Associação ajuda a combater a solidão dos mais velhos que vivem sozinhos, há sete anos. Marta Antunes, da direção, explica que o principal objetivo é conversar e fazer companhia
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia)
Está na direção dos ‘Amigos Improváveis’, onde começou por ser voluntária. Foi fácil deixar-se cativar por este projeto?
Sim, foi muito fácil. Eu conheci os Amigos Improváveis em 2019, andava à procura de voluntariado nesta área do envelhecimento e do combate ao isolamento e à solidão desta fatia da população, que é cada vez maior nesta cidade grande. As inscrições estavam abertas, tive uma formação para voluntários para saber como relacionar, como estar, fui integrada numa equipa com duas pessoas que não conhecia – a Mariana e a Inês-, mas que correu muito bem. Numa primeira visita fomos acompanhados pelo responsável de zona, porque cada freguesia tem responsáveis que cuidam e acompanham os voluntários que vão visitar os idosos. Tive o primeiro contacto com a Cilinha, uma menina de quase 90 anos, incrível, que nos recebeu de uma forma muito calorosa na sua casa, onde vive sozinha. E a partir daí correu tudo muito bem, muito descontraído, as conversas aconteceram de forma muito natural, como uma amizade.
E continua a acompanhá-la?
Sim, ainda mantenho contacto. A Cilinha fez anos agora, há dias. Eu já não estou a visitá-la semanalmente. Habitualmente as nossas visitas aconteciam todas as semanas, é o ritmo para se começar a ganhar uma relação. O facto de trabalharmos em equipa permite que, no caso de alguma não estar tão disponível, possa ir outra e haver aqui esta regularidade, complementada sempre com telefonemas. É mesmo como uma amizade, esta espontaneidade de uma relação que vai crescendo, vamos conhecendo a pessoa, vamos percebendo o que gosta. Chegámos a ir aos caracóis, numa tarde quente de verão, porque a Cilinha tinha imensas saudades de comer caracóis! Funciona mesmo como uma amizade, que junta duas gerações diferentes, os idosos e os jovens. Também podem ser famílias, não têm de ser necessariamente jovens universitários, e começa-se a criar aqui esta esta dinâmica.
Disse que procurou especificamente esta área de voluntariado. O que é que a cativou? Estamos também, de certa forma, a falar de uma pandemia silenciosa, que é a da solidão…
Completamente. O alerta começou a chegar quando houve uma fase em que nos noticiários se ouvia muito notícias de idosos que eram encontrados em casa já sem vida, e que ninguém tinha dado conta. Esta é a grande motivação da associação: queremos mesmo chegar onde mais ninguém chega, e temos parcerias com as juntas de freguesia, com as paróquias, muito para chegar mesmo… e às vezes a solidão está tão perto de nós. Às vezes há um vizinho no prédio ao lado do nosso que se calhar está a passar por esta situação. E também dar aqui uma missão…
Eu não sou de Lisboa, há muitos jovens que vêm estudar para Lisboa, e cada vez mais as cidades do litoral e a capital é procurada, porque não tentar também aproveitar isso para esta missão?
E criar até relações de vizinhança, porque no fundo o projeto também se baseia nisso, em criar relações de vizinhança?
Sim, e o objetivo de haver estas zonas de freguesias tão estruturadas é também para tentar ligar a área onde o voluntário passa a maior parte do tempo – seja por que vive, trabalha ou estuda naquela freguesia – com a zona onde vive o idoso, para o processo ser o mais facilitado possível. Porque às vezes temos um dia mau, difícil de trabalho, se calhar não nos apetecia ir para o outro lado da cidade para ir ter com o nosso idoso, por maior que seja o carinho e saber que depois de lá estar vai valer a pena. Tentamos descomplicar e aproximar também nesse sentido.
Do outro lado que feedback é que recebem, da parte de quem é acompanhado?
Da minha experiência com a Cilinha, é uma gratidão enorme, mas que é recíproca, porque acabamos por lidar com uma pessoa que tem um legado, tem histórias e memórias incríveis, e eu acho que é muito bonito e muito generoso aquela pessoa abrir-nos a porta da sua casa. É onde ela vive, onde está, é o espaço dela, e abre a porta e o coração a receber aquela equipa de voluntários, que estão ali para conversar, para combinar programas, para ouvir. Há uma sede muito grande de partilha da pessoa que está do outro lado, porque muitas vezes a companhia que tem é a televisão. No caso da Cilinha não tem família com quem possa fazer aquele telefonema que às vezes apetece fazer, vive muito do prédio, da rua, da paróquia, e acho que foi ali um balão de oxigénio, mas para ambas as partes, porque às vezes eu saía de casa da Cilinha e ia a pé até ao metro e pensava: ‘valeu tanto a pena! Ainda bem que vim!”. E espero que seja recíproco, naturalmente.
Já existem outras instituições que prestam apoio domiciliário quando é necessário e possível. O vosso objetivo é sobretudo fazer companhia, conversar? Também fazem pequenos recados?
Sim, o nosso principal foco são as visitas, é o estar, é o ouvir, é o acompanhar. E por sabermos que felizmente no nosso país há muitas entidades que depois, quando é preciso sinalizar, ou acompanhar, estão preparadas e equipadas para tal quando é necessário, temos sempre esse cuidado, e até na formação com os voluntários vamos dando essa indicação, para estarem atentos ao estado da casa, à própria evolução da pessoa nas conversas. Mas, o nosso foco é este: é estar com regularidade. Pedimos aos voluntários para terem um compromisso mínimo de um ano, porque estas pessoas nesta idade se calhar já perderam algumas pessoas, entrar uma pessoa nova, ganhar esta confiança, criar esta relação, tem de ser construída e ganhar profundidade. Pedimos sempre aos voluntários o compromisso mínimo de um ano, que tentem ir com regularidade e, se não puderem, que avisem. Como numa amizade normal.
As visitas são semanais?
Tentamos que sejam. Claro que se houver uma semana em que não se pode ir… Isso aconteceu connosco: uma de nós não podia ir, depois durante o fim-de-semana ia dar um beijinho à Cilinha, ou telefonava. Tentávamos que houvesse sempre um acompanhamento regular.
Esta entrevista é emitida no primeiro Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, instituído pelo Papa Francisco. Esta relação quer, de certa forma, replicar a relação mais tradicional de avós e netos, um espaço de familiaridade, carinho e partilha?
Pela parte dos afetos e do estar aberto, disponível para ouvir, para conhecer, sim. Agora com a pandemia, claro que teve de haver aqui uma pausa, mas eu digo muitas vezes: até com a nossa família, com os nossos amigos, com quantos, ou com quais é que nós estamos todas as semanas presencialmente? Portanto, acaba por se criar aqui um vínculo também muito do dia-a-dia: lembrar a consulta que ia ter, ou chegar depois de um dia que foi mais difícil e desabafar sobre alguma coisa.
Eu sinto que em determinadas alturas aquele núcleo de quatro pessoas, três voluntárias e a Cilinha, criávamos ali um momento que extrapolava, porque às vezes o contacto com a família é mais abrangente, e ali era muito específico. Eu sentia mesmo como uma amizade, vou ser sincera.
A identificação dos idosos que vão apoiar é feita, referiu há pouco, com a ajuda e colaboração das paróquias e juntas de freguesia. Estas entidades depois também vos acompanham no trabalho que fazem?
Sim. Também recebemos contactos individuais de pessoas, que têm uma mãe, uma avó ou avô que gostavam que tivesse esse tipo de acompanhamento, e nós também damos resposta. Depois vamos acompanhando, vamos fazendo pontos de situação com os parceiros.
Normalmente existem dois momentos do ano em que recebemos novos voluntários e novos idosos, corresponde mais ou menos aos semestres, em setembro/outubro e depois em fevereiro/março, e vai havendo esse acompanhamento com as parcerias.
Se for necessário dar alguma informação mais específica sobre algum idoso, essa ponte é feita com os nossos responsáveis de zona, com os voluntários. Se for preciso, até, numa primeira visita estará alguém presente da família, para não haver uma estranheza tão grande.
Antes do primeiro confinamento, o projeto contava com 149 voluntários ativos, que apoiavam 56 idosos em 11 bairros de Lisboa e Oeiras. A pandemia teve algum efeito no número de voluntários e na dinâmica do trabalho?
Sim, infelizmente teve. Fomos fazendo pontos de situação para garantir que, mesmo não estando presencialmente, houvesse um acompanhamento por telefone, o que também aconteceu. Por exemplo, no caso das Universidades, em que já não havia aulas presenciais, muitos jovens tiveram de regressar à sua cidade de origem. Essa alteração da rotina, da dinâmica diária, afetou, naturalmente, a Associação. Agora estamos num processo de arrumar a casa, perceber exatamente quem quer continuar, porque em setembro esperamos voltar a abrir inscrições, receber novas pessoas, reforçar equipas, com substituições, se for preciso. Tentámos ao máximo que não se sentisse uma quebra muito grande…
Os idosos continuaram a ser acompanhados?
Sim. Houve voluntários que passaram à janela, com o carro, para dizer “estou aqui, um beijinho!”…
Reforçaram os contactos telefónicos?
Sim. Foi o possível. Sempre tentando seguir as recomendações da DGS e no contacto com as famílias, para respeitar as suas indicações e ver até onde é que cada intervenção poderia ir.
Está há pouco tempo na direção dos ‘Amigos Improváveis’, e a ideia é relançar o projeto depois do verão. Quem quiser ser voluntário, o que é que tem de fazer?
É possível ser voluntário para visitar diretamente os idosos. Podem inscrever-se individualmente ou já ter uma equipa. Depois, em setembro, vamos disponibilizar no site e nas páginas da Associação nas redes sociais o formulário de inscrição. É feita uma entrevista, uma formação e juntam-se aos ‘Amigos Improváveis’.
Fazemos sempre a correspondência entre o número de idosos que precisam de acompanhamento e o número de vagas por freguesia, fazendo uma gestão real de expectativas. Tentamos que os timings correspondam e haja respostas.
Há uma informalidade no relacionamento, o que é natural, mas também há uma exigência de compromisso e de dedicação para quem entra nesta aventura?
Tem de ser. Tipicamente, a população mais idosa que vive em Lisboa, uma grande cidade, pode sentir-se um bocadinho mais desconfiada, com dificuldade em abrir-se. É importante que os idosos sintam que podem confiar naquelas pessoas, que podem abrir a porta de casa e alimentar uma relação, que depois vai ter continuidade. Que vai haver reciprocidade.
Muitos idosos também já perderam muitas pessoas, têm aqui uma barreira maior, defesas construídas. É muito importante que, quem diz que sim, esteja presente. Vai haver dias em que não apetece ir: está a chover, queremos ir para casa, estamos com fome, o dia correu mal no trabalho, há um exame da faculdade… É aqui que se testa o verdadeiro estar, e é por isso que também há um trabalho de equipa, para se motivarem uns aos outros, para o caso de assegurar que está alguém, quando um deles não pode, de todo. Isso é muito importante.
A expectativa é que o projeto cresça, no próximo ano? Mesmo em termos de área de atuação?
Sim. Idealmente, veríamos os ‘Amigos Improváveis’ em todo o país, a longo prazo, quem sabe…
Neste momento estamos a reforçar as áreas que precisam e já recebemos alguns contactos para novas zonas. Estamos a avaliar o potencial de crescimento, a correspondência entre idosos e jovens, para podermos, com cuidado e garantias, alargar e continuar a crescer.
E um idoso que sinta vontade de entrar neste projeto, o que deve fazer?
Temos um email – amigosimprovaveis.voluntariado@gmail.com – e um contacto telefónico – 916577656. Pode também perguntar na sua paróquia, na Junta de Freguesia, nos parceiros. É a forma mais imediata.
A iniciativa do Papa Francisco em criar este Dia Mundial dos Avós e dos Idosos pode ajudar a recentrar atenções nos mais velhos?
Espero que sim, é uma iniciativa louvável, que obriga as pessoas a refletir. Este contacto, estas visitas e a troca de experiências obrigam-nos a refletir. A refletir no nosso envelhecimento, numa vida que acabamos por conhecer e queremos tornar melhor. Espero que esta celebração ajude a criar essa reflexão e a vontade de fazer alguma coisa, de atuar.
Foi assim que os ‘Amigos Improváveis’ surgiram, num contexto de estudantes universitários, que estiveram uma semana em voluntariado na ‘Missão País’ e que pensaram: “uma semana não chega, queremos fazer mais”. A Maria Almeida e Brito, que foi aqui o cérebro da operação, teve esta ideia, juntou um conjunto de amigos e conhecidos em casa, em 2014, começaram a distribuir-se por zonas, e o puzzle montou-se. É possível e é importante. É muito importante.
Uma das grandes preocupações tem sido encontrar alternativas a uma resposta institucional, que se massificou na sociedade, procurando apoios para recriar um ambiente familiar. Os voluntários são essenciais, para esta resposta na comunidade?
Penso que sim. Toda a gente na minha comunidade, no meu trabalho, na minha família, os meus amigos, sabiam que eu estava a fazer este voluntariado, que estava a visitar a Cilinha, partilhava o entusiasmo, o sentir. Quem está apaixonado por este projeto vai divulgá-lo, vai querer partilhar, vai querer que o máximo de pessoas se junte a esta causa. Os voluntários acabam por ser os embaixadores e o rosto do projeto. Partilham, influenciam, trazem mais pessoas e é assim que tudo cresce, que tudo se transforma, que se inova. É com esta partilha e com esta generosidade de todos. Por isso, sem dúvida: voluntários, seja em que causa e dimensão for, são muito importantes.