Paulo Rocha, Agência Ecclesia
O debate na praça pública sobre assuntos de consciência pessoal tem uma configuração estrábica, contraditória mesmo: ditam-se sentenças sobre a bondade e sobretudo a falta dela a respeito de tomadas de posição de terceiros que em nada afetam os seus autores, normalmente comentaristas generalistas. Ou seja, fala-se do que não se conhece por vontade própria, em perfeita dissintonia de conceitos, atitudes sociais e sobretudo de escolha de mundividências, de opções de vida de acordo com um horizonte pessoal e grupal, inclua ele ou não a dimensão transcendente.
Vem isto a propósito do debate em torno do acesso aos sacramentos da Eucaristia e da Reconciliação por casais em segunda união, que ganhou palco mediático nas últimas semanas.
O início da história remonta ao sínodo dos bispos sobre a família, no Vaticano, em outubro de 2014 e de 2015, e à publicação de um documento do Papa Francisco, a exortação “Amoris Laetitia”, em março de 2016, com a síntese dos debates aí decorridos. No capítulo VIII, este documento fala em “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”, para se referir à situação dos casais em segunda ou posterior união e para pedir a cada diocese que crie o ambiente e as metodologias para “acompanhar, discernir e integrar”. E surge, neste contexto, a proposta da continência conjugal para casais em segunda união, cuja primeira não tenha sido declarada nula.
No dia 6 de setembro de 2016, os bispos da Região Pastoral de Buenos Aires publicaram uma Nota com “Critérios básicos para a aplicação do capítulo VIII da ‘Amoris Laetitia’”. Escreve-se a propósito do “viver em continência”:
Quando as circunstâncias concretas de um casal o tornem factível, especialmente quando ambos sejam cristãos com um caminho de fé, pode-se propor o compromisso de viver em continência. A ‘Amoris Laetitia’ não ignora as dificuldades desta opção (cf. nota 329) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação, quando se falhe nesse propósito (cf. nota 364, segundo o ensinamento de S. João Paulo II ao Cardeal W. Baum, de 22/03/1996).
Uns dias depois, no dia 19 de setembro, no Congresso Pastoral da Diocese de Roma, a intervenção do cardeal vigário Agostino Vallini sobre “‘A alegria do amor’: o caminho das famílias em Roma”, refere-se ao tema nestes termos:
Quando, porém, as circunstâncias concretas de um casal o permitam, ou seja, quando o seu caminho de fé tiver sido longo, sincero e progressivo, proponha-se-lhe que viva em continência; se esta opção for difícil de praticar pela estabilidade do casal, Amoris laetitia não exclui a possibilidade de ter acesso à Penitência e à Eucaristia. (documentos citados a partir da Revista Lumen de outubro de 2016).
Em Portugal, pelo que me apercebi, as dioceses que publicaram documentos sobre a aplicação das propostas para a pastoral familiar, nomeadamente no que respeita ao capítulo VIII da ‘Amoris Laetitia’, seguiram de forma muito próxima a mesma redação de Buenos Aires.
“Quando as circunstâncias concretas de um casal o tornem factível, especialmente quando ambos sejam cristãos com um caminho sólido de fé, pode-se examinar a possibilidade do compromisso de viverem em continência conjugal. A Exortação Apostólica não ignora as dificuldades desta opção (cf. AL nota 329) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação, mesmo quando se falhe nesse propósito” (cf. AL nota 364). (D. António Moiteiro, “Acompanhar, Discernir, Integrar”, 26 de novembro de 2017, número 11)
Quando as circunstâncias concretas de um casal o tornem factível, especialmente quando ambos sejam cristãos com um caminho sólido de fé, pode-se examinar a possibilidade do compromisso de viverem em continência conjugal. A Exortação Apostólica não ignora as dificuldades desta opção (cf. AL nota 329) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da reconciliação mesmo quando se falhe nesse propósito. (cf. AL nota 364). (Arquidiocese de Braga, “Construir a Casa sobre a Rocha”, 2017, número 29)
Quanto ao processo: «… pode-se propor o compromisso em viver em continência. A Amoris laetitia não ignora as dificuldades desta opção (cf. nota 329) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação, quando se falhe nesse propósito (cf. nota 364, segundo o ensinamento de S. João Paulo II ao Cardeal W. Baum, de 22/03/1996)». (D. Manuel Clemente, “Nota para a receção do capítulo VIII da exortação apostólica ‘Amoris Laetitia’”, 6 fevereiro 2018, número 2, b). Depois, no número 5, d do mesmo documento, quando refere “alíneas operativas”: Quando a validade se confirma, não deixar de propor a vida em continência na nova situação.
Assim, parece claro que as referências das lideranças da Igreja Católica em Portugal sobre continência conjugal, em determinadas situações, tem o mesmo enquadramento, segue a mesma redação e é quase cópia do documento de Buenos Aires (e a mesma análise seria interessante fazer a respeito de outros temas). Para além deste aspeto, a considerar sempre em situações muito específicas e nunca como regra geral seja para quem for, tenho por verdade que a vida em família resolve-se em família e na consciência de cada um. Claro que com as indicações de quem tem de, por dever, definir enquadramentos de pensamento e de ação (seja no âmbito social, jurídico, ético ou religioso), incluindo as várias sensibilidades e perspetivas onde se revejam todas e todos os que possam estar implicados no assunto. Tudo o resto não passa de uma certa “incontinência nas palavras”.