«Memória dos mortos e salvação dos vivos»

Homilia de D. Manuel Clemente sobre o desastre da Ponte das Barcas e todas as vítimas de guerras e tragédias Já lembrámos hoje, no próprio local da tragédia de há dois séculos, todos os que nela pereceram, em hora tremenda da cidade e do país. Trazemos a esta catedral a mesma memória, agora celebrada em sufrágio, mas salva naquela esperança que nos vem da fé em Deus e da promessa de Cristo. Para os cristãos de qualquer época – e certamente para aqueles que o rio levava na altura – Cristo é um eterno presente e a substância dum apelo, mais ou menos sonoro ou surdo, mas sempre lançado, para lá das dores, das trevas e da própria morte. Com as palavras litúrgicas deste Domingo quaresmal, com a música solene do Requiem de Bomtempo, com os versículos bíblicos que há momentos escutámos, é esse apelo que ainda fazemos, é nessa esperança que nos mantemos e nos propomos recomeçar. A religião de Cristo, essa mesma que professavam as vitimas daquele imenso desastre, traz-nos uma relação com Deus que passa inteiramente pelo homem, nas vicissitudes da nossa existência comum. Acreditamos nós, como acreditavam os que morreram na altura, que, em Cristo, Deus se diz ao homem, pois é Deus comunicado, e o homem se diz a Deus, porque é Deus humanado. Daqui a esperança com que se vive, daqui a esperança com que se morre. Espontaneamente, olhamos para o céu nas aflições que surjam. Mais cristãmente, refluímos para o coração próprio e dos outros, onde Deus mais se encontra, desde que se fez um de nós; e em todos nos quer estender a mão, ou espera que lha estendamos também. Para que esta religião finalmente acontecesse, de modo a parecer-nos tão convincente e esperançosa, necessário foi que o céu e a terra realmente se unissem, numa vida total e pessoal. Total porque nada de humano deixou de fora; pessoal, porque inteiramente consciente e comunicada. Ou melhor, como ouvimos na Epístola aos Hebreus, transmitindo-nos a consciência clara das primeiras gerações cristãs: “Apesar de ser Filho [de Deus], Cristo aprendeu a obediência no sofrimento e, tendo atingido a sua plenitude, tornou-se para todos os que lhe obedecem causa de salvação eterna”. Vivia Cristo dum segredo que as vítimas de há duzentos anos conheciam: a sua relação com Deus Pai, com quem era um e eterno, na comunhão da mesma vida partilhada. Feito homem, permitiu-nos participar na sua condição de Filho de Deus, pois que connosco partilhou a vida e o destino, abrindo em cada circunstância humana um horizonte infindo, desde que vivida no mesmo Espírito, ou seja, em entrega confiante ao Pai, em tudo e até apesar de tudo. A isto chama a Epístola “aprender a obediência no sofrimento”, porque é na realidade da vida e não na alienação dela que podemos encontrar a Deus, seu permanente sustento. Muito melhor o diriam os teólogos. Mas estou bem certo de que este segredo conheciam as vítimas de há dois séculos, como o conhecem as de tantas guerras e desastres, quando tenham alguma lembrança evangélica ou conservem no íntimo o apelo da vida. Da vida, precisamente, e ainda esta cristãmente tomada. As coisas que vão ditas, valem como vividas e só vividas se percebem. Saber que as vítimas de há dois séculos e tantas outras de antes e depois pressentiam que a tragédia não podia ser o fim absoluto; saber que, sendo cristãos, nela continuavam a encontrar um Deus próximo, que os receberia mais além; saber até algum que, na última generosidade que tivesse para as outras vítimas daria e receberia o mesmo Cristo: tudo isto acede àquele perfeito humanismo que só a Cruz de Cristo revela plenamente. – E revela-se plenamente o quê? Que a existência de cada um de nós, sendo tão dependente e perecível, nunca terá garantia que lhe baste, para ficar sem medo ou sobressalto. Mas que há um modo, agora patente e oferecido, de lhe dar a segurança que não teria sozinha e de lhe vencer o medo por si só iniludível. Esse modo chama-se entrega, a sua figura definitiva é a Cruz. Há então uma lei para garantir a vida: é dá-la, vencendo o egoísmo homicida; é depô-la nas mãos de Deus Pai, para que Ele nos ofereça com Cristo ao mundo e do mundo nos ressuscite com Cristo, cumprindo totalmente o arco da existência, realizando o anseio de eternidade que nos abriu no coração. O pior que nos podemos fazer – a nós e aos outros – é recurvarmo-nos sobre nós mesmos, tentando guardar egoisticamente uma vida que nos fugiria quanto mais apertada, como água por entre os dedos. Muito pelo contrário, e com o significado que estas palavras ganham na caridade de Cristo, morrer é viver e oferecer-se é ganhar-se. Oiçamo-lo com o Evangelho de hoje: “Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só; mas, se morrer, dará muito fruto. Quem ama a sua vida, perdê-la-á, e quem despreza a sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna”. Mas, caríssimos Senhores e irmãos, para estarmos autenticamente com as vítimas de há dois séculos e de todos os séculos, quer compartilhando com elas tal vislumbre de eternidade, quer repetindo agora a última generosidade que tivessem, é-nos necessária uma atitude permanente que manifeste e garanta essas atitudes finais e salutares. Se é verdade que morremos como vivemos, então vivamos já como morremos, no aludido significado que Cristo dá a estes verbos. Ou seja, traduzamos eternidade por caridade e estejamos com Deus servindo o próximo. Há duzentos anos o Porto sofreu em pouco tempo a soma de muitas calamidades: guerra, pilhagem, atrocidades sem conto e morte trágica duma multidão espavorida. Nem a imaginação nos chega para o que sucedeu nesta encosta, da catedral ao rio… Mas poderíamos continuar, até às notícias antigas ou actualíssimas de tragédias semelhantes por esse mundo fora. E é precisamente aqui que esta comemoração redunda em compromisso, certamente reforçado, para que a memória dos mortos se torne salvação dos vivos, tornando-nos mais capazes de honrar aqueles, servindo os aflitos de hoje em dia. Significa isto promover activamente a paz. Permiti-me ilustrá-lo com alguns pontos de doutrina católica, partilhados por todos e para o bem de todos: “A paz constrói-se dia a dia na busca da ordem querida por Deus e pode florescer somente quando todos reconhecem as próprias responsabilidades na sua promoção. Para prevenir conflitos e violências, é absolutamente necessário que a paz comece a ser vivida como valor profundo no íntimo de cada pessoa: só assim pode estender-se às famílias e às diversas formas de agregação social, até envolver toda a comunidade política. Só num clima difuso de concórdia e de respeito pela justiça pode amadurecer uma autêntica cultura de paz, capaz de se difundir também na comunidade internacional. […] Tal ideal de paz não pode conseguir-se na terra se não se salvaguardar o bem dos indivíduos, e os homens não comunicarem entre si com confiança e por sua própria vontade as riquezas do seu espírito e das suas faculdades criadoras” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 495). Em suma: a paz estabelece-se como sentimento e pedagogia, da pessoa e da família até à comunidade política e internacional; a paz concretiza-se e garante-se no serviço a cada um e na partilha integral de todos. E aqui vale a religião – essa mesma que essencialmente nos une às vítimas que evocamos – e mais como inspiração essencial do que como mero “suplemento de alma”. Realize-se em nós a promessa divina, que ouvimos ao profeta Jeremias, ultrapassando a própria letra dos códigos pela força viva das convicções: “Naqueles dias, diz o Senhor: hei-de imprimir a minha lei no íntimo da sua alma e gravá-la-ei no seu coração”. Assim se manifestará todo o significado da Cruz, onde Deus e o homem inteiramente se unem, na vitória da caridade e da paz, realizando a profecia de Cristo: “Quando Eu for elevado da terra, atrairei todos a Mim”. Na verdade, N’Ele estavam todas as vítimas da terra, recolhidas na misericórdia do Céu. Sé do Porto – 29 de Março de 2009, 5.º Domingo da Quaresma + Manuel Clemente

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