresma 2010

Justiça de Deus e justiça dos homens

1. Quaresma e revisão da vida

Todos os anos a Igreja convida os seus membros a fazer a revisão da vida a partir de Jesus Cristo, tendo em conta o seu testemunho e os seus ensinamentos evangélicos. Isto constitui uma tarefa diária, mas, com maior intensidade, nos quarenta dias que antecedem a festa principal da Igreja, a Páscoa, tempo esse denominado de Quaresma. Tornou-se habitual o Papa e os bispos escreverem uma mensagem, exortando os fiéis ao seguimento coerente de Jesus, lembrando-nos do que Ele disse aos seus apóstolos: quem quiser ser meu discípulo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Estas palavras, várias vezes repetidas, têm uma força especial ditas no contexto da confissão de Pedro na Cesareia e da transfiguração no Monte Tabor. A partir daí Jesus põe-se a caminho de Jerusalém, onde seria preso e condenado à morte de cruz, num processo sumário e demagógico.

A recordação e celebração litúrgica destes passos de Jesus levanta várias questões, para as quais nem sempre encontramos respostas satisfatórias. O sofrimento e a morte violenta de um inocente faz despontar em nós uma série de porquês, a muitos dos quais só a resposta do amor sem limites da parte de Jesus são a única saída com futuro para a humanidade, enquanto o ódio, a inveja e o pecado da parte dos que pediram e provocaram a sua condenação e morte aumentam os enigmas e a injustiça.

Mas a Quaresma não se reduz a uma meditação sobre uma figura importante do passado, pois, a partir do que aconteceu com Jesus Cristo, descobrimos o nosso presente e a nossa participação nessa história. Afinal, tudo isso é espelho da humanidade no seu relacionamento com o Criador e com as criaturas. Em breves palavras podemos dizer que o nosso pecado, o nosso egoísmo, o nosso apego aos bens materiais, a nossa ambição de poder e de prazer, e também a nossa condição de fragilidade, continuam a ser a causa, directa ou indirectamente, de muito sofrimento. Mas na atitude de Jesus também percebemos que não estamos votados ao fracasso, porque o seu amor é mais forte que a morte. Por isso Ele pôde exclamar e gritar: Pai, não se faça a minha vontade, mas a tua…, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem…, nas tuas mãos entrego o meu espírito…

Perante muitos males, para os quais ainda não encontramos soluções ou explicações satisfatórias, recordemos o sismo recente no Haiti, que vitimou centenas de milhares de pessoas ou deixou muitas em grandes sofrimentos e penúrias. Como reagimos, que atitudes assumimos? A do desespero ou a da esperança, a da fé ou da negação de qualquer sentido, a da paralisia asfixiante ou a da ajuda solidária?

Estes e outros problemas põem a nossa fé à prova. Felizmente, muitos procuram socorrer aqueles que sofrem, não os deixando sozinhos, entregues a si mesmos, sem a companhia de quem chore com eles, clame por soluções e as procure. A humanidade parece despertar do sono, da ilusão de um progresso sem limites e sem vítimas. Aumenta o número daqueles que se aproximam das vítimas, para sentir o seu sofrimento e procurar lenitivos. O lado bom, solidário, compassivo do ser humano parece ganhar força, deixando de apontar para os outros como os culpados de todos os males e procurando eliminar do próprio coração muitas das causas do afastamento, da discórdia e das injustiças. Numa palavra, a mudança da mentalidade egoísta, do rumo egocêntrico, do individualismo e relativismo subjectivista começa a dar lugar ao encontro com os outros, sobretudo com os mais carenciados de pão, de amor e de paz. É o processo de conversão, para a qual a Quaresma constitui uma forte interpelação. É o tempo favorável para descobrir o sentido da vida e pôr-se a caminho.

2. Práticas tradicionais da Quaresma

Tradicionalmente e desde os tempos evangélicos, a Igreja recomenda durante a Quaresma a intensificação de três práticas significativas da seriedade do processo de conversão: a oração, o jejum e a esmola. Esta trilogia, assumida livremente por amor a Cristo e aos irmãos mais carenciados, mantém o seu valor em ordem à nossa configuração a Cristo e ao nosso empenho solidário com todos os que sofrem. Sentindo na nossa pele o sofrimento de Cristo e dos injustiçados deste mundo, crescemos na nossa identidade humana e cristã. Podemos dizer, pois, que estas práticas quaresmais nos ajudam a preparar-nos também para a nossa Páscoa, a nossa passagem duma vida efémera, centrada em nós mesmos, para a plenitude da vida na caridade.

Na mensagem para este ano, o Papa acentua a prática da justiça no seu sentido pleno, não apenas como distribuição mais fraterna e igual dos bens, dando a cada um o que lhe pertence, mas também como acolhimento e partilha do amor de Deus. Só o amor, a caridade derramada por Deus no nosso coração, nos torna e faz verdadeiramente justos e constrói a justiça nas nossas relações. Sem a caridade, recebida e partilhada, a conversão não é real e tão pouco construtora da justiça, que dá aos outros o amor a que têm direito.

A estas três práticas tradicionais acrescento a atitude de escuta e o silêncio, que fazem parte da oração autêntica, mas esta é por muitos entendida apenas como vocal, de petição, e menos de admiração e contemplação do mistério de Deus e da vida. Vivemos num tempo de barulho, de palavreado, de demagogia, de processos infindáveis, em que os sofismas das palavras procuram escamotear e ocultar os factos, criando realidades virtuais contra as vítimas reais. Precisamos de escutar os outros, sobretudo as vítimas, os que sofrem, as crianças e mães maltratadas, os pais de família desempregados, as vítimas do tráfico laboral, sexual e de órgãos. A oração da Igreja ajuda-nos a cultivar estas atitudes de escuta, sensibilidade e compaixão com aqueles que continuam no presente a Paixão de Jesus, mas a quem falta a capacidade de oferta e doação manifestadas por Cristo. Precisam de Cireneus que os ajudam a levar a cruz. Nesta companhia solidária contribuimos para realizar a justiça na sua plenitude.

3. Destino da renúncia quaresmal

Desde há alguns anos que as comunidades cristãs orientam a partilha do tempo da Quaresma, fruto das suas renúncias ao longo dos quarenta dias, para alguma necessidade mais grave e premente, e assim crescermos na capacidade de amar ao modo de Jesus Cristo.

Na diocese de Beja, na Quaresma de 2009, o destino das nossas renúncias e partilha foi, por deliberação do Conselho Presbiteral, para apoiar cristãos de países de maioria islâmica, sobretudo em terras evangelizadas por S. Paulo, muitas vezes perseguidos e espoliados dos seus bens. O resultado entregue até agora nos serviços diocesanos atingiu a quantia de 19.498,92 €. Mas há paróquias que ainda não regularizaram os seus compromissos.

A renúncia quaresmal deste ano de 2010 destina-se a ajudar no alargamento das valências sociais da nossa Caritas Diocesana, sobretudo do refeitório social, do acolhimento dos sem abrigo e da reinserção social e laboral de pessoas recuperadas da toxicodependência e do álcool. Para isso vamos começar já este ano as obras de restauro e adaptação do antigo Paço Episcopal, ao qual vamos dar o nome de Casa Social D. José do Patrocínio Dias, que, a partir de 1922, foi adquirindo, a pouco e pouco, os edifícios contíguos à sua residência, instalando aí os serviços diocesanos.

Estava definida esta finalidade da renúncia quaresmal, quando se deu o sismo de Haiti, com graves consequências humanitárias. Por isso decidimos aplicar metade da renúncia quaresmal para ajudar as vítimas deste sismo através da Caritas Internacional, como o temos feito até aqui. A outra metade será para a finalidade acima definida. Apelamos à generosidade dos nossos diocesanos, conscientes de que chegaremos à Páscoa mais ricos na capacidade de amar, tentando lutar contra as injustiças deste mundo.

Para todos uma Quaresma com hábitos de vida mais austeros, solidários, atentos à Palavra de Deus, ao testemunho de vida de Jesus Cristo e aos que sofrem na pele as injustiças e as crises do presente.

† António Vitalino, Bispo de Beja

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