Maria de Lourdes Pintasilgo

Um discreto retrato a três tempos nos 80 anos do seu nascimento

No dia exacto em que se celebraram oito décadas sobre o nascimento de Maria de Lourdes Ruivo da Silva Matos Pintasilgo, a 18 de Janeiro de 1930 em Abrantes, uma série de eventos convocou-nos a reler as páginas que esta mulher escreveu na história de um país, nosso.

Fiz já referência, em texto publicado, ao documentário de Graça Castanheira, onde pontuam uma série de testemunhos de personalidades da vida pública nacional sobre Maria de Lourdes Pintasilgo. Por outro lado, existe também bibliografia disponível que permite o acesso a outros tantos testemunhos que não constam no filme, caso de  “Mulher das Cidades Futuras”, de 2000, onde se compila mais de uma centena de mensagens de personalidades públicas que com ela conviveram.

Assim sendo, é aqui opção uma via mais discreta mas igualmente fidedigna para obter um retrato tão sucinto como justo e o mais global possível sobre tamanho vulto, através do testemunho de três pessoas que a acompanharam, de forma muito própria, em três momentos distintos e determinantes da sua vida.

A liderança da JUC e a reclamação de uma nova Universidade

Maria Isabel de Mendonça Soares licenciada em Filologia Românica, autora de vasta obra de literatura para a infância e docente (jubilada) da Escola Superior de Educadores de Infância Maria Ulrich, foi vice-presidente da Juventude Universitária Católica (JUC) durante parte da presidência da organização assumida por Maria de Lourdes Pintasilgo.

Na JUC, participa activamente na preparação do I Congresso Nacional do seu movimento, intitulado “O Pensamento Católico e a Universidade”, juntamente com Adérito Sedas Nunes, Maria Manuela da Silva e Sara Cristina Simões, cabendo ao primeiro e a Maria de Lourdes Pintasilgo os discursos de abertura e encerramento do Congresso. Tendo lugar em Abril de 1953, o congresso resulta de um intenso trabalho preparatório de dois anos, protagonizado pelas vertentes feminina e masculina do movimento, englobando sessões plenárias, comunicações, discursos e reuniões onde, pela primeira vez, alunos e licenciados, entre um total de 2000 participantes das três universidades do país, têm oportunidade de dissertar em público ao lado dos seus docentes.

Maria Isabel não hesita em afirmar que a grande formação política dos católicos foi feita através da Acção Católica, baseada em profundos valores de justiça social.

É neste congresso que o portentoso discurso de Maria de Lourdes Pintasilgo confirma o seu carisma, arrebatando grande parte dos participantes ao reclamar a urgência de uma “universidade renovada” longe de uma escola de técnicos, de valor humano muito discutível que pretere ou mesmo renega as funções essenciais que lhe cabem: preparar os discentes para a vida social, incutir o espírito de serviço ao bem comum, consciencializando-os para a responsabilidade de se assumirem como membros activos da sua própria mudança e não apenas críticos observadores de uma realidade alheia.

Em todo o seu discurso, Maria de Lourdes inequivocamente coloca valores universais como a justiça, o bem comum ou a equidade à frente de ideologias.

É, também aqui, que se reivindica pela primeira vez a urgência de uma Universidade Católica, em que Maria de Lourdes se empenha, como Maria Isabel atesta, com um genuíno sentido de luta, fidelidade aos seus valores, uma rectidão e uma simplicidade  que marcaram a sua vida. Um sentido de compromisso para lá de qualquer possibilidade de “espartilho” estrutural, fosse ele de que natureza.

Depois deste seu determinante papel na liderança do sector feminino da JUC, Maria de Lourdes Pintasilgo vem a fundar, em 1957 e juntamente com Teresa Santa Clara Gomes, o Movimento Graal, a partir de uma passagem pelos Estados Unidos. Maria Isabel já não acompanha com igual assiduidade a vida da amiga, mas segue com interesse e entusiasmo a sua representação no III Congresso Mundial do Apostolado dos Leigos, realizado em Roma em 1967 e a sua designação, pelo Papa Paulo VI de representante da Igreja Católica num grupo de ligação ecuménica com o Conselho Mundial das Igrejas, de 1966 a 1970.

Novo entusiasmo no seguimento dos passos da amiga ressurgirá aquando da sua nomeação para chefiar o V Governo Constitucional, em que Maria Isabel não hesita em afirmar que poucos fizeram tanto pela igualdade de direitos (das mulheres mas não só), em tão pouco tempo.

A participação da mulher na vida económica e social

Quando Maria de Fátima Falcão de Campos, jurista, formada pela Faculdade de Direito de Lisboa e jovem mãe de família, já com três filhos, é chamada a colaborar com o gabinete de Maria de Lourdes Pintasilgo, está longe de imaginar a enorme reviravolta que a sua vida profissional está prestes a dar.

Estamos em 1971 e Fátima assume como um emprego regular o seu trabalho no Ministério das Corporações até ser destacada pelo seu chefe de então, Henrique Nascimento Rodrigues, para integrar, juntamente com outras pessoas provenientes dos diversos serviços ministeriais implicados na vida laboral das mulheres (incluindo Maria do Carmo Romão), o Grupo de Trabalho para a Participação da Mulher na Vida Económica e Social liderado por Maria de Lourdes Pintasilgo, o qual evoluiria para a Comissão para a Política Económica e Social Relativa à Mulher, com integração de novos elementos.

Fátima destaca, desde logo, as características detectadas em Pintasilgo: o carisma; a afabilidade, a capacidade de estímulo e motivação para uma causa; a capacidade de valorização do trabalho de outrém por meio de reforço positivo sempre que realizado com qualidade e esforço – por mais pequeno que parecesse; e a extraordinária exigência em relação a si e aos outros. Características inequívocas de liderança.

O extraordinário desígnio deste grupo, que Fátima vê imprevisivelmente agigantar-se aos seus olhos, com igual entusiasmo e temor inicial, é o de criar um conjunto de leis visando a consagração de direitos às mulheres que à época, para o comum dos portugueses parecia, senão uma impossibilidade, uma utopia: uma lei sobre a protecção da maternidade, para a igualdade de direitos no trabalho e outras que hoje, ao invés, nos pareceriam impossíveis de não existir!… Em três anos, as leis são rigorosamente elaboradas, sob detalhado escrutínio de Pintasilgo em termos da sua validade jurídica e antes de dadas como concluídas, pormenorizadamente discutidas,  como se, sob debate, estivessem para entrar em vigor no dia seguinte.

No dia seguinte não seria, mas o extraordinário poder de antevisão de Pintasilgo, naturalmente a par da sua enorme credulidade na capacidade de mudança e abertura de Marcelo Caetano, com incondicional adesão ao mesmo, permitir-lhe-ia a ela e a todas as mulheres portuguesas, incluindo a própria Maria de Fátima Falcão de Campos levar estas leis avante no pós 25 de Abril, já não no governo marcelista que idealizara mas noutro contexto, como garantia fundamental de igualdade de direitos num conturbadíssimo período da nossa história.

Este é certamente o maior marco deixado por Pintasilgo mesmo fora de funções governativas e que, tal como testemunha o seu papel na JUC, a identifica como uma mulher profundamente comprometida com os seus valores, designadamente, católicos em que se fundamenta para assentar qualquer desempenho que tenha na vida: pública, privada, cívica, religiosa, política ou social.

A diversidade de apoios à presidência da República

Muitos anos mais tarde, em 1986, Maria de Lourdes Pintasilgo é vista pelo jovem e idealista Miguel Avillez, que não chegou a conhecê-la pessoalmente a fundo, como o personificar daquilo que ele considerava ser um urgente “abanão” popular entre poderes que não crê que se devam instalar comodamente na vida política. São estas as motivações que o levam a integrar o movimento de apoio à candidatura de Maria de Lourdes Pintasilgo à Presidência da República.

Nado e criado no ambiente confortável de Cascais e imbuído de um visceral sentido de justiça, Miguel é, como tantos da sua idade, activa e tenramente permeável a ideais radicais revolucionários no pós- 25 de Abril, acreditando mesmo que alguns meios, como a ocupação de casas, justificavam alguns fins como os de garantir um tecto a quem não o tinha.

A sua consciência política amadurece e em 1986 chega a ser convidado para liderar o núcleo de apoio a Pintasilgo em Cascais. Tem consciência de que Pintasilgo não será a vencedora mas considera-a peça fundamental na defesa de direitos que teme ver deglutidos pelos partidos maioritários.

Não o incomoda minimamente a proveniência católica de Pintasilgo, em que o próprio não é, por opção, afiliado,  nem a sua ligação a Marcelo Caetano. Não a escolhe por ver nela a negação dos princípios que sempre a vira defender. Pelo contrário: sempre os apreciou e continua a vê-los impressos na candidata.

Talvez não seja abusivo pensar que como a este jovem adulto tal seria indiferente, também a ela poderá ter sido, até determinado momento, pelo menos, indiferente o facto de ter um ex-trotskista alinhado na sua candidatura.

A não ser que a este ponto da sua vida, como Miguel Avillez refere, se possa ter sentido, de novo, empurrada ao partidarismo a que sempre tentou escapar, espartilhada num ideal muito distante dos seus valores e, sobretudo, sob uma tentativa de manipulação para fins políticos a que desejaria ser alheia.
Nas eleições recolhe pouco mais de 7% dos votos, mas confirma o seu compromisso de valores no discurso de derrota.

Com o tempo esbater-se-ão os efeitos da sua opção não partidária, com Maria de Lourdes a dedicar-se cada vez mais à vida cívica, fora do palco político.

 

Depois dos três olhares sobre ela aqui apresentados, que reflectem três marcas totalmente diferentes deixadas por Maria de Lourdes Pintasilgo ao longo da sua vida pública, é inequivocamente constante o seu profundo e genuíno compromisso com valores indiscutivelmente universais, pelos quais sempre lutou mesmo aprendendo que essa luta era mais eficaz, mais verdadeira e exequível fora da arena política. A comprová-lo estão a fundação do Graal e as suas representações internacionais em organismos oficiais da Igreja, na Unesco ou na Onu, para além das inúmeras iniciativas na defesa de direitos humanos que até hoje perduram, ligados à Fundação Criar o Futuro.

Margarida Ataíde

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