“Liberdade religiosa, caminho para a paz” é o tema que sustenta a mensagem de Sua Santidade Bento XVI para o Dia Mundial da Paz, o dia com que o ano 2011 se anuncia.
1. Serenamente, mas com a firmeza de quem desde sempre se dedicou à reflexão, Sua Santidade conduz-nos numa viagem a lugares de difícil acesso, com um objectivo preciso: mostrar que a paz que ambicionamos como espaço de realização da nossa identidade pessoal, a paz por que, em comunidade, clamamos como espaço de concretização alargada da humanidade, é uma realidade que se constrói em liberdade, uma liberdade a assumir como valor que, por isso mesmo, se deve preservar.
Nessa viagem, em que a teologia, a política e o direito entram em diálogo estreito, a história do homem em comunidade vai adquirindo particular nitidez, fluindo e entretecendo-se na dignidade da pessoa, que ao longo dos séculos se foi culturalmente enriquecendo, ao mesmo tempo que procurando meios de se garantir.
2. Emergindo da dignidade da pessoa, a liberdade clarifica-se no reconhecimento do homem como ser espiritual capaz de se abrir ao transcendente, e assume-se fundamentalmente como liberdade de escolher Deus como princípio e fim de todas as coisas. Com efeito, no reconhecimento do homem como ser espiritual que não só se relaciona com os outros mas com o Outro que o transcende e, por essa via, sente o apelo a elevar-se e a permanentemente se ultrapassar, vai implícita a realização do homem e, logo, também, a própria construção da comunidade a que pertence.
Poder exercer essa escolha primeira de com Ele se “religar”, vinculando-se livremente a esse relacionamento, corres-ponde ao exercício da liberdade religiosa. E não admira que a liberdade religiosa seja compreendida, para o homem e, por seu intermédio, para a comunidade, a afirmação da capacidade de ambas plenamente se desenvolverem.
3. A partir daqui, dizer que a liberdade religiosa é um bem ou valor universal, enquanto dele participam todos os homens, tal como dizer que a liberdade religiosa é um bem ou valor público, enquanto sobre ele se edificam as diferentes comunidades humanas, já que estas se esforçam permanentemente por criar as condições para a maior realização dos seus membros, torna-se uma evidência. E uma evidência se torna também o reconhecimento da necessidade de conferir um especial estatuto de garantia à liberdade religiosa, já que esta liberdade é, na sua essência, a afirmação da própria dignidade humana, o fundamento primeiro das demais liberdades.
4. No processo histórico de assunção da garantia da liberdade perante o poder político através de documentos jurídicos constitutivos dos diferentes Estados modernos, tenham tais documentos a forma de constituições ou declarações de direitos, logo, compreensivelmente, a liberdade religiosa foi elevada a valor jurídico e político fundamental e, com isso, sujeita a estatuto especial no âmbito do Direito e do Estado.
Recordamos, exemplificativamente, o Bill of Rights da Virgínia (1776), que, no artigo 18º, consagra a liberdade religiosa, bem como o artigo 10º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e o 1º Aditamento à Constituição dos Estados Unidos da América (1791), ambos, embora em termos distintos, garantindo o exercício da liberdade religiosa.
Em Portugal, da 1ª Constituição portuguesa, de 1822, à actual Constituição de 1976, os diplomas fundamentais asseguram, de forma expressa, a liberdade religiosa, com relevo para a Constituição de 1976. Tudo porque a Constituição de 1976, ao utilizar o adjectivo “inviolável” em relação à liberdade religiosa -”A liberdade de … religião… é inviolável” -, deixa clara a caracterização essencial desta liberdade no quadro constitucional. E, como as Constituições Portuguesas, Constituições de inúmeros Estados garantem esta liberdade.
No plano das organizações internacionais, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada sob os auspícios da Organização das Nações Unidas (1948), também reconhece, no artigo 18º, a liberdade religiosa, e a mesma Organização das Nações Unidas reafirma-a em 1966, quer no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, no artigo 18º, quer no Pacto Internacional dos Direitos Econó-micos, Sociais e Culturais, no artigo 13º. O mesmo se diga, a nível europeu, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 9º) e da recente Carta Fundamental dos Direitos da União Europeia (artigo 10º).
6. Mas, ao eleger a liberdade religiosa como tema do Dia Mundial da Paz, Sua Santidade vai mais fundo e obriga-nos a refrescar nas origens a compreensão desta liberdade nos tempos turbulentos em que vivemos.
Nesse percurso às fontes, a liberdade religiosa ressurge transparente na relação fundamental entre o homem e Deus. Não se reconhece na existência de Deus ou de uma certa ideia de Deus. Reconhece-se mais profundamente numa capacidade de relacionamento do homem diferente da que desenvolve com os outros homens, um relacionamento superior, vital, com a Verdade, com o Absoluto.
Neste momento, a liberdade religiosa volve-se em valor que agrega e é susceptível de gerar laços entre todos os homens. A liberdade religiosa torna-se capaz de construir um “caminho para a paz”.
7. Por tudo, “Liberdade religiosa, caminho para a paz”, tema que sustenta a celebração de Sua Santidade Bento XVI do Dia Mundial para a Paz, é também tema que ilumina, tema que nos faz participar da esperança de um mundo melhor.
Maria da Glória F.P.D. Garcia
Professora Faculdade de Direito/UCP