Leis e Tribunais da Igreja dão-se a conhecer

JM — Como se explica que a Igreja precise de regras jurídicas para a sua missão? Pe. Marcos Gonçalves — Para perceber o Direito Canónico na Igreja é necessário colocar-se numa recta de eclesiologia e antropologia, isto é, para perceber a necessidade e a missão do direito canónico temos que entender o que é o homem e o que é a Igreja. O direito na Igreja só pode ser definido adequadamente quando é aprofundado o mistério da Igreja e o mistério do homem. Primeiro, há necessidade de perceber o mistério da Igreja. Já lá vão os tempos de Lutero e os tempos de uma eclesiologia dualista entre uma Igreja visível e uma invisível, entre uma Igreja do direito e uma Igreja da caridade. Tal visão dualista é um erro eclesiológico e na verdade as duas realidades, carismática/pneumática e institucional, estão inseparavelmente unidas. A constituição da Igreja é ao mesmo tempo pneumática e institucional: a Igreja é mistério de salvação, facto visível pela sua constituição de verdadeira sociedade humana e pela sua actividade na esfera exterior. A Igreja é ao mesmo tempo intrinsecamente espiritual e sobrenatural. A dimensão jurídica não se opõe à dimensão carismática da Igreja, pois esta como instituição visível precisa de normas que a apoiem na sua missão. Como consequência, os direitos e os deveres na Igreja têm uma natureza sobrenatural: se a Igreja é um desígnio divino, as suas instituições, que sempre poderão ser reformadas e aperfeiçoadas, têm que estabelecer-se com a finalidade de comunicar a graça divina e de favorecer, segundo os dons e a missão de cada um, o bem dos fiéis, objectivo essencial da Igreja. Podemos ver então que o direito não é só para ordenar uma sociedade de fiéis nas suas relações mas é um instrumento que vai mais longe e aponta para uma meta, o Reino de Deus. Segundo, há necessidade de uma antropologia teológica. De facto, a experiência jurídica forma parte do homem, do seu ser social. O homem quando entra na Igreja pelo baptismo, entra como um ser uno, com tudo aquilo que lhe pertence e entra, como tal, também com a sua dimensão social e jurídica e é assim que forma a Igreja, com todas as exigências intrínsecas à sua natureza, que pela graça, ficam plenamente realizadas nele. Onde está o homem aí está a sociedade e onde está a sociedade aí está o direito. O fenómeno do direito está na sociabilidade do homem enquanto homem e, como tal, a actividade jurídica tem de ser considerada como uma realidade ontológica, isto é, inerente ao homem enquanto homem. É este homem que entra na Igreja, pela porta do Baptismo que entra juntamente com todas as suas exigências intrínsecas à sua natureza. JM — Que objectivos visam as regras do Código de Direito Canónico, quando comparados com a legislação civil? PE. MG — O Código de Direito Canónico contém o direito na Igreja, como o código civil contém o direito de uma nação. Diz-se “direito canónico” uma vez que é composto pelos “cânones”, equivalente aos “artigos” de um código qualquer do Estado. Um Código de direito canónico não é apenas um conjunto de normas criadas pela vontade do legislador. É, antes de mais, indicador de deveres e direitos próprios na pessoa do fiel ou então na estrutura da Igreja instituídos pelo próprio Cristo. Isto é, o direito na Igreja aponta para além de um compromisso das partes ou de uma maioria, o direito eclesial funda-se seja no direito divino natural, seja em grande parte no direito divino revelado e como tal o canonista não deve apenas aplicar um método das ciências jurídicas mas deve aplicar também o método teológico. O problema do direito eclesial toca imediatamente a fé, porque toca a natureza do homem criado por Deus e redimido em Cristo e a natureza da Igreja. A lei eclesiástica é por isso um produto da razão humana iluminada pela fé e tocada pela caridade por obra do Espírito Santo. O Código de Direito Canónico como obra humana é sempre algo que pode sofrer reformas e por isso um dos objectivos deste aniversário da sua promulgação é o levantamento de alguns pontos que necessitam de uma reforma e actualização. A função própria do direito eclesial é fazer que os fiéis superem o seu próprio individualismo e que todos vivam a sua vocação e missão ao mesmo tempo pessoal e comunitária. O fim do direito na Igreja é duplo: tutelar a comunhão eclesial e proteger os direitos de cada um dos fiéis, sendo que a suprema lei da Igreja é a salvação das almas (c.1752). O Papa João Paulo II, há vinte e cinco anos, na Constituição Apostólica que promulgou o Código afirmou: “O Código, como principal documento legislativo da Igreja, baseado na herança jurídica e legislativa da Revelação e da Tradição, deve considerar-se o instrumento indispensável para assegurar a ordem tanto na vida individual e social, como na própria actividade da Igreja”; “A sua finalidade é, antes, criar na sociedade eclesial uma ordem que, dando a primazia ao amor, à graça e aos carismas, facilite ao mesmo tempo o seu desenvolvimento orgânico na vida, seja da sociedade eclesial, seja de cada um dos seus membros”; e ainda que a Igreja “constituída também como corpo social e visível, precisa de normas: para que se torne visível a sua estrutura hierárquica e orgânica; para que se organize devidamente o exercício das funções que lhe foram divinamente confiadas, principalmente as do poder sagrado e da administração dos sacramentos; para que se componham, segundo a justiça inspirada na caridade, as relações mútuas entre os fiéis, definindo-se e garantindo-se os direitos de cada um; e finalmente, para que as iniciativas comuns empreendidas em prol de uma vida cristã mais perfeita, sejam apoiadas, protegidas e promovidas pelas leis canónicas”, trata-se de um “instrumento eficaz, do qual se possa valer a Igreja, a fim de aperfeiçoar-se segundo o espírito do Vaticano II e tornar-se sempre mais apta para exercer, neste mundo a sua missão salvífica”. JM — Qual a função do tribunal eclesiástico? Neste momento, que processos ocupam mais o tribunal do Funchal? Pe. MG — O Tribunal Eclesiástico do Funchal tem a função de ajudar o Senhor Bispo a administrar a justiça na verdade, ajudá-lo no seu poder legislativo, vigiar pela correcta aplicação da lei e sua interpretação e prestar um apoio jurídico. A maior actividade do Tribunal é sem dúvida os casos matrimoniais. Casos de nulidade matrimonial, casos de matrimónio raro e não consumado e casos de matrimónio dissolvido em Favor da Fé e ajuda na instrução de processos de outros Tribunais. Para além dos casos matrimoniais o Tribunal do Funchal é competente em matéria do direito penal e da instrução da dispensa do celibato sacerdotal. Há ainda duas causas de beatificação e canonização a serem instruídas neste momento: a causa da Serva de Deus Madre Virgínia da Paixão e da Serva de Deus Irmã Maria do Monte. Cada vez mais o Tribunal Eclesiástico do Funchal é procurado. Ao longo de 2007 entraram 10 causas de nulidade matrimonial, aumentado assim o número de causas introduzidas quer em 2005 e 2006. O Tribunal em primeira instância declarou 6 matrimónios nulos e 1 em favor do vínculo. Estão pendentes 12 causas matrimoniais que estão ainda na fase da instrução. Dois matrimónios foram dissolvidos em Favor da Fé e por não terem sido consumados. Trata-se sempre de um trabalho muito delicado na procura da verdade e na cooperação das partes, das testemunhas, da perícia do psicólogo, dos Notários, do Defensor do Vínculo e dos Juiz que dará a sentença.

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top