Sobrevivemos de tempos muito desiguais. Desiguais os deuses e os homens, desiguais os soberanos e os súbditos, desiguais os homens e as mulheres, desiguais os senhores e os escravos, desiguais os brancos e os negros, desiguais os povos e os grupos… Nem se tratava de questionar tais desigualdades, mas, na melhor das hipóteses, de morigerá-las por motivações religiosas, filantrópicas ou sócio-económicas. De tudo temos exemplos e alguns muito relevantes.
Com essa desigualdade estrutural ligava-se a grande estabilidade social, do tipo “sempre foi assim”, como ainda se ouve resquicialmente. A pouco e pouco, mais na Europa do que noutras partes do mundo, verificou-se uma outra mobilidade de pessoas e “percursos”, do comércio à cultura. Menos fixa em castelos ou glebas, uma população nova foi-se afirmando nas cidades modernas, onde a variedade de mercadorias e notícias acelerou as iniciativas e modificou as atitudes, reivindicando e alcançando a possibilidade de ser assim.
Foi nesta “modernidade” que apareceram as nossas democracias, que depois exportámos tanto quanto, mundo além. Tanto quanto, porque dificilmente se implantam onde não existem as condições sócio-culturais que as originaram.
Fosse como fosse, das revoluções setecentistas à Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948), prosseguiu-se num caminho geral que, ao menos na teoria, é certamente um ganho. Para os católicos, mormente desde João XXIII e o Concílio Vaticano II, é também um compromisso reforçado.
Tanto mais que o próprio Cristianismo deu um contributo decisivo nesse sentido. Basicamente e culminando a tradição bíblica anterior, o contributo é a pessoa de Jesus Cristo, no que nos revelou sobre Deus e sobre o homem. Como sabemos, quer no círculo mais próximo de Jesus, quer nas comunidades que brotaram da sua Páscoa, o Evangelho incarnou igualmente em homens e mulheres, nobres e plebeus, gente daqui ou dali. Tudo fundado no ensinamento central sobre um “Pai” que a todos nos cria e nos espera, pelo caminho da filiação divina que o mesmo Cristo nos abriu e possibilita pelo Espírito comunicado. Como na sua despedida – convite: “Subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu Deus, que é vosso Deus” (Jo 20, 17).
Em relação a esse fim comum, a igualdade é absoluta, em termos de oportunidade. Dizia-o Paulo aos baptizados, com uma clareza que desafiava radicalmente a sua época e não só: “É que todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes baptizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3, 26-28).
É também reconhecida a admiração que as comunidades cristãs causavam aos seus conterrâneos pagãos, exactamente por reunirem senhores e servos, homens e mulheres, autóctones e estrangeiros. Ainda hoje a causam aqui e ali, sendo por isso proféticas. (Mesmo num país como o nosso, as assembleias dominicais são quase a única ocasião em que se reúnem sistematicamente pessoas de várias condições sociais, proveniências e idades, para louvar o mesmo Deus, ouvir a mesma Palavra e comungar da mesma Vida). Contrafacções havia, certamente, como infelizmente se podem reproduzir. Mas essa igualdade de substância e destino estava assegurada pela inquestionável pessoa do constante “Fundador do Cristianismo”.
Até às permanentes deslocalizações contemporâneas, era maioritariamente celebrada em espaços habituais e comuns (tratava-se de “fregueses” – filhos da mesma Igreja, mesmo geograficamente falando). Igualdade também assinalada por comunidades “religiosas” (monásticas, conventuais, etc), que constituíram a possibilidade mais concreta de mudança, inovação e “ascensão” sócio-cultural para tantos dos seus membros, no masculino e no feminino. Não admira assim que, até por não-católicos, a trilogia da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – fosse também ligada à herança cristã.
Diga-se, no entanto, que os progressos da igualdade, mesmo quando conseguiram o sufrágio universal para homens e mulheres de todas as raças, ou quando abriram a todos as possibilidades profissionais e políticas, mantiveram as distinções de origem territorial e fisiológica, naturalmente consideradas e aceites (prioridade aos locais de nascimento ou “naturalização” para as decisões locais, complementaridade masculino – feminino na família e na sociedade, por exemplo).
Mas temos de considerar um certo “tropeço da indistinção”, surgido no caminho da igualdade. A par do movimento sócio-político geral já esboçado, a Europa conheceu de há um século para cá uma aceleração extraordinária da ciência e da técnica, com a mentalidade conexa. Trazidas do campo da “natureza” para a pessoa humana, começou esta a ser encarada mais como algo a “produzir” do que simplesmente a “reproduzir”. Mais do que como produto da natureza, o ser homem ou mulher começou a ser encarado como género cultural de escolha livre. Não se trata já de evoluir dentro do que se é agora, mas de escolher o que se queira ou se “sinta” ser, alterando a fisiologia pela tecnologia. Por isso, a igualdade, no sentido essencial que buscava, pôde dar lugar à indistinção, como possibilidade e até “legitimidade” de se ser à escolha ou sucessivamente.
Culturalmente, andará por perto, em tempos ainda pós-modernos, a deriva libertária do liberalismo, ou seja, a vontade de ser tudo, sem “limites” naturais ou institucionais de qualquer espécie. Apetece-se a osmose, mais do que a relação propriamente dita.
“Relação”, de facto, supõe distinções de raiz. Ninguém é absoluto, antes relativo, pois só na interdependência das diferenças se realiza como pessoa, isto é, ser em relação. Por isso também, o género ou a raça, a localização e cada cultura, não são necessariamente “limites” à igualdade essencial a realizar, mas possibilidades de ser com os outros, dando e recebendo mutuamente, porque os outros são na verdade outros e nós os outros dos e para os outros. Quererá isto dizer que a igualdade só pode acontecer entre seres distintos que partilhem o que têm: acontece como possibilidade e resultado, não como indistinção “irresponsável”. Entre absolutamente idênticos não haveria campo para a igualdade, porque esta se define na relação, o mesmo se dizendo para a liberdade a fraternidade.
O tema é muito mais amplo. Começa por ser teológico, pois na consideração bíblica da humanidade cada um de nós integra um todo que se realiza na distinção e na complementaridade. Iguais, conjugando masculino e feminino, na primeira expressão familiar da sociabilidade; iguais, na especificidade dos vários órgãos dum só corpo, como Paulo lembrava aos coríntios (cf. 1 Cor 12, 12 ss). Iguais, mas no espanto daqueles povos todos que, sem deixaram de o ser, ouviram anunciar, na língua de cada um, as maravilhas de Deus (cf. Act 2, 7 ss). E nós cristãos sabemos – como outros, aliás, o intuem – que tudo é assim, complementarmente igual, porque o próprio Deus o é antes de mais, na sua unitrindade: Pai e Filho no amor do Espírito.
Pistas apenas, para a reflexão que nos aproxime em igual propósito.
Para a cultura e a sua pastoral, poderemos tirar algumas “pistas” de reflexão e trabalho, Como as seguintes: 1) Ligar propostas evangelizadoras e realidades locais, valorizando lugares, tradições e modos e potenciando-os para o futuro, como identidades intercambiadas. 2) Aprofundar bíblica, antropológica e culturalmente os modos femininos e masculinos – autóctones e imigrados -, para o enriquecimento comum e detalhado.
Fátima, 30 de Janeiro de 2010
Manuel Clemente, Bispo do Porto