Leigos na Igreja e no mundo – relendo a «Christifideles Laici»

(Intervenção de D. Manuel Clemente na comemoração dos 75 anos da Acção Católica Portuguesa)

 

1. Comecemos por um trecho da exortação apostólica pós-sinodal Christifideles Laici, que quase resume tudo quanto direi de seguida:

 

“Em virtude da comum dignidade baptismal, o fiel leigo é corresponsável, juntamente com os ministros ordenados e com os religiosos e as religiosas, da missão da Igreja. Mas a comum dignidade baptismal assume no fiel leigo uma modalidade que o distingue, sem todavia o separar, do presbítero, do religioso e da religiosa. O Concílio Vaticano II apontou a índole secular como sendo essa modalidade. ‘A índole secular é própria e peculiar dos leigos’ (LG, 31)” (Christifideles Laici, 30 de Dezembro de 1988, nº 15).

 

Corresponsáveis na missão da Igreja, segundo a índole secular que lhes é específica, assim se distinguem os leigos do Vaticano II, da Christifideles Laici e do século XXI. Assim os vamos considerar agora, na justíssima comemoração dos 75 anos da Acção Católica Portuguesa.

A corresponsabilidade, mesmo etimologicamente, insere-os na “resposta” que a Igreja é em relação a Deus e em relação ao mundo. No Espírito de Cristo, a Igreja dá ao Pai a única resposta que Ele espera, em perfeito retorno, de adoração e louvor. No Espírito de Cristo, a Igreja responde ao mundo concretizando o Evangelho e alargando o Reino, para que a retribuição ao Pai seja universal e tudo realize como criação ultimada. Em Cristo nos descobrimos filhos de Deus, em Cristo somos enviados ao mundo para a filiação universal e, por isso, fraterna. Finalmente filhos, finalmente fraternos e universais.

Aos leigos, directamente inseridos nas realidades temporais, cabe especificamente a impregnação da sociedade, da política, do trabalho e da cultura desta primeira e última significação das coisas, que se ganha em Cristo. E a secularidade que vivem, no respeito activo pela consistência da criação – ou seja da dimensão espácio-temporal do mundo – leva-os a respeitar e a melhorar todo o modo de fazer sem nunca perderem a absoluta dimensão do ser, como da finalidade das coisas.

Nos seus trabalhos de Nazaré Jesus não era menos Verbo de Deus incarnado do que nos três anos de pregação que se seguiram, antes exemplificava na prática local e laboral – também “religiosa” na celebração sabática a que não faltava – o que seja a consagração do mundo. Poderemos dizer que não era melhor carpinteiro por ser mais religioso, mas que a sua religião o levava a ser competentíssimo, quer no trabalho que executava quer no modo como o oferecia a Deus e aos outros. E tudo isto era já Evangelho, Boa Nova sobre o significado das coisas de todos os dias, quando se eternizam pela intenção.

Desde o anúncio do Reino, pelos trinta anos na sinagoga de Nazaré, Jesus dedica-se inteiramente à pregação e à realização sacramental dum “sacerdócio” de palavras e gestos que encontra na Ceia e na Cruz a sua expressão cabal, para a salvação do mundo. E a “imitação de Cristo” leva os cristãos a viverem particularmente, segundo a própria graça, esta ou aquela dimensão duma vida segundo o Espírito, que só no conjunto manifesta tudo o que em Cristo foi inteiramente oferecido.

Esclarece-nos o Concílio num passo maior: “Mas os dons do Espírito são diversos: enquanto chama uns a dar um testemunho manifesto do desejo da morada celeste e a mantê-lo vivo na família humana, chama outros a dedicar-se ao serviço terreno dos homens, preparando, com esta sua actividade, a matéria do reino dos céus. A todos, porém, liberta para que, renunciando ao amor próprio e reunindo todas as energias terrestres em favor da vida humana, eles se lancem para as realidades futuras, em que a própria humanidade se tornará uma oferenda agradável a Deus” (Gaudium et Spes, nº 38).

  

2. Na sua variedade carismática e ministerial, tão grande como a unidade complexa do Corpo de Cristo que também é, a Igreja vive uma comunhão que tem em Deus uno e trino a sua fonte e o seu fim. Foi precisamente em torno da comunhão que o Concílio Vaticano II assentou a sua eclesiologia, como a Christifideles Laici quis lembrar:

 

“Esta é a ideia central que a Igreja deu de si no Concílio Vaticano II, como no-la recorda o Sínodo extraordinário de 1985, celebrado a vinte anos do acontecimento conciliar: ‘A eclesiologia da comunhão é a ideia central e fundamental nos documentos do Concílio’. [….] Logo a seguir ao Concílio, Paulo VI assim se dirigia aos fiéis: ‘A Igreja é uma comunhão. Que significa neste caso comunhão? Vamos ao parágrafo do catecismo que fala da sanctorum communionem, a comunhão dos santos. E comunhão dos santos quer dizer uma dupla participação vital: a incorporação dos cristãos na vida de Cristo e a circulação dessa mesma caridade em todo o tecido dos fiéis, neste mundo e no outro. União a Cristo e em Cristo; e união entre os cristãos, na Igreja” (CL, nº 19).

 

A Igreja e nela o laicado têm muito para fazer, mas têm sobretudo de ser. E para serem exactamente uma convivência, não apenas de vizinhança, mas de autêntica circulação de vida e de graças, sendo estas de todos para todos segundo cada um.

Em qualquer momento, é de acolher e transmitir comunhão que se trata, logicamente antes de qualquer vantagem funcional ou “prática”. É também neste sentido que se poderá adiantar que o mais importante de cada reunião – e temos tantas! – é a própria reunião, como experiência de oração, partilha e projecção conjunta dessa mesma comunhão. Valendo aqui repetir as palavras paradigmáticas com que abre a 1ª Carta de João: “O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, […] isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com o seu Filho, Jesus Cristo. Escrevemo-vos isto para que a nossa alegria seja completa” (1 Jo 1, 1-4).

Assim sendo, cada presença laical será um convite vivo para a comunhão completa, partilhando da insistência com que Cristo nos convida para o Reino. Sendo o Reino a realização da comunhão, cada cristão terá de demonstrar esteja onde estiver, por palavras e obras, que viver é conviver, no sentido mais preenchido do verbo.   

 

3. Começando imediatamente pela comunidade cristã de todos e cada um, como experiência básica e activa de mútua atenção e mútuo estímulo.

Ultrapassados devem ser os tempos em que a comunidade cristã era protagonizada por este ou aquele clérigo, somente ou quase. Herdeira duma acepção preponderantemente “sacral” da eclesiologia teórica e prática, a massa dos fiéis ficava-se pela assistência a actos de culto realizados por “sacerdotes”, ajudados que fossem por alguns sacristães e poucos mais.

Na nossa Igreja portuguesa – ou em parte crescente dela – tal já não é possível; e também não é desejável, mais devedor que é à religiosidade ancestral do que à comunhão evangélica e missionária propriamente dita. – Dura e positiva circunstância esta que nos obrigará a todos – padres e leigos – a redescobrir a Igreja, o mundo e a relação Igreja – mundo como se intui das fontes neo-testamentárias e patrísticas.

  A Acção Católica foi, efectivamente, um grande campo de ensaios desta eclesiologia renovada. Com ela vimos leigos a tomarem parte inteira nos diversos sectores apostólicos, na paróquia e para além dela. Da Missa à fábrica, aos campos, à escola, à Universidade, vimo-los, os militantes da Acção Católica, no conjunto das suas cinco vogais, profundamente comprometidos na missão, para a qual tinham até um reforçado “mandato” hierárquico.  

Naturalmente, cresciam também em participação interna, paróquia a paróquia. Atitude nova que o Concílio reconheceu, o novo Código de Direito Canónico previu e a Christifideles Laici também enunciou, nos seguintes termos:

 

“… os pastores devem reconhecer e promover os ofícios e as funções dos fiéis leigos, que têm o seu fundamento sacramental no Baptismo e na Confirmação, bem como, para muitos deles, no Matrimónio. […] O Código de Direito Canónico escreve: ‘Onde as necessidades da Igreja o aconselharem, por falta de ministros, os leigos […] podem suprir alguns ofícios, como os de exercer o ministério da palavra, presidir às orações litúrgicas, conferir o baptismo e distribuir a Sagrada Comunhão, segundo as prescrições do direito (cân. 230, § 3)” (CL, nº 23).

 

Mas o certo é que esta participação interna – hoje tão requerida em muitas dioceses, dada a falta de padres – não pode diminuir nem a índole secular nem a premência apostólica do laicado. Muito pelo contrário, deve reforçar através deles, mesmo nas funções internas que desempenhem, a natureza missionária que a Igreja não pode perder, antes tem de acrescentar, para se realizar como comunhão atractiva e expansiva que verdadeiramente há-de ser. Dizendo com a Christifideles Laici:

 

“Habituem-se os leigos a trabalhar na Paróquia intimamente unidos aos seus sacerdotes, a trazer para a comunidade eclesial os próprios problemas e os do mundo e as questões que dizem respeito à salvação dos homens, para que todos se examinem e resolvam com o concurso de todos. […] Nas actuais circunstâncias, os fiéis leigos podem e devem fazer muitíssimo para o crescimento de uma autêntica comunhão eclesial no seio das suas paróquias e para o despertar do impulso missionário em ordem aos não crentes e mesmo aos crentes que tenham abandonado ou arrefecido a prática da vida cristã” (CL, nº 27).

 

4. Dos anos sessenta para cá desenvolveram-se muito na Igreja variadíssimos movimentos e associações laicais. Mais ligados uns a espiritualidade específicas, mais ligados outros a actuações neste ou naquele sector, todos formam hoje uma densa constelação religiosa.

Coincide isto mesmo com alguns aspectos da sensibilidade pós-moderna, no que ela tem de menos sistemático e ordenado, tão diferente do que sucedeu na primeira metade do século XX com a organização geral do apostolado, típica da Acção Católica da altura.

Sabemos como esta diversificação causou perplexidade nalguns e hesitações noutros. Como sabemos que foram muito próprios de João Paulo II o reconhecimento e o aproveitamento desses “movimentos” para a “nova evangelização” em que insistia.

Mas era preciso acertar critérios de discernimento desta realidade emergente. Assim aconteceu também no Sínodo dos Bispos de 1987, que está na base da Christifideles Laici. E uma das contribuições mais decisivas desta exortação apostólica é exactamente o critério que nos oferece sobre esta realidade tão relevante para a Igreja e o apostolado. Podemos ler no seu precioso nº 30:

    

“É sempre na perspectiva da comunhão e da missão da Igreja e não, portanto, em contraste com a liberdade associativa, que se compreende a necessidade de claros e precisos critérios de discernimento e de reconhecimento das associações laicais, também chamados ‘critérios de eclesialidade’. […] – O primado dado à vocação cristã à santidade […]. – A responsabilidade em professar a fé católica […]. – O testemunho de uma comunhão sólida e convicta [com o Papa, o Bispo e as outras formas de apostolado] […]. – A conformidade e a participação na finalidade apostólica da Igreja […]. O empenho de uma presença na sociedade humana” (CL, nº 30).

 

Podemos ler e podemos rever-nos duas décadas depois à sua luz. E logo na primeira asserção, ao adiantar que é na perspectiva da comunhão e da missão da Igreja e não em contraste com a liberdade associativa que tais critérios se estabelecem. Na verdade é um ganho da eclesiologia conciliar e do Direito Canónico posterior o maior reconhecimento da legitimidade associativa dos fiéis para juntos levarem por diante iniciativas várias de piedade e acção.

Não é para contrariar tal liberdade que a Christifideles Laici elencou estes itens. Trata-se, isso sim, de reconhecer e reforçar em tais iniciativas o seu inteiro cariz eclesial, alertando-as e estimulando-as nesse sentido, sem o qual, menos do que particulares, ficariam “privativas” ou subjectivas. “Falariam” por si, valendo o que valessem, mas não poderiam ser reconhecidas como expressão eclesial propriamente dita, que se joga sempre totalmente nas várias concretizações que tenha.  

E os critérios são traduzíveis na vocação à santidade, como principal escopo de qualquer associação de fiéis leigos; na profissão da fé católica, passando da mera designação à substância, comunicando a verdade sobre Cristo, a Igreja e o homem em consonância com o magistério eclesial; na comunhão efectiva com a hierarquia apostólica, que garante a continuidade da fé e da actuação dos fiéis; na efectivação do apostolado eclesial, evangelizando, santificando e formando, para assim atingir as comunidades e os ambientes; e na presença activa na sociedade para aí promover a dignidade integral da cada pessoa.   

 

5. E é na sequência disto que a exortação apostólica se refere directamente à Acção Católica, nos seguintes termos:  

 

“Entre as várias formas de apostolado dos leigos, que têm uma particular relação com a Hierarquia, os Padres sinodais expressamente mencionaram vários movimentos e associações da Acção Católica, onde os leigos se associam livremente de forma orgânica e estável, sob o impulso do Espírito Santo, na comunhão com o Bispo e com os sacerdotes, de forma a poderem servir, no estilo próprio da sua vocação, com um método particular, o crescimento de toda a comunidade cristã, os projectos pastorais e a animação evangélica de todos os sectores da vida, com fidelidade e operosidade” (CL, nº 31).

 

Aí temos os elementos que ainda hoje caracterizam a Acção Católica: associação laical orgânica e estável; comunhão hierárquica; estilo próprio e método particular, certamente o tão apurado “ver, julgar e agir” em cada “meio” específico; resultados positivos no crescimento da comunidade cristã e na evangelização do mundo.

Importante é esta passagem verificar que o empenhamento apostólico dos militantes da Acção Católica, dirigindo-se especificamente a cada meio social, é também causa de crescimento da própria comunidade cristã a que pertencem. É uma lei evangélica por excelência, a de que – muito mais do que voltada para si mesma – a Igreja cresce na medida em que se volta para o mundo, como fermento, sal e luz. Só comunidades apostólicas crescem em identidade, consistência e caridade. Neste sentido podemos dizer que os 75 anos da Acção Católica Portuguesa beneficiaram o país mas não beneficiaram menos a Igreja, tornando-a, por assim dizer, mais “católica e apostólica”, mais católica porque apostólica.

Nisto mesmo nos reforça a exortação apostólica, ao definir a nova evangelização como um movimento renovado de missão, que tem na comunidade o seu sujeito e o seu objecto. Da comunidade que há para a melhor comunidade que há-de haver, mediante o dinamismo apostólico que mantenha. Não podia ser mais esclarecedor o passo seguinte: 

 

“Esta nova evangelização, dirigida não apenas aos indivíduos mas a inteiras faixas de população, nas suas diversas situações, ambientes e culturas, tem por fim formar comunidades eclesiais maduras, onde a fé desabroche e realize todo o seu significado originário de adesão á pessoa de Cristo e de comunhão sacramental com Ele, de existência vivida na caridade e no serviço. Os fiéis leigos têm a sua parte a desempenhar na formação de tais comunidades eclesiais, não só com uma participação activa e responsável na vida comunitária, e, portanto, com o seu insubstituível testemunho, mas também com o entusiasmo e com a acção missionária dirigida a quantos não crêem ainda ou já não vivem a fé recebida no baptismo” (CL, nº 34).

 

Assim estamos já e, muito especialmente, onde se mantenha acesa a chama da Acção Católica. E nem precisa de ser multitudinária, porque a lógica do Evangelho vai sempre do pouco para o muito, sendo aquele consistente e persistente. Temos hoje muito para comemorar e também muito para agradecer, porque a Acção Católica, assim como ofereceu ao Concílio a experiência e o método que tinha acumulado já, também nos oferece agora, rumo à nova evangelização, o mesmo modo de fazer e o mesmo ânimo de persistir.

Mas sendo a Acção Católica, antes de mais, uma agregação e um modo de intervir em cada meio sócio-cultural, terá de ser tão atenta no ver como sábia no julgar. E, para julgar ou ajuizar correctamente das realidades e circunstâncias envolventes, terá de insistir muito nos critérios devidos, evangélicos sempre.

Foi desta preocupação com o meio que nasceu a Doutrina Social da Igreja, a pouco e pouco sistematizada, desde Leão XIII sobretudo. E é muito referida hoje em dia a necessidade de boas formações nessa doutrina, para mais consistentemente intervir nos meios.

É a última alusão que faço, projectando no presente para o futuro esta proposição da Christifideles Laici, tornada urgência absoluta nas actuais circunstâncias:

  

“A formação doutrinal dos fiéis leigos mostra-se hoje cada vez mais urgente, não só pelo natural dinamismo de aprofundar a sua fé, mas também pela exigência de ‘racionalizar a esperança’que está dentro deles, perante o mundo e os seus problemas graves e complexos. […] Em particular, sobretudo para os fiéis leigos, de várias formas empenhados no campo social e político, é absolutamente indispensável uma consciência mais exacta da doutrina social da Igreja” (CL, nº 60).   

 

Consciência e ciência, sensibilidade a competência. Assim quer a Acção Católica enfrentar o mundo e as variadas problemáticas que o compõem e nos interpelam. Creio firmemente que a Acção Católica Portuguesa tem na sua gloriosa experiência passada a melhor garantia da igual conveniência futura.

 

Porto, Colégio dos Órfãos, 8 de Novembro de 2009

D. Manuel Clemente, Bispo do Porto

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