Mensagem do Arcebispo de Braga para a Quaresma 2008

“Quaresma – o dar-se como compromisso” Nunca a vida foi tão apressada como nos tempos actuais. Todos mergulhamos num sem número de ocupações e obrigações e quando nos parece ter um pouco de tempo livre, “inventamos” coisas para realizar. É neste ambiente que acontece a Quaresma. Podemos permitir que ela passe despercebida ou assuma um trajecto a percorrer, como cristãos e como famílias. Gostaria de deixar uma palavra a toda a comunidade arquidiocesana. Se ela for acolhida, louvo ao Senhor; se ficar no esquecimento, cumpri o dever de sentinela da messe do Senhor a apontar caminhos de renovação e esperança. O Programa Arquidiocesano – “Família, dom e compromisso” – leva-me, espontaneamente, a escolher um texto evangélico extraído da liturgia do terceiro domingo da Quaresma. Pode parecer conhecido; sendo ouvido com o coração, provocará novidade de vida nas pessoas, nas famílias e nas comunidades. Refiro-me ao encontro de Cristo com a Samaritana (Jo. 4, 5-42), evidenciando alguns aspectos. 1. Jesus senta-se à beira do poço Este gesto pode sublinhar a necessidade de escolher alguns lugares ou espaços para parar. Os cansaços, perplexidades, dúvidas, interrogações, … necessitam de momentos de serenidade para readquirir o equilíbrio fundamental e prosseguir a caminhada. 2. Jesus DESCE AO NÍVEL DA Samaritana Jesus solicita à mulher Samaritana, sabendo que os judeus não se entendiam nem falavam com os Samaritanos, água para beber. Nesta atitude podemos descortinar a exigência do diálogo e da comunhão íntima a propósito das necessidades essenciais. O egoísmo e o individualismo fecham-nos, iludindo-nos no discernimento das melhores opções. A dimensão comunitária, a nível da família, da comunidade, das amizades autênticas é constitutiva da vida humana e nunca pode ser desconsiderada. O que acontece no diálogo natural e espontâneo a propósito das questões que inquietam e incomodam, deve ser transportado para um ambiente sacramental realizado na celebração e vivência, individual e não colectiva, do sacramento da reconciliação. Sabemos que, infelizmente, vai perdendo lugar na vida dos cristãos. As causas são variadas e deveriam ser examinadas a nível de consciência pessoal, por parte dos ministros e dos fiéis. Penso, porém, que a superficialidade com que o Sacramento é encarado pode explicar muitas coisas. A interiorização faz descortinar as verdadeiras causas das opções, repetidas inadvertidamente e justificadas pela adaptação ao ambiente, e aponta caminhos de renovação pessoal que se irão repercutir na família e na comunidade. 3. “SE CONHECESSES O DOM DE DEUS…” A paragem, sinal de silêncio interior, aliada à partilha da vida no intuito de discernir caminhos de conversão, conduz-me à ideia central do Programa Pastoral que, recordo, apresenta o objectivo de nos tornarmos uma autêntica família diocesana trabalhando para fazer com que as famílias cresçam como “dom” e “compromisso”. Daqui parto para a afirmação de Cristo à Samaritana: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é Aquele que te diz: “Dá-Me de beber”, tu é que Lhe pedirias e Ele te daria água viva” (Jo 4, 10). Nesta resposta encontramos o convite para querer conhecer “o dom de Deus” e “Aquele” que pede de beber. Duas realidades que se identificam e que exigem um trabalho de “reconhecimento” do mesmo “dom” através de compromissos bem delineados. São variados os caminhos que permitem este novo conhecimento e reconhecimento. Por muito esforço que façamos, estaremos sempre a sublinhar a importância de realidades já conhecidas a que deveremos dar sentido novo. Eis algumas sugestões: 3.1. Conhecer o dom da interioridade Criar ambiente de interioridade e espaços de deserto para um estar a sós com Aquele que quer dar de beber. A dispersão empurra-nos para muitas actividades. Urge saborear a interioridade para nos tornarmos adoradores verdadeiros, em espírito e verdade, que adoram Aquele que conhecem. Ele quer dar-se a conhecer e o grande dom desperdiçado está aqui. O mundo moderno pode ter muitas fomes e sedes. A sede fundamental é de realidades sobrenaturais de horizontes infinitos. Acolhendo a “água” que Ele nos quer dar, adquirimos a certeza de ser “nascente” que sacia aqueles com os quais contactamos. • Reconhecer na Oração e Palavra O reconhecer este dom exprime-se em momentos, na vida pessoal e familiar, de oração, meditação e contemplação a partir dum diálogo espontâneo com Deus sobre as vicissitudes da vida ou acolhendo, em leitura serena e tranquila, a sabedoria que a Palavra de Deus dá á nossa mente, ao nosso falar e ao nosso agir. Na verdade, o dom da Palavra é tesouro a ser saboreado e assimilado nos contornos que encerram. 3.2. Conhecer a vida Trinitária O “dom de Deus” é, estruturalmente, a vida comunitária da Santíssima Trindade. Há modelos de existência e de família que invadem as nossas mentalidades e as nossas casas. Não contentar-se com o vulgar e o mais comum mas tentar ir para além do imediato é mergulhar na comunhão trinitária de três pessoas que testemunham a unidade na diversidade. • Reconhecer na comunhão relacional Reconhecer o dom trinitário deve passar para o exercício permanente de comunhão onde a individualidade de cada um integra as diferenças que, por muito que queiramos, nunca se destroem. Elas não são concorrentes da felicidade pessoal mas o ambiente único gerador da verdadeira alegria. A índole relacional é um campo de iniciativas e apostas que nos colocam permanentemente perante desafios novos. A família, o emprego, as comunidades são o terreno onde é possível demonstrar o reconhecimento da dádiva do amor trinitário. 3.3. Conhecer a diferença cristã Conhecer o dom de Deus é deixar-se moldar por Ele. O divino vai penetrando para possuir, provocando uma identidade que nos diferencia de muitos outros estilos de vida. Deus não é um concorrente com a vida humana, mas deve permear tudo o que a caracteriza numa plurifacetada expressão de comportamentos. Sublinha-se muito a diversidade oriunda da liberdade de consciência. Só que, nem sempre, conseguimos expressar a identidade de algo que tendo raízes interiores se manifesta, talvez silenciosamente, no quotidiano complexo e difícil. • Reconhecer na ousadia da fidelidade Daí que o compromisso, como reconhecimento, encontra a sua expressão mais eloquente no testemunho. O cristianismo nunca se pode reduzir a mera interioridade. Parte do invisível mas deve tornar-se visível através de comportamentos que não necessitam de estatísticas para serem consideradas normais. Somos vocacionados para a universalidade mas teremos de ter a coragem de testemunhar fidelidade aos princípios que o dom de Deus encerra. Nada mais premente que esta fidelidade à pessoa de Cristo e aos princípios e valores evangélicos, com carácter de testemunho corajoso e público, na sociedade da “feira” que propõe “produtos” enganadores. Como tantos outros poderemos “beber” das águas que quotidianamente nos oferecem. Importa ousar a coragem de beber da “água que Eu lhe der” “para nunca mais ter sede”. Por isso, o testemunho emerge, como exigência a viver na vida pessoal e familiar, e significa “renunciar” sendo diferente em todos os lugares, públicos ou privados, para que a Igreja aí esteja presente. Não desconsideramos as renúncias, abstinências, jejuns prescritos. Existem outras com mais actualidade e rigor. Com elas pode nascer uma personalidade nova que, mesmo não sendo reconhecido por todos, elevará o mundo e apontará caminhos de esperança. 3.4. Conhecer o dom na criatividade do amor Conhecer o dom de Deus significa, ainda, acolher uma semente. Na verdade, onde está Deus aí está a criatividade dum mundo de fraternidade nascido da consciência dum Pai comum que congrega a humanidade numa autêntica família. O “dom de Deus” não é meu. É um “dom” oferecido a todos através duma dignidade comum a defender e promover. Com ele recebemos o dinamismo duma vida que pretende saciar a sede de todos. • Reconhecer a Partilha como fonte de água viva Reconhecer o dom como semente exige que a partilha se torne experiência para poder ir ao encontro dos mais necessitados e dotar a Igreja das condições necessárias de modo a que se torne capaz de oferecer a água viva de Cristo à humanidade. Aqui situamos a renúncia quaresmal ou contributo Penitencial. Acolhemos o “dom” e renunciamos e partilhamos. O Santo Padre, na mensagem para esta Quaresma, opta por concentrar-se nesta sugestão “que representa uma forma concreta de socorrer quem se encontra em necessidade e, ao mesmo tempo, uma prática ascética para se libertar da afeição aos bens terrenos”. Aí recorda-nos que não somos “proprietários mas administradores dos bens que possuímos” e interpela-nos a dar com alegria e para glória de Deus com gestos de doação escondidos e sem vanglória para nos sentirmos próximos dos outros e de Deus. Nesta experiência de doação estamos a oferecer um anúncio e testemunho de Cristo uma vez que peregrinamos em sintonia com o estilo que S. Paulo sintetiza afirmando: “Cristo fez-se pobre por nós” (2 Cor. 8, 9). Este “estilo” convida à conversão e adverte que se é fundamental “dar”, é imperioso “dar-se”. “Na sua escola, podemos aprender a fazer da nossa vida um dom total: imitando-O conseguimos tornar-nos disponíveis para dar não tanto algo do que possuímos, mas darmo-nos a nós próprios… Quando se oferece gratuitamente a si mesmo, o cristão testemunha que não é a riqueza material que dita as leis da existência, mas o amor”. 4. Compromisso de Renúncia e Contributo Penitencial Nesta perspectiva recordo as finalidades do nosso Contributo Penitencial: 4.1. Finalidades habituais – Para o Fundo de Solidariedade com o qual a Conferência Episcopal Portuguesa responde às solicitações que lhe são formuladas de todo o mundo; – Para a construção de Igrejas e espaços de evangelização nas comunidades da nossa Arquidiocese com menos possibilidades. 4.2. Finalidades especificas da Quaresma 2008 Para este ano, e depois de ouvido o Conselho Presbiteral, determino que reverta, dum modo particular, para duas grandes causas: uma de dimensão diocesana e outra como expressão missionária. – O Centro Universitário, a edificar no Campus da Universidade do Minho, manifesta a aposta da Igreja Arquidiocesana no diálogo com a cultura, como pastoral a promover e a incentivar. – A Igreja e a Residência Paroquial de Bolama, Diocese de Bafatá, na Guiné-Bissau, evoca uma presença portuguesa que continua a sentir-se e que deve crescer. 5. Conclusão Regresso ao texto que me acompanhou nesta mensagem. O convite de Cristo a conhecer o “dom” de Deus foi acolhido pela samaritana e muitos outros Lhe pediram que ficasse com eles. Ele ficou dois dias e eles quiseram “ficar com Ele”. O resultado foi que acreditaram não só por causa da Palavra dita. Chegaram a uma experiência pessoal “Nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é realmente o Salvador do mundo” (Jo 4, 42). Como Arquidiocese quisemos concentrar-nos na realidade das nossas famílias. Conhecemos o dramatismo de muitas situações, consciencializamo-nos da existência de formas alternativas ao modelo cristão, interiorizamos a força de propostas eivadas dum laicismo impressionante, vimos a vida ameaçada em todas as idades e desconsiderada na indignidade de muitas existências, advertimos a degradação do amor na superficialidade de experiências sexuais dentro e fora do matrimónio, observamos as infidelidades e a pouca estabilidade de muitas situações… Com tudo isto não cruzamos os braços. Pretendemos, através de propostas duma nova pastoral familiar a estruturar no final da caminhada, continuar a ser esperança para o mundo na opção única de que Ele é realmente o Salvador. A mudança cultural responsabiliza-nos. Só o empenho e compromisso de todos permitirá que a Páscoa aconteça quotidianamente. Quarta-feira de Cinzas, 06.02.2008 † Jorge Ortiga, A. P.

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