Meninos de rua e Meninos na rua

Bispo do Funchal escreve sobre um dos desafios mais inquietantes do nosso século Na diocese do Funchal houve a preocupação de atender às crianças abandonadas ou em perigo, principalmente as do sexo feminino. Só mais tarde, e com grande esforço, se conseguiu atenuar o vazio para o sexo masculino, intervenções onde não faltaram dedicação e sacrifício, mas onde surgiram problemas e contradições como em todas as obras humanas. Nestas instituições as crianças são amadas, respeitadas e preparadas para a vida em sociedade. 1. O Pontifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes realizou em Roma, no passado mês de Outubro, o I Encontro Internacional para a pastoral dos meninos de rua. O documento final foi enviado a todos os bispos. O Santo Padre pediu que o encontro «contribuísse para formular propostas concretas de eficazes intervenções de acolhimento e assistência à juventude em risco, para os sem casa e sem família…» Os meninos de rua constituem um dos desafios mais inquietantes do nosso século, tanto para a Igreja como para a sociedade civil e política. A Amnistia Internacional estima em 100 milhões o número destes meninos e meninas de rua, e a Organização Internacional do Trabalho, em 150 milhões. Apesar de serem números inquietantes, o fenómeno continua a crescer em todos os continentes. Da parte civil a atitude prevalente é a do alarme social, é uma ameaça à ordem pública, falta uma disposição eficaz para ajudar a resolver ou atenuar a situação. O sentido humanitário, solidário e até cristão não é o que mais predomina. Estes meninos fazem da rua a sua habitação, têm experiências traumatizantes na família, foram expulsos ou fugiram de casa, outros são induzidos por adultos ou clãs de má vida a permanecer na rua, para prostituírem-se, mendigar, distribuir drogas. Apesar da casa de família passam a vida na rua 2 – Diferentes destes meninos são os que possuindo casa e família transcorrem grande parte do seu tempo na estrada, sem frequentarem a escola nem terem formação para o futuro, com companhias pouco recomendáveis. O seu número é muito preocupante mesmo nos países desenvolvidos. É o caso dos nossos meninos das «caixinhas», vítimas de condições de pobreza e, também da desagregação das famílias, tensões entre os pais, comportamentos agressivos e, por vezes, até imorais na própria casa. Os poderes públicos estão alarmados, e reconhecem que sem a intervenção do social privado e voluntariado não conseguem recuperar estes meninos de rua e na estrada. Da parte da Igreja tem havido um esforço imenso para a prevenção e recuperação destas crianças, mas temos de confessar que é um terreno que obriga a grandes energias e contradições. As cartas anónimas enviadas à tutela e aos jornais respiram ódio e vinganças pessoais, raramente procuram contribuir para a mudança de situações difíceis. Além disso torna-se ingrato estar sujeito a frequentes inspecções e vistorias, sem que os responsáveis sejam chamados a emitir a sua opinião e corrigir informações malévolas e defender-se de ataques e insinuações. Evangelização e psico-pedagogia 3 – Os compromissos com os meninos de rua e na rua não são tarefa fácil e, às vezes, parece frustrante, pode-se até ceder à tentação de baixar os braços. A recuperação em tenra idade é, geralmente, possível, na adolescência torna-se mais difícil. Para as instituições eclesiais que se dedicam às crianças, a evangelização, que tende a recuperar e valorizar a dimensão religiosa, é acompanhada das intervenções sócio-assistenciais e psico-pedagógicas. Não há contraposição entre as duas atitudes. O encontro com Cristo ressuscitado ajuda a curar as feridas e traumas dos corações feridos, mesmo na infância. Cristo mostrou sempre uma predilecção pelos mais pequenos, atitude que contrasta com a do seu tempo, quando a criança era respeitada não em si mesma mas em razão do que seria na idade adulta. Na diocese do Funchal houve a preocupação de atender às crianças abandonadas ou em perigo, principalmente as do sexo feminino. Só mais tarde, e com grande esforço, se conseguiu atenuar o vazio para o sexo masculino, intervenções onde não faltaram dedicação e sacrifício, mas onde surgiram problemas e contradições como em todas as obras humanas. Nestas instituições as crianças são amadas, respeitadas e preparadas para a vida em sociedade. Não se duvida que a família natural é o melhor espaço educativo, quando ela é capaz de cumprir a sua missão de pais e educadores. A adopção é uma alternativa já facilitada pela nova legislação. Mas para além de várias medidas possíveis, haverá sempre um número de crianças que ficarão excluídas, principalmente as deficientes que, mesmo com família, os pais não as querem em casa e, por vezes, nem as visitam nas instituições. Bom seria que estas casas nunca fossem necessárias, o problema é que elas não podem responder aos vários pedidos que lhe são feitos. Desta forma os problemas das crianças pobres e desamparadas continuam a exigir instituições apropriadas, com pessoas que saibam amá-las, compreendê-las, sofrer e sorrir com elas. Estas instituições estão sujeitas a legislação que vem de cima para baixo, ditadas por pessoas com graus académicos mas que não dão a vida por esta causa. A autêntica educação é feita por pessoas que têm um coração grande e aberto a todas as carências e problemas humanos dos mais desprotegidos e abandonados, com eles convivem dia e noite, na saúde e na doença, nos bons e maus momentos. Nuvens obscurecem dedicações comprovadas 4. Nos últimos tempos têm aparecido nuvens a obscurecer o bom nome de pessoas, cuja dedicação e entrega total a esta causa não se pode duvidar, com a pretensão de descobrir verdadeiras ou falsas agressões e castigos aos residentes nestas instituições. Seguem-se depois inquéritos, visitas de inspectores, peritos técnicos, devassa de privacidade da casa, causando pressões degradantes, levando à perda de tempo e instabilidade psicológica, pondo em causa a generosidade, o carinho, a experiência e até competência de pessoas e instituições que merecem todo o nosso respeito. Um dos casos mais propagados nos últimos tempos foram as Casas do Padre Américo no continente. Os inquéritos e vistorias podem ser frutuosos se não forem dominados pela obsessão técnica, arrogância, afastamento e até desprezo das pessoas que regem as instituições, feitos por diplomados, por vezes, alheios à vida concreta e real do dia a dia dos residentes. Embora as teorias e conhecimentos teóricos sejam válidos, eles não chegam para aquecer os corações, serenar situações difíceis e abrir caminhos para tantos problemas que surgem cada dia na formação e educação dos que não tiveram a felicidade de nascer e crescer numa família digna deste nome. Certamente que podem surgir defeitos e problemas nas instituições que exigem intervenções dos que as tutelam. Mas tratando-se de pessoas e casas que dão a vida por esta causa, faz parte do verdadeiro humanismo não esquecer as situações peníveis e difíceis daqueles e daquelas que acompanham e se imolam pelos que se sentem órfãos e encontraram um ambiente familiar nas instituições e no coração dos que se entregam sem olhar ao relógio nem ao tempo por uma causa tão nobre. «Bem-aventurados os misericordiosos, diz Jesus, porque encontrarão misericórdia», se não for cá em baixo, seguramente será naquele Reino onde se entra somente com o «diploma» do amor de Deus e do próximo. Funchal, 6 de Fevereiro de 2005 † Teodoro de Faria, Bispo do Funchal

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