LUSOFONIAS – Pastores com cheiro às ovelhas

Tony neves

D. Pedro Casaldáliga morreu aos 92 anos. Catalão de nascença, é brasileiro de missão. Chegou ali como jovem Padre Claretiano e seria conhecido mundialmente pela sua opção pelos mais pobres e pela poesia. S. Félix de Araguaia teria um Bispo pobre com uma vida inteiramente dedicada aos mais fragilizados da sociedade. Optou por um estilo de vida simples e sóbrio, interpelou pela sabedoria e frontalidade das suas palavras, entregou-se de alma e coração ao povo que lhe foi confiado. Está na origem de movimentos cristãos e populares como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Movimento dos Sem Terra (MST). Que descanse em paz. E que nós nos sintamos inspirados e desinstalados por ele.

Por falar em pastores com cheiro a ovelhas, não podia deixar de partilhar algo que aconteceu comigo estes dias. Fui visitar o Calvário de Beire, em Paredes, uma das Casas do Gaiato fundadas pelo Padre Américo para acolher crianças, jovens e adultos abandonados pelas suas famílias ou portadores de deficiências graves que condicionam a sua autonomia. Ao chegar lá, fui recebido pelo P. Fernando Fontoura, actual responsável da instituição. Tive direito a uma visita guiada que muito me honrou e tocou. Mas – devo confessar – o que mais me emocionou foi encontrar três grandes referências da Obra da Rua. Começo pelo mais jovem, o P. Rafael Serrano, o actual responsável pela Casa do Gaiato de Malanje, em Angola. Lá o encontrei há 3 anos e soube do acidente de viação que lhe fracturou diversos ossos e o obrigou a vir até Portugal para se tratar. Após um ano de luta contra tanta fractura, achou-se minimamente recuperado para regressar a Angola e retomar o trabalho em Malanje. Já partiu, apesar das muitas debilidades que ainda o limitam.

Encontrei ainda o P. Manuel António, lendário responsável pela Casa do Gaiato de Benguela onde trabalhou mais de 60 anos. Repousa agora em Beire, bastante frágil, mas muito conversador e feliz, como tive a oportunidade de experimentar no breve encontro mantido.

Mas desde 1991 que tenho uma grande referência na Obra da Rua: o P. Telmo Ferraz, pertencente à Diocese de Bragança-Miranda e há muitas décadas a dedicar-se aos mais pobres, primeiro em Moçambique e depois em Angola. Visitei-o na Casa do Gaiato de Malanje que ele fundou e animou corajosamente até há poucos anos, quando teve de regressar a Portugal. A Casa do Gaiato de Malanje é uma cidade viva. Tem muitas oficinas, campos e escolas e garantiu uma formação integral a centenas de ‘Gaiatos’ que ali viveram e se prepararam para a vida cá fora. A guerra civil, após a independência, pilhou e destruiu-lhe as estruturas duas vezes e o P. Telmo recomeçou sempre a Obra como se fosse a primeira vez. Em Malanje, o P. Telmo tem estatuto de ‘santo’ e merece-o por tanta dedicação, sem medo de colocar em risco a sua vida. O P. Telmo é um lutador pelas causas dos pobres e um escritor de classe. Quando soube da notícia de D. Casaldáliga, lembrei-me imediatamente do P. Telmo, pois são dois perfis muito semelhantes pela cultura e arte de dizer e, sobretudo, pela opção corajosa e arriscada pelos mais pobres e abandonados das sociedades onde foram missionários. Eu li muitas das obras do P. Telmo e fiquei muito feliz com a oferta do seu último livro,’o silêncio de Deus’, escrito pouco antes da chegada da covid, mas que bem podia ter sido escrito agora. Lá para o fim cita D. Hélder Câmara, o Papa Bento XVI e o Papa Francisco: ‘Capaz de transformar desertos em terra fértil, o homem parece orgulhar-se de ser criador de desertos’ (D. Hélder); ’Se os desertos exteriores se multiplicam no mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos?’ (Bento XVI); ’A crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior’ (Papa Francisco).

Precisamos todos de grandes referências, de remadores contra a maré, de pessoas coerentes que vivem o Evangelho e não se limitam a proclamá-lo.

 

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