Tony Neves
Há alturas na vida em que as ideias que queremos partilhar já estão escritas. E, quantas vezes, de uma forma mais profunda e criativa. É o que se passa comigo nesta aproximar do grande momento que é a Quaresma, iniciada com o gesto simbólico da imposição das cinzas sobre a cabeça. D. José Tolentino Mendonça, padre, poeta e biblista, agora no Vaticano, escreveu um texto emblemático para a quaresma do ano passado que me inspira, pois apela para o fogo purificador que está presente naquelas cinzas que descem pela cabeça dos cristãos em início de tempo forte de conversão, oração e partilha solidária.
Com a devida vénia, faço alguns recortes:
‘A Quaresma coincide com o irromper da primavera, e a coincidência não é apenas de calendário, mas de fundo. Há um nítido apelo primaveril, o mesmo sopro tenro, um igual perfume disseminado nesta proposta quaresmal, que pode até (injustamente) passar por sisuda ou anódina, quando é o oposto disso. A Quaresma é um tempo simbólico. Constitui, em vista da Páscoa, um sobressalto vital’.
Mais adiante, D. Tolentino fala dos três grandes valores que se vivem especialmente na quaresma, sem os podermos abandonar durante o resto do ano. Começa pela Oração:
‘A oração é uma brecha que nasce da escuta. Pelo provisório faz passar o Eterno. Ao puramente histórico empresta uma vocação transcendente. Permite que o homem olhe não apenas para Deus, mas seja capaz de olhar-se a ele próprio com os olhos de Deus’.
Segue-se o jejum, esse valor tão mal entendido nos tempos que correm. Diz:
‘Vivemos triturados na digestão que o mundo faz de nós. Trazemos o Ser hipotecado ao Ter. Corremos de um lado para outro, reféns e instrumentos, mais do que autónomos e criativos. A privação, quando corresponde a um acto espiritual, amplia o campo da liberdade. Cria novas disponibilidades, possibilita o exercício do pensamento e do discernimento, melhora o sentido de humor…’.
Por fim, sem ser o menos importante, vem a partilha solidária com os mais necessitados:
‘Ao jejum está ligada a prática da esmola, que tem a sua modalidade mais autêntica na condivisão. Lê-se no profeta Isaías: “O jejum que Eu quero não será antes este: quebrar as cadeias injustas, desatar os laços de servidão…? Não será repartir o teu pão com o faminto, dar pousada aos pobres sem abrigo, levar roupa aos que não têm com que se vestir e não voltar as costas ao teu semelhante?”. O jejum abre o nosso coração aos outros. A esmola testemunha-o no compromisso por um mundo fraterno’.
O grande desafio da Quaresma é fazer com que esta cinza do início se transforme em luminoso lume a arder nos corações por ocasião da Páscoa da Ressurreição, como vão testemunhar os discípulos de Emaús.
Não tenhamos medo nem vergonha de inclinar a nossa cabeça na quarta feira de cinzas para arrancarmos em grande para uma Quaresma rumo à Páscoa.