Lisboa: Homilia de D. Rui Valério na celebração da Paixão do Senhor

Foto Diogo Paiva Brandão/Patriarcado de Lisboa

Envolvidos pelo silêncio que brota da Cruz do Calvário, de onde pende o Redentor do mundo, o nosso assombro iguala o de Elias, quando, no Monte Horeb, pressentiu a presença do Senhor no murmúrio da brisa suave e cobriu o seu rosto. Hoje, nós cobrimos a nossa mudez, não de eruditos discursos, mas com duas questões decisivas que a santidade do Crucificado nos sugere. E não nos questionamos sobre o porquê do sofrimento, ou da morte, mas somente lhe perguntamos: “que Deus, Tu, nos revelas? E, que ser humano nos propões?

 

I “Que Deus, Tu, nos revelas?”

  1. Ao contemplarmos o Gólgota, vislumbramos um Deus de compaixão, que assume totalmente a nossa condição, partilhando connosco tudo quanto nos define e configura, exceto o pecado, até mesmo os limites e constrangimentos com que a existência humana se confronta, como a experiência do sofrimento, da insuficiência, da vulnerabilidade e da morte.

O livro do Génesis diz-nos que, ao sermos criados, Deus imprimiu em nós a Sua imagem e semelhança, concedendo-nos os seus atributos: a Beleza, a Bondade e a Verdade. Os relatos da crucificação parecem, de certa maneira, inverter o que fora realizado no ato criador primordial. Já não é o ser humano a receber de Deus a sua assinatura inconfundível; é o próprio Deus a receber da condição humana tudo o que a define até ao limite impensável da mágoa, da dor, da morte e da solidão, que Lhe era estranho e contrário.

É maravilhoso constatar que, por amor, Deus se deixa tocar por aquilo que não havia criado e até Lhe era adverso – o sofrimento e a morte –; e mais, permite ser rejeitado, e até insultado, fustigado e condenado à mais ignominiosa de todas as mortes. É assim que Deus nos recebe e acolhe inteiramente, com toda a nossa miséria, com toda a nossa desgraça, com toda a nossa vulnerabilidade. Não há maior amor! Com razão dizia S. Bernardo de Claraval: “As chagas do corpo deixam ver o íntimo do coração”.

  1. O Crucificado revela-nos o rosto salvador de Deus. Cristo Crucificado salva-nos, restaurando a nossa relação com o Pai e escancarando a todos o caminho da vida eterna, porque só n’Ele se conjugou a força divina com a liberdade humana. Cristo realizou uma ação livre, de abertura, de abandono incondicional. E tudo aconteceu na morte de Cruz, num gesto de entrega, de amor, que transformou o desespero em coragem, a cobardia em abnegação, o tédio em inclinação amorosa. A Cruz é o lugar da nossa redenção e, por isso, da nossa recriação. Como dizem os Padres da Igreja, foi junto ao madeiro da árvore do Éden que surgiu a morte pelo pecado de Adão, agora, Aquele que pende do Madeiro da Cruz conquista-nos a salvação. A Cruz já não é lugar de pecado e morte, mas lugar de Vida.

  1. A humanidade vive no exílio de si mesma. Veio de Deus e para Deus foi criada; mas, na desobediência a Deus, partiu para uma terra distante e longínqua, afastada da sua pátria divina. Jesus veio até aos seus domínios para a resgatar da desventura em que se havia afundado, para a reconquistar e libertar, para a fazer regressar à terra sagrada da sua condição originária. A Cruz é, portanto, o êxodo que realiza esse regresso, é o caminho pelo deserto da vida, sem o qual não seria possível ver a própria libertação, a pátria onde corre leite e mel, onde ninguém será escravo ou servo, onde todo o ser humano se assume como filho amado de Deus e irmão dos demais. A cruz é também a ponte, através da qual Cristo vem até nós, ao mesmo tempo que mergulha na miserável situação do ser humano para nos resgatar e reconquistar para Si. Na cruz, revela-se este apego de Deus à humanidade, a cada um de nós, este amor indizível que se estende até à loucura de jamais desistir de nós, filhos pródigos, alienados e vendidos aos deuses do individualismo egoísta.

  1. “Como um cordeiro que é levado ao matadouro, maltratado e humilhado” (Is 53, 7) assim a Cruz revela-nos Deus Crucificado, que não nos olha com desdém ou desprezo, não nos aponta o dedo da culpa, nem nos condena. Não é vingativo, nem severo juiz. Ele ergue-se humildemente na Cruz, não sedento de vingança, mas só com sede de amar. Por isso, nada nos desarma tanto, como a Cruz! Desarma-nos das nossas autodefesas e purifica-nos dos impulsos de violência. Na sua presença, as lanças e as espadas do coração transformam-se, realmente, em foices de solidariedade e em arados de justiça. Emerge um Deus do silêncio, que não se lamenta, mas também não ordena que. do céu caia um fogo exterminador. Irrompe, sim, da luz do seu olhar, uma suplica, dirigida somente aos filhos que Ele, no Filho Unigénito Jesus Cristo, quer gerar em cada homem e mulher à face da terra; do seu sofrimento, brota uma súplica ao amor que Ele, pelo Espírito, quer derramar em todos os corações; do seu rosto de autenticidade, sem máscaras, nem fingimentos, emerge a voz da Verdade que quer libertar a humanidade; do seu corpo dilacerado, jorra o sangue da vida nova para ser esperança que salva.

Um Deus que não agride, nem ofende… pura gratuidade de amor, porque, mesmo que da humanidade, a quem se dá totalmente, só receba desdém e indiferença, não cessa de lhe oferecer a sua vida. E ainda que os homens e mulheres o abandonem, Ele jamais desiste de alguém, nem nunca deixa ninguém para trás.

II E agora: “Que ser humano nos propões?”

  1. O Crucificado revela-nos que o ser humano é chamado à salvação e que, na cruz de Cristo, foi definitivamente liberto da condição de vítima da força destruidora do mal. O projeto de ser humano que emerge das feridas laceradas de Jesus Cristo, das suas dolorosas chagas e do seu sofrimento, revela-o como um ser para a vida em plenitude. A sua condição é o novo atributo da humanidade que floresce da Cruz redentora de Cristo.

De facto, na sua paixão e morte, confluem a justiça de Deus e a sua mais dócil misericórdia, esbatendo-se todas as fronteiras que as separavam. O Pai permite que sobre o Filho, o justo inocente, recaia todo o peso da sua justiça. Jesus Cristo é o Cordeiro que toma sobre si os pecados do mundo, Aquele que, como diz São Paulo, se fez pecado e maldição por nós (2Cor 5, 21; Gal 3, 13), Aquele que, por nosso amor, aboliu os decretos da nossa condenação (Col 2, 14). Por isso, foi Ele, o Justo, que sofreu o dramático castigo que o nosso pecado provocou, obtendo, para nós, o perdão e a paz. Que paradoxo de amor! O homem cometeu o pecado que abriu as portas à morte e Cristo, no sacrifício amoroso da sua vida, conquistou-nos a vida eterna de filhos de Deus.

Tal como o Filho pródigo que, ao regressar à casa paterna, não foi punido pela sua deserção e por ter rompido com o pai, mas antes, recebeu o anel da dignidade real, foi revestido com o traje da dignidade filial e calçado com as sandálias da dignidade de pessoa, assim também a humanidade não sofreu castigo pelo mal que cometeu, tendo sido Cristo a resgatar-nos da morte, tornando-nos filhos amados do Pai, restituindo-nos à dignidade da comunhão e liberdade e vivificando-nos pela sua vida de amor. Que Mistério este? Em Cristo, unem-se a justiça e a misericórdia de Deus e, de maneira mais radical, unem-se n’Ele Deus e o homem.

Mas a cruz, para além da força solidária que revela e da capacidade luminosa de Cristo Crucificado decifrar o mistério do sofrimento humano, também se ergue com uma incomensurável força de vida e esperança. Cristo vence a morte com a dádiva da sua vida pela nossa salvação. Libertou o ser humano das amarras aterrorizadoras que o prendiam, por causa do pecado, resgatando-o do poder das trevas. Hoje, morrer é doar-se ao Pai e colocar-se nas suas santíssimas mãos. Morrer por amor é saborear o doce sabor da salvação.

  1. Em segundo lugar, o Crucificado revela-nos que, para o ser humano, só o caminho da dádiva de si, a opção de ser dom e sacrifício para os outros, como Ele, é a estrada da verdadeira vida, é o trajeto por meio do qual se pode alcançar a plenitude, como peregrinos que não viajam apenas por itinerários terrenos, à conquista de metas geográficas, mas por itinerários de santidade que, através da doação por amor, atravessam os próprios limites da temporalidade e alcançam a eternidade da vida de comunhão com Deus.

  1. Em terceiro lugar, Cristo crucificado revela-nos um ser humano envolvido na luz do Mistério. Não obstante o desejo de coroar o patíbulo da Cruz com as categorias do sucesso e do êxito, a verdade é que dele continua a ecoar o grito de morte e de abandono do Inocente. A carta aos Hebreus fala do sacrifício perfeito em que a vítima, o sacerdote e o altar coincidem, são o único Deus. A lógica sacrificial estende-se muito para além dos confins do entendimento humano, envolve totalmente a Deus e aflora o incompreensível. Como diz o Apóstolo “um Messias crucificado é escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1Cor 1, 23). O sacrifício perfeito é também o sacrifício perfeitamente incompreensível, que só o amor entende. De facto, as regras tradicionais hebraicas estabeleciam que a vítima fosse morta com o mínimo de sofrimento possível, mas Jesus Cristo padeceu a mais atroz e cruel das mortes.

A cruz de Cristo, envolta em mistério, revela-nos a total solidariedade de Deus com a condição humana votada à morte e, em simultâneo, revela-nos também que a morte não é a última palavra sobre a existência humana. Deus ama-nos e, cheio de compaixão, morre connosco para connosco ressuscitar para a sua plenitude.

Perante a Cruz, recebemos a verdadeira luz que nos permite olhar de frente para as sombras da existência, para ver na sua escuridão uma força germinal. Assim como, a semente, ao ser lançada, penetra nas trevas da terra, para fecundar muitos frutos, também a tua cruz é fonte de nova vida. Ámen!

Sé Patriarcal, 29 de março de 2024

Foto Diogo Paiva Brandão(Patriarcado de Lisboa

† RUI, Patriarca de Lisboa

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