Mensagem do arcebispo de Braga para o tempo da Quaresma

Do jejum de palavras à responsabilidade fraternal

1. Um tempo novo

Aproxima-se o Tempo Quaresmal!

O rito litúrgico de quarta-feira de cinzas, que marca o início deste tempo, recorda a nossa identidade: somos pó da terra e à terra havemos de voltar (cf. Gn 3,19). Retomando o nosso programa pastoral, se no tempo de Advento propus rever a nossa identidade eclesial, emerge agora um tempo propício para revermos a nossa vivência eclesial. E perante a imposição do tríptico quaresmal (oração, jejum e partilha) decidi apontar o jejum como critério da nossa revisão de vida pessoal e comunitária.

Porque queremos que a Igreja Arquidiocesana se alimente da Palavra, não olho somente para o tradicional jejum alimentar, mas precisamente para um jejum de palavras. Nunca o Homem esteve em contacto com tantas palavras! As facilidades de comunicação, a progressão dos mass media, o aumento do nível académico… colocam-nos diariamente perante uma pluralidade de palavras, onde cada uma provém de uma etimologia própria e remete para uma realidade existencial.

Por isso, a pergunta impõe-se: que palavras nos remetem para uma vivência contrária ao ideal das bem-aventuranças e das quais necessitamos de jejuar?

 

2. Um caminho novo

Neste sentido, permiti que apresente o seguinte itinerário pastoral (e literário) ao ritmo do Evangelho, que nos ajudará a jejuar das palavras que são o contrário (antónimo) da genuína Palavra, Jesus Cristo, e a exigir uma atitude que seja sinónimo da nossa vivência eclesial (Verbum Domini, 26).

Quarta-feira de Cinzas: jejuar da exibição para educar segundo a responsabilidade

“para serem vistos pelos homens” (Mt 6,5)

Domingo I: jejuar da tentação para retomar a comunhão

“esteve no deserto quarenta dias e era tentado por Satanás” (Mc 1,13)

Domingo II: jejuar do medo para professar o dom da fé

“pois estavam atemorizados” (Mc 9,6)

Domingo III: jejuar do lucro para viver em reciprocidade

“deitou por terra o dinheiro dos cambistas” (Jo 2,15)

Domingo IV (Domingo Laetare): jejuar da idolatria para caminhar jubilosamente na santidade

“Deus enviou o Filho ao mundo… para que o mundo seja salvo por Ele” (Jo 3,17)

Domingo V: jejuar da vergonha para semear a esperança

“Senhor, nós queremos ver Jesus” (Jo 12,21)

Domingo de Ramos (Dia Mundial da Juventude): jejuar do ruído para anunciar a alegria

“Mas eles gritaram ainda mais” (Mc 15,14)

 

3. Um desejo novo

O grande objetivo deste jejum de palavras sintetiza-se na mensagem do Santo Padre para esta Quaresma: “Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e à boas obras” (Heb 10, 24).

Prestar atenção significa “desejar o bem” como origem e causa duma responsabilidade fraternal que estimula, neste período de dificuldades, a intensificar, entre outras coisas, o Contributo Penitencial que este ano, e a título excecional, terá duas finalidades de índole diocesana: o Fundo Partilhar com Esperança, para que, à semelhança do grão de trigo (Jo 12,24), continuemos a semear entusiasmo no coração das famílias necessitadas; e a recuperação da igreja paroquial de Anissó, Vieira do Minho, destruída por um incêndio quando estava a acabar de ser restaurada.

Importa que este contributo não seja uma mera esmola, resultado das sobras da nossa opulência. Um contributo sem sacrifício (abdicação) não estimula o amor fraterno, nem é expressão da nossa vivência eclesial. Porque não abdicar de uma refeição abastada, uma viagem dispensável, a despesa de um vício, a compra de um acessório… e reverter tal quantia, expressão da nossa liberdade, em prol da caridade? “De facto, foi para a liberdade que vós fostes chamados” (Gl 5,13).

 

4. Um desafio novo

Este ano congratulamo-nos com duas capitais europeias (Braga, juventude; Guimarães, cultura) que, a nível pastoral, não podem cingir-se apenas à geografia daquelas duas cidades, mas a toda a Arquidiocese. Simultaneamente, se proponho a “cultura do partilhar” não posso também esquecer a solicitude pela juventude e uma aposta da cultura na pastoral.

Na verdade, a esperança no amanhã da Igreja e da sociedade está na juventude que, embora parecendo disfarçar, necessita de propostas capazes de a seduzir para um encontro com Cristo (“queremos ver o Senhor”).

A mensagem do Papa Bento XVI para o Dia Mundial da Juventude é estimulante: “Alegrai-vos sempre no Senhor” (Fil 4, 4). Cristo tem sempre algo a comunicar aos jovens e a Igreja deve ser portadora duma mensagem que lhes oferece perspetivas de esperança. “Cristo nada tira. Ele dá tudo!” Aqui, a ousadia estimulará a criatividade das nossas comunidades e a seriedade incitará a uma opção pelo essencial, discernida na Palavra, como experiência profunda de fé (Porta Fidei, 6).

Ao deixar-se enamorar pela Palavra, a Igreja outrora gerou cultura como expressão dum humanismo integral, e hoje deve continuar a ser espaço de apreço e delícia pelo belo e maravilhoso. Portadores deste gosto, queremos caminhar em diálogo com aqueles que teimam em não “acreditar no nome do Filho Unigénito de Deus”. A promoção e participação em eventos culturais como concertos, teatro, filmes, debates, visitas a museus, proposta de livros, caminhadas juvenis… comprovam que a dimensão cultural deve estar presente e revelam que a fé também se transmite mediante estas circunstâncias.

Não queiramos cometer novamente o pecado babilónico: o esquecimento de Deus. Assim, o Conselho Pastoral Paroquial apresenta-se como o espaço privilegiado para projetar dinâmicas que façam da “Paixão de Cristo” uma memória viva e vivificante, capaz de transformar as “paixões do homem hodierno em aurora de um mundo feliz”.

Neste ambiente de programações diversificadas para os jovens e para a cultura, coloco diante dos Conselhos Pastorais o desafio do Santo Padre deixado no encontro com o mundo da cultura em Lisboa: “A Igreja sente como sua missão prioritária, na cultura atual, manter desperta a busca da verdade e, consequentemente, de Deus; levar as pessoas a olharem para além das coisas penúltimas e porem-se à procura das últimas. Convido-vos a aprofundar o conhecimento de Deus, tal como Ele se revelou em Jesus Cristo para a nossa total realização. Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza.”

Sem este argumento, as nossas catequeses quaresmais, adoração eucarística (Lausperene), via-sacra, procissões, momentos de Reconciliação, celebrações da Semana Santa… afastam-se do Mistério de Cristo!

Espero que esta mensagem prepare o nosso coração para o acontecimento fundador da nossa fé: «Não vos assusteis! Buscais a Jesus de Nazaré, o crucificado? Não está aqui, ressuscitou!” (Mc 16,6).

Que Maria, a Senhora das Dores, nos ensine a acompanhar o seu Filho neste caminho quaresmal até à Cruz! E que o jejum daquelas palavras nos transportem assim da iminência do pecado à teofania do pleno amor de Deus na Cruz, que transformou a fatalidade da morte num compromisso pelo Homem, exigindo-lhe essa responsabilidade fraternal.

Solenidade da Conversão de S. Paulo, 25 de janeiro de 2012.

D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga

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