Paulo Rocha, Agência ECCLESIA
O debate em torno dos abusos sexuais tem de acontecer em toda a sociedade. Combater este crime, nomeadamente cometido contra menores, tem de ser um desígnio de toda a sociedade, ativando as competências policiais e judiciais capazes de o investigar, julgar e sentenciar. Por iniciativa da Igreja Católica, nomeadamente nos últimos pontificados, a crescente determinação da necessidade de desocultar casos de abuso sobre menores, nomeadamente os de natureza sexual e também de poder, colocou o foco do problema num setor da sociedade, o que deve ser antes de mais acolhido como uma oportunidade para combater estes crimes.
Em Portugal, a Conferência Episcopal decidiu criar uma Comissão Independente, em novembro de 2021, para estudar o passado, para recolher depoimentos de vítimas nos últimos 70 anos. O objetivo foi definido claramente na apresentação da Carta de Intenções da Comissão, no dia 2 de dezembro de 2021: “procura de uma verdade histórica sobre o que poderá́ ter acontecido a um número incontável de menores no campo dos abusos sexuais em diversos contextos da sociedade, em especial no seio da própria Igreja Católica”. E acrescentava esta carta de intenções: “Mais do que alcançar números, algoritmos ou dados percentuais, procuramos chegar a pessoas e sendo essa uma mais que possível dificuldade será́, com certeza, a mais esperada e justa recompensa para todos os que vão trabalhar nesta equipa”.
Assim, nunca esteve em causa o desenvolvimento de uma investigação, mas de um estudo, nunca se avançou com o propósito de fixar números, mas dar “voz ao silêncio”, nunca se quis julgar publicamente abusadores, mas proteger as vítimas.
Diferente do propósito definido pela Comissão Independente, a expectativa da opinião pública foi colocando o foco em números, seja de vítimas seja de abusadores, e as perguntas ao longo de um ano de estudo histórico centraram-se progressivamente em estatísticas e percentagens.
Condicionada ou não pela expectativa da opinião pública, de que o acompanhamento mediático é reflexo (ou causa), a Comissão Independente foi criando metas numéricas, fortemente assumidas quando anunciou a entrega à Conferência Episcopal Portuguesa de uma “lista de abusadores no ativo”, apontando para mais de 100 nomes. E este anúncio fez esquecer tudo o resto: o estudo do que terá acontecido nos últimos 70 anos, o relatório produzido após um ano de escuta, as vítimas e os relatos que partilharam presencialmente e sobretudo de forma anónima.
O abuso sexual de menores é, infelizmente, muito mais grave do que uma lista, sobretudo esta lista. Que os nomes aí denunciados de forma credível sejam investigados, sem dúvida. Mas que não se esqueçam as vítimas, as do passado e sobretudo as do presente, as que sofrem, em cada dia, abusos sexuais.
A centralidade das vítimas, a tolerância zero diante de abusadores e a transparência total de casos de abuso não se resolve, infelizmente, com uma lista. Que se considere, mas que não se esqueça o estudo, os ambientes em que ocorrem, o perfil dos abusadores e o contexto das organizações eclesiais que os ocultaram. Porque o objetivo é prevenir e erradicar situações de abuso. E, quando ocorrem, proteger e ajudar as vítimas e julgar os abusadores, na justiça civil e segundo as regras definidas pela Santa Sé para toda a Igreja Católica.