A paz como liberdade pessoal

“O direito à liberdade religiosa está radicado na própria dignidade da pessoa humana, cuja natureza transcendente não deve ser ignorada ou negligenciada. Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 27). Por isso, toda a pessoa é titular do direito sagrado a uma vida íntegra, mesmo do ponto de vista espiritual”. Esta afirmação resume, sem dúvida, a mensagem de Bento XVI para o Dia Mundial da Paz de 2011. E concentra, em poucas palavras, a perspectiva bíblico-cristã sobre o assunto.

O facto de a própria Igreja ter, em determinados momentos da sua história, contradito esta afirmação, sobretudo com certas práticas menos respeitosas dessa liberdade, não impede que possamos afirmar ser esta a base da leitura evangélica sobre as opções religiosas dos humanos e sobre a sua importância nas respectivas existências. Nesse sentido, podemos dizer que estas afirmações inequívocas condensam o ponto de chegada de uma história, sem dúvida com muitas incertezas, mas marcada por um caminho que agora se torna claro e que já não pode recuar quanto a essa clareza.

Isso é evidente – e esta mensagem papal confirma-o à exaustão – para a prática eclesial, mesmo no contexto do anúncio missionário do Evangelho. Esse anúncio terá que acontecer sempre no estrito respeito pela liberdade das opções pessoais, sem recurso a qualquer tipo de coacção – nem sequer à coacção da manipulação retórica ou propagandística, hoje mais eficaz e, por isso, mais perigosa.

Mas esta posição afirma, também, que a importância da liberdade pessoal nesta matéria se aplica a todos os humanos, em todas as circunstâncias. Nesse sentido, também é absolutamente ilegítimo que cristãos sejam interditos de fazer a sua opção crente específica e de a acompanhar de práticas correspondentes. Ora é precisamente o facto de isso não ser ainda prática plena, na nossa actualidade e em todas as sociedades, que motivou o tema desta mensagem sobre a paz. Porque não haverá paz verdadeira sem o respeito por esta liberdade fundamental. E essa liberdade pode ser violada de dois modos fundamentais: um, através da proibição explícita de opções religiosas contrárias às dominantes socialmente (o que acontece em determinados contextos culturais, por todo o globo); outro, através de uma «expulsão» aberta ou subtil da dimensão religiosa de toda a vida pública das sociedades. Prefiro concentrar-me neste segundo aspecto, pois parece-me ser o mais desafiante e problemático, nas sociedades ditas ocidentais.

Sabemos que o denominado processo de «secularização», a que temos vindo a assistir no ocidente de há alguns séculos para cá, sendo ele próprio muito ambíguo, originou não poucas ambiguidades na forma como pretendemos desenhar a nossa vida social, dita «laica». Em realidade, de facto, muitos aspectos do processo secularizante não o foram, pois apenas pretenderam substituir certas opções religiosas (sobretudo as cristãs) por outras, com estatuto semelhante, isto é, com pretensões na prática igualmente religiosas, ou seja, relativas ao sentido primeiro e último de tudo. Talvez por esse motivo, o pretenso afastamento da dimensão religiosa do âmbito público tenha correspondido a uma luta de poderes entres opções diferentes, com afirmações de força por parte de algumas. Ora isso corresponde a tudo menos à construção de uma sociedade pacífica. Como tal, a erradicação do religioso da esfera pública pode ser interpretada como uma violência que não respeita, precisamente, as opções pessoais dos membros de uma sociedade. Ao mesmo tempo, contribui para a erradicação de uma dimensão da existência fundamental para a humanidade dos humanos, isto é, para a realização plena das suas existências em paz – a única paz verdadeira, porque justa e respeitadora da dignidade humana.

Bento XVI é, a este propósito, claríssimo: “Negar ou limitar arbitrariamente esta liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa humana; obscurecer a função pública da religião significa gerar uma sociedade injusta, porque esta seria desproporcionada à verdadeira natureza da pessoa; isto significa tornar impossível a afirmação de uma paz autêntica e duradoura para toda a família humana”. Ora, se a cultura ocidental recusa, hoje, outras formas de violência religiosa – ou anti-religiosa – não se conseguiu libertar ainda completamente desta forma mais subtil de violência. Porque, em realidade, fundamentou essa posição em falsas premissas: “A ilusão de encontrar no relativismo moral a chave para uma pacífica convivência é, na realidade, a origem da divisão e da negação da dignidade dos seres humanos”.

Por tudo isto, considero que este elemento da Mensagem coloque, a todos os ocidentais e também ao nosso país, o desafio fundamental: conseguir que a organização da nossa vida pública seja respeitadora de todas as opções religiosas – incluindo as que se afirmam não religiosas, mas correspondem a convicções fundamentais que deverão ser respeitadas – acolhendo essas opções como modos importantes de o ser humano realizar a sua verdade. Na organização dessa vida pública respeitadora e potenciadora das diversas opções religiosas, cabe uma tarefa especial à Igreja Católica, como vigilante e impulsionadora desse respeito, por todas as opções religiosas, desde que essas sejam também respeitadoras da liberdade fundamental e das condições de uma convivência pacífica. Essa tarefa especial advém à Igreja da sua própria missão de promover a paz no mundo, enquanto promoção da liberdade da pessoa humana; e advém à Igreja, em Portugal, pelo facto de ser o grupo religioso maioritário, por isso principal responsável por cuidar da liberdade religiosa de todos os outros.

Essa responsabilidade cabe, sem dúvida, também ao Estado. E não pode fazê-lo de modo simplesmente negativo, abstendo-se de qualquer intervenção. Terá que cuidar da convivência pacífica dos crentes das diversas tradições religiosas. E deverá velar para que as gerações futuras assumam esse compromisso pela paz, através da liberdade religiosa.

Ora, a preparação das gerações futuras só é possível pela educação. “Se a liberdade religiosa é caminho para a paz, a educação religiosa é estrada privilegiada para habilitar as novas gerações a reconhecerem no outro o seu próprio irmão e a sua própria irmã, com quem caminhar juntos e colaborar para que todos se sintam membros vivos de uma mesma família humana, da qual ninguém deve ser excluído”. Não me parece, por isso, que seja possível construir uma sociedade pacífica sem cuidar da educação religiosa, que potencia a escolha livre dos cidadãos, mesmo a escolha não religiosa. Não basta, pois, o combate à iliteracia tecnológica ou científica. Porque um dos piores inimigos da liberdade e do respeito é, precisamente, a ignorância, sobretudo a ignorância religiosa.

João Duque

Professor Faculdade de Teologia/UCP

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