LUSOFONIAS – Vacina para todos

Tony Neves, em Roma

Somos todos irmãos e irmãs. Na hora de pôr a mesa, o pão devia ser dividido por todas as bocas, por igual. Pão, mesa, tecto e terra deveriam ser património universal. Mas nada disto acontece e a palavra ‘injustiça’ continua a ter um lugar cativo em todos os dicionários e práticas políticas, económicas e sociais. Infelizmente, para os mais pobres que se sentem excluídos de todos estes banquetes.

Tudo isto a propósito das tão faladas e desejadas vacinas contra a covid 19 que os laboratórios lutam por pôr no mercado. Não me parece que andem por aí sentimentos muitos humanitários, mas antes uma enorme vontade de chegar primeiro a um mercado que promete dar milhões. Por isso, entra-se na lógica do ‘vale tudo’, desde enganar com notícias de descobertas ainda não feitas, até à inaceitável venda prévia de direitos de algo que ainda não se tem e que, quando se tiver, deveria ser posto ao serviço da comunidade como um bem comum universal. Circulam notícias que dizem que os países mais ricos já reservaram boa parte das futuras vacinas! E os mais pobres?

Assim, Mohammad Yunus, conhecido Prémio Nobel da Paz, lançou uma campanha mundial a que deu o título: ‘Declare a vacina contra a covid 19 como um bem comum global’. Foi extraordinária a reacção do mundo inteiro a esta proposta, multiplicando-se adesões, desde outros Prémios Nobel a figuras públicas mundiais notáveis em todas as áreas do saber e do agir. O objectivo é pressionar as Nações Unidas e os Governos e sensibilizar a sociedade civil para esta questão tão actual como decisiva para o presente e o futuro das populações no mundo inteiro. Em Portugal, foi a Academia de Líderes Ubuntu, um projecto do Instituto Padre António Vieira, quem lançou a campanha ‘vacina para todos’. A adesão foi enorme, associando-se figuras de todos os sectores da vida pública nacional, contando até com os nossos três cardeais com idade de participar em conclave: D. Manuel Clemente, D. António Marto e D. José Tolentino Mendonça.

Subscrevi e convido todos a subscrever esta campanha que sugere às entidades mundiais que libertem as futuras vacinas de patentes, para que os mais pobres também delas possam beneficiar. Pede-se um acesso universal, justo e gratuito a esta arma de combate sem tréguas a uma pandemia que mata pessoas, relações e economias.

Mas há que ter em atenção e gerir bem certas sensibilidades mundiais no que diz respeito a esta ou outras vacinas. De facto, há muita desconfiança no ar, causada por falsas notícias e pelo aparecimento de tantos testes em tão pouco tempo. Também houve e há reacções fortes em África, Ásia e América Latina aos critérios de escolha de pessoas para testar futuras vacinas. Quando surgiram notícias de que um determinado laboratório europeu ia fazer testes em África, houve levantamentos populares de contestação, defendendo a ideia óbvia de que os africanos não são cobaias de experimentação das farmacêuticas europeias e norte americanas. Por isso, eu compreendi bem e tenho esclarecido alguns Missionários Espiritanos africanos que contestaram a minha adesão a esta campanha. Um deles reagia assim: ‘porquê impor a vacina para todos, se muitos a não querem?’. Respondi que não quero impor, mas quero que todos os que sentirem a sua necessidade a possam receber gratuitamente e não se vejam dela privados por razões meramente económicas.

O mundo continua a correr a diversas velocidades segundo o dinheiro que tem e a forma como o aplica. Continuo a achar estranho que não se consiga uma vacina para a malária que mata milhões todos os anos (e desde há séculos) e se consigam descobrir e fabricar várias vacinas contra um vírus que apareceu há meia dúzia de meses. Algo vai mal nas agendas dos laboratórios que se regem apenas (ou quase) por critérios de sucesso económico e lucro garantido à partida.

Tudo somado, sou a favor deste investimento na busca de uma vacina que mate ou controle a covid 19. É um vírus bravo demais para que deixemos as pessoas desprotegidas. Mas, na hora da sua descoberta, feitos todos os testes com segurança, há que ser democrática a sua distribuição e aplicação. Que ninguém seja excluído. Que ninguém seja posto à margem. O Papa Francisco tem repetido este alerta de que, depois desta pandemia nada ficará igual: ou saímos melhores ou piores e é importante para o mundo que os indicadores que falam da qualidade de vida das pessoas saiam reforçados.

Afinal de contas, somos todos irmãos e irmãs e é nestas horas que testamos a nossa real fraternidade.

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Agência ECCLESIA

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