Tony Neves
‘06 de Março de 1993. Huambo. UNITA toma o Palácio. Paragem dos combates. Choveu’. Eis o cabeçalho da página do meu Diário de Guerra, faz hoje precisamente 30 anos. Foi o ponto final, desesperadamente esperado, dos combates que arrasaram durante 55 dias e 55 noites a cidade capital do planalto de Angola. Foi o primeiro dia do resto da vida dos sobreviventes de tão cruéis combates.
Cito, pela primeira vez em 30 anos, alguns parágrafos do Diário: ‘Este dia, para nós, começou cedo: às 0h25 fomos acordados por ladrões que entraram pela horta, junto ao campo de jogos. Corremo-los à ‘garrafada’! Os migs hoje ultrapassaram todos os limites: vieram logo às 8h10, debaixo das nuvens e bombardearam a praça do Canhe, entre a Missão masculina e a feminina. Segundo a Irmã Oneide, das Servas do Espírito Santo, que levou ao Dispensário bastantes feridos, as bombas fizeram mais de cem mortos e muitíssimos feridos! Povo simples que comprava e vendia! Valha-nos Deus! Às 9h20 voltaram e largaram bombas perto daqui. Mas, pelas 15h25 largaram duas bombas de potência nunca antes experimentada: uma tonelada, dizem os entendidos. O cogumelo de fumo fez lembrar a bomba atómica. Uma das bombas caiu no bairro pobre das Cacilhas, deitando abaixo trinta casas de adobes, matando e ferindo centenas de pessoas…de povo simples e pobre que nada tem a ver com esta guerra!
À noite, os aviões Kasa vieram semear pânico às 19h30 e às 20h25, lançando bombas sobre a cidade, já controlada pela UNITA’.
Os políticos e a sociedade em geral parecem não ter memória. Não parece normal cometer sempre o mesmo tipo de erros, com consequências desastrosas para as populações, sobretudo, as mais frágeis. O papa Francisco tem pedido que não se dê lugar à globalização da indiferença, mas as suas palavras ecoam em poucos ouvidos. Há que investir numa cultura de vida e de paz, embora certos interesses assentem mais na produção e venda de armamentos que obrigam a perpetuar guerras antigas e a criar novos focos de violência.
Angola, de momento, está em paz. Há, contudo, um provérbio, que diz: ‘quando vires as barbas do teu vizinho a arder, mete as tuas de molho!’. E, verdade seja dita, a República Democrática do Congo está a arder. Essa foi a razão principal da visita do Papa. As suas sábias e contundentes palavras ainda se podem ouvir: ‘atormentada pela guerra, a RDC continua a padecer, dentro das suas fronteiras, conflitos e migrações forçadas e a sofrer terríveis formas de exploração, indignas do homem e da criação. Este país imenso e cheio de vida, este diafragma da África, atingido pela violência como se fosse um murro no estômago, parece há muito sem fôlego’. O Papa diria, depois, às vítimas da violência no Leste do País: ‘Trata-se de conflitos que obrigam milhões de pessoas a abandonar suas casas, provocam gravíssimas violações dos direitos humanos, desintegram o tecido socioeconómico, causam feridas difíceis de cicatrizar. São lutas nas quais se entrelaçam dinâmicas étnicas, territoriais e de grupo; conflitos que têm a ver com a posse da terra, a ausência ou debilidade das instituições, ódios nos quais se infiltra, em nome dum falso deus, a blasfémia da violência. Mas é, sobretudo, a guerra desencadeada por uma insaciável ganância de matérias-primas e de dinheiro, que alimenta uma economia de guerra que exige instabilidade e corrupção. Que escândalo, que hipocrisia: as pessoas são estupradas e assassinadas, enquanto os negócios que provocam violências e mortes continuam a prosperar!(…).
Gritou, por fim, o Papa: ‘Dirijo um sentido apelo a todas as pessoas, a todas as entidades, internas e externas, que movem os cordelinhos da guerra na República Democrática do Congo, saqueando-a, flagelando-a e desestabilizando-a. Enriqueceis-vos mediante a exploração ilegal dos bens deste país e o sacrifício cruento de vítimas inocentes. Escutai o grito do seu sangue (cf. Gn 4, 10), prestai ouvidos à voz de Deus, que vos chama à conversão, e à voz da vossa consciência: fazei silenciar as armas, acabai com a guerra. Basta! Basta de se enriquecer na pele dos mais frágeis, basta de se enriquecer com recursos e dinheiro manchados de sangue! (…). Somos todos irmãos, porque filhos do mesmo Pai: assim nos ensina a fé cristã, professada por grande parte da população. Então levante-se o olhar para o Céu e não se fique prisioneiro do medo: o mal que cada um sofreu precisa de ser convertido em bem para todos; o desalento que paralisa dê lugar a um renovado ardor, a uma luta indómita pela paz, a propósitos corajosos de fraternidade, à beleza de gritar juntos nunca mais… nunca mais violência, nunca mais rancor, nunca mais resignação!’ .
Regressemos a Angola e à Batalha do Huambo terminada há 30 anos: Fiquei mais um ano e meio nos escombros desta cidade sitiada. Foram tempos duríssimos que o povo não aceita repetir. Por isso, quando olho os desenvolvimentos que certas guerras estão a ter, só me posso assustar e apetece-me gritar como o fez João Paulo II no Huambo: ‘Nunca mais a guerra, paz a Angola, paz a Angola para sempre!’.