Lamego: O Natal do capitão…

Chamavam-lhe “o capitão”.

Em miúdo fora aos Remédios, a Lamego, viu os tropas a marchar numa rua da cidade sob o comando de um chefe que marcava o ritmo com uma voz irresistível de trovão e, regressado à aldeia, fazia de vez em quando umas marchas individuais por calçadas e caminhos, dando ordens a si próprio:

– Um, dois, um, dois…esquerdo, direito…um, dois!

Casara e tivera filhos.

Mas um dia, a mulher foi ao Douro, às vindimas, e não voltou mais à caserna… O caseiro da quinta pôs os seus olhos nos nela, arranjaram-se os dois… e o homem ficou sem alguém que lhe acendesse a candeia, lhe aquecesse o caldo, lhe remendasse as calças, lhe pregasse os botões e lhe aquecesse os pés.

Para desgraça maior, os dois filhos evaporaram-se para o Brasil e nunca mais disseram nada.

Atolado na solidão e na dor, substituiu a mulher por vinho, os filhos por tabaco e o trabalho pela pedincha.

Corria as aldeias em dias certos, batia com o bordão nas portas, estendia a mão a quem abria, e continuava o giro, comendo côdeas, trincando mágoas e chupando cigarros. Morto o brilho do sol e nascida a negrura da noite, enrolava-se na manta que trazia consigo e dormia num alpendre de carro ou num palheiro de feno…onde lhe era permitido.

Estava-se em dezembro. O Natal estava perto.

Na lixeira de uma aldeia, misturados com agulhas de pinheiro e ramos de azevinho, dormiam numa saquinha de amostras os três personagens da Bíblia por quem nos veio a salvação. Desbotados e feridos, a zeladora da capela substituiu-os por outros, mais novos e mais simpáticos. O capitão abriu a saca, sorriu e resmungou:

– Afinal, não sou só eu, o pecador! A vós, que sois tão bons segundo dizem, aconteceu-vos o mesmo! Tende paciência, amigos! A vida é assim! Tudo nos pode acontecer!

Companheiros de amarguras e maus-tratos, o capitão nunca mais os largou de mão.

Chegado o 24 de dezembro, acomodado o sol no seu descanso e espreitando a lua por entre os chavascais, o velho resguardou-se no alpendre da capela do Senhor dos Desamparados, pousou no chão o saco das esmolas, procurou palha numa meda de quintal, acendeu uma aprazível fogueira, sentou-se num rodelo de carvalho, e trincou mais um naco de broa e um pedaço de toucinho.

Ouvindo, entretanto, as horas da matriz, e lembrando-se que era a noite de Natal, tirou as imagens da saqueta, deitou o Menino na sua boina espanhola e pôs os pais, de joelhos, um de cada lado.

Ajoelhado também ele (com o joelho direito, que o esquerdo já há muito lhe não fazia a vontade), olhou o pequeno com enlevo de pobre, desgosto de vadio e ternura de criança, e disse, numa voz pastosa e rouca:

– Então, catraio, diz que fazes anos hoje?! Parabéns, pá! Bem merecias uma prenda, mas este pobre vagabundo não tem nada p’ra te dar. Só um beijo!

E beijou-O, erguendo-O da boina e envolvendo-O entre as mãos.

À volta da pequena e rude ermida, a neve caía no solo lenta e fria, e o vento assobiava intermitente e incómodo nos beirais enregelados do telhado. O velho, sem nada nem ninguém, embrulhou-se na capa velha e rota que o pai trouxera de França quando andou na Grande Guerra, e adormeceu.

Por gratidão e favor do Recém-nascido, certamente, foi-lhe dado ter um sonho que o embeveceu por toda a noite: lá no Alto, acima do firmamento, muito acima das estrelas, junto a um trono dourado ornado de brancas açucenas e iluminado de coloridas lamparinas que tremeluziam alegres, havia louvor e festa, alegria e paz, cantares de anjos e adoração de beatos e de santos. Cá em baixo, numa terra de beleza e de sonho, as pessoas amavam-se, beijavam-se e abraçavam-se todas, e as crianças, felizes, recebiam prendas e jogavam ao par e ao pernão! Numa casa parecida com aquela onde lhe nasceram os filhos, a sua antiga mulher preparava as rabanadas e cozia o arroz-doce, cantarolando loas natalícias, umas atrás das outras, e os seus netinhos, regressados do Brasil, subiam-lhe para os joelhos, davam-lhe muitos beijos e puxavam-lhe as barbas brancas.

Assombrado com tanta beleza e tamanha felicidade, o velho capitão irrompeu então num cântico assombroso e belo, que só o uivar dos lobos conseguiu finalmente exterminar:

– Glória a Deus nas Alturas! E Paz aos Homens na Terra!

J. Correia Duarte

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