II Catequese Quaresmal do Bispo do Porto

«Da evangelização feita à evangelização a fazer: etapas missionárias da Diocese do Porto» Ainda na primeira etapa da evangelização da diocese do Porto, principalmente com S. Martinho de Dume, nosso metropolita a partir de 569, entrevimos um cristianismo que se ia afirmando e organizando paulatinamente, entre a inculturação e a tensão com a religiosidade autóctone, ainda tão naturalista e politeísta, como mágica e local. Tempos sucederam-se aos tempos. Desde o século VIII a Península Ibérica conheceu o domínio árabe e a “reconquista” cristã, com avanços e recuos mútuos. Neste contexto nascerá Portugal, de norte para sul, em meados do século XII. Sabemos alguma coisa do que sucedeu aos cristãos do Porto durante esse período. Uns teriam fugido mais para norte, refugiando-se em território cristão ou reconquistado; outros teriam permanecido sob domínio árabe (moçárabes); por fim, foram-se reorganizando eclesialmente sob domínio portucalense. Com a ordenação do bispo D. Hugo em 1113, a diocese do Porto ganha a normalidade conhecida. Nos últimos séculos medievais consolidou-se a organização diocesana, com uma rede paroquial em subdivisão crescente e o acompanhamento episcopal mais preciso. As coisas não se passavam tão linearmente como hoje, nem na administração nem na definição pastoral. Os bispos integravam-se no sistema senhorial da altura – pertencendo-lhes, para mais, o burgo do Porto – e os problemas “políticos”, locais e nacionais, levaram grande parte do seu tempo e preocupações. As paróquias dependiam duma grande variedade de “padroeiros” temporais, que preponderavam na respectiva administração e rendimentos, algo idêntico se passando com as casas religiosas, muitas vezes isentas ou arredadas da intervenção episcopal. Quanto a pessoas, nem os fiéis nem alguns membros do clero ultrapassavam uma cultura elementar, totalmente ou quase analfabeta. Cabidos, colegiadas e mosteiros podiam ir um pouco mais longe neste aspecto, com irradiação variável para o Povo de Deus em geral. No século XIII os mendicantes (franciscanos, dominicanos…) trouxeram-nos mais frescura evangélica e outra proximidade apostólica com as populações. Foi decisiva a sua influência na piedade e na devoção, dando-lhes mais orientação cristocêntrica e mariana, mais sentido de redenção e caridade. Desenvolveram-se concomitantemente as “ordens terceiras”, as irmandades ou confrarias, as instituições assistenciais, corporativas ou outras. Foi este o grande ganho da cristandade medieval tardia: uma rede densa e diversificada de comunidades locais e organizações caritativas, com ampla participação de clérigos, religiosos e leigos. De tempos a tempos, os bispos deviam reunir os clérigos mais responsabilizados, fazendo sínodos para divulgarem decisões canónicas e pastorais, de ordem geral ou particular. Mais frequentemente ainda, deviam visitar as paróquias, pessoalmente ou por outros, verificando o estado das pessoas e das coisas, confirmando ou corrigindo o que encontrassem. A documentação dos sínodos diocesanos e das visitações, da Baixa Idade Média à Modernidade, tem o maior interesse para avaliarmos esta nova etapa da evangelização da nossa Diocese. Muita se perdeu, mas alguma felizmente se conserva, como advertência e sinal para os tempos de hoje. O precioso Synodicon Hispanum, no volume correspondente a Portugal, traz-nos notícias de vários sínodos da nossa diocese, como sejam o do bispo D. Julião Fernandes, que foi prelado portucalense de 1247 a 1260, o de D. Vicente Mendes em 1265, o de D. João Gomes em 1326, o de D. Pedro Afonso em 1344, os de D. Afonso Pires em 1360 e 1371, o de D. Antão Martins de Chaves em 1430, o de D. Gonçalo Anes uns vinte anos depois, o de D. João de Azevedo, também em altura incerta do seu longo episcopado (1465-1495), e o de D. Diogo de Sousa, realizado a 24 de Agosto de 1496. É neste último que nos deteremos, dada a sua grande importância a vários títulos. O referido Synodicon apresenta assim o bispo – que presidiu à diocese de 1496 a 1503, sendo depois arcebispo de Braga – e a sua intenção pastoral: “D. Diogo de Sousa […], descendente de uma nobre família, era deão da Capela Real ao ser nomeado bispo do Porto. Estudou em Évora, Salamanca e Paris, onde obteve o grau de doutor em teologia. Pouco depois de tomar posse da diocese do Porto reuniu sínodo no dia 24 de Agosto de 1496. Foi um dos prelados mais notáveis do seu tempo pela cultura e pelo zelo em manter a disciplina eclesiástica nas duas dioceses que governou” (Synodicum Hispanum. II Portugal. Dirigido por Antonio Garcia y Garcia. Madrid: BAC, 1982, p. 354). Tendo vivido em Salamanca, Paris e Roma, D. Diogo chegara ao Porto imbuído do reformismo católico que alguns espíritos já evidenciavam nesses ambientes, certamente em contraste com muitos outros, mais desmotivados ou distraídos em relação às grandes urgências apostólicas da altura. O que D. Diogo de Sousa nos evidenciará é a forte componente pastoral e catequética que esta nova etapa da evangelização da Diocese pretendeu ter. Pastoral, antes de mais, pela insistência na vida e no ministério dos pastores; catequética, em relação à formação dos fiéis. Apresentando-se ao clero na sua pessoa e propósitos, o prelado conjugava logo, em mútua ajuda e conselho, o trabalho que todos deviam levar por diante: “… trazendo-nos Deus a este bispado por vosso bispo e irmão, quisemos celebrar este santo sínodo para que nele me vísseis e conhecêsseis e vos declarasse a minha tenção acerca do que cumpre a regimento meu e vosso e assim desta igreja. Desejo certo muito não ser do conto daqueles que esconderam o dinheiro que lhes seu senhor deu para ganharem com ele e não fizeram dele fruto, mas queria com a graça de nosso Senhor e vossa ajuda e conselho o servir e viver segundo a ordem em que sou posto, e que vós outros com a dita graça e meu conselho e ajuda pudésseis outro tanto fazer” (Cf. Synodicon, p. 355). E muito havia a fazer, desdobrando-se o sínodo em sessenta “constituições”, que dispõem detalhadamente sobre os mais variados pontos pessoais e materiais, litúrgicos e disciplinares, etc. Naturalmente, tais disposições verificavam ou aplicavam no Porto o que D. Diogo conhecia e tirava da Cristandade em geral, referindo-se simultaneamente ao que acontecia, ao que não devia acontecer e ao que queria que acontecesse. Todo o reformismo eclesial pretende retomar mais intensamente a “forma” inicial da Igreja, como se depreende dos Evangelhos, dos Actos dos Apóstolos e dos outros textos do Novo Testamento. Eclesialmente relidos, esses textos são também aprofundados, com a sucessão dos tempos e das circunstâncias. Assim sendo, reparamos que as várias “reformas” ou “renascenças” do nosso devir cristão acentuam mais este ou aquele aspecto, conforme o respectivo contexto. Assim falamos de “renascença carolíngia”, entre os séculos VIII e IX, quando na pessoa de Carlos Magno, se tentou restaurar o Império cristão ocidental, com tudo o que isso implicou de doutrina e cultura, além do mais. Ou falamos de “reforma gregoriana”, quando, antes, durante e depois do pontificado de Gregório VII, na segunda metade do século XI, se tentou “libertar” as instituições eclesiásticas da submissão feudal em que se encontravam e reviver entre os clérigos a “vida apostólica”, mais espiritual e colegial. Nos alvores da modernidade católica, tão bem representada no Porto por D. Diogo de Sousa, procurava-se uma maior definição doutrinal e vivencial, para relançar a vida cristã em todos os sectores sociais. Começando pelo próprio clero, numa linha que seria reforçada depois pelo Concílio de Trento (1545-1563), definindo sobremaneira o catolicismo ocidental subsequente. A esta luz se poderão compreender porventura melhor as seguintes disposições de D. Diogo, acentuando uma distinção “exemplar” dos clérigos em relação aos outros fiéis, em contraste conversor, como era tomado na altura: “… ordenamos e mandamos, porque a vida dos clérigos não somente há-de ser diferenciada dos leigos nas obras, mas ainda nas vestiduras e conversação e falas, […] que da publicação desta nossa constituição em diante as dignidades, cónegos, beneficiados da dita nossa igreja e assim das outras da cidade e de nosso bispado sejam mansos, honestos em todos seus autos e falas, a assim pratiquem e tratem as coisas do mundo como pessoas que nele menos parte devem de ter” (Cf. Synodicon, p. 359). A “reforma” devia começar pelos clérigos, que deviam ser “mansos e honestos”, conformando-se mais com Cristo, sem darem azo a qualquer ambiguidade no estar, no falar e no agir. Será essa, repito, a grande insistência do concílio Trento no que respeita aos pastores e à pastoral, designadamente com a instituição dos Seminários, que na nossa diocese teve de esperar pelo século XIX… Passando esta “etapa da evangelização” pela redefinição do clero em termos de estar e agir, insistia também na sua habilitação básica para o ofício sacerdotal. Tanto mais que algumas disposições de D. Diogo de Sousa nos esclarecem sobre o muito que faltava neste ponto, quer aqui quer pelo país fora e a cristandade geral da altura: “Sabendo por muitos dignos de crer com quanta ignorância neste bispado os sacramentos da Igreja se ministram, estabelecemos e mandamos sob pena de excomunhão a todos os clérigos, especialmente aos de missa que têm cura de almas, que daqui em diante aprendam a ler, cantar e rezar como a seu ofício são obrigados, em maneira que não mintam no que lerem. E saibam reger o breviário e assim digam missa manso e apontadamente […]. E assim lhe mandamos que os outros sacramentos especialmente o do baptismo celebrem e dêem pausadamente…” (Cf. Synodicon, p. 361). Outra das insistências tridentinas seria a da “residência” e permanência geral dos pastores nas comunidades que lhes fossem atribuídas, tentando ultrapassar práticas anteriores, tantas vezes mais lucrativas do que propriamente ministeriais. Mas o que concílio voltaria a dispor, repetindo aliás tomadas de posição mais antigas, estava já presente no espírito e nas indicações dos pastores mais reformistas e zelosos, como era o caso do prelado portuense que vimos escutando, no sínodo de 1496. Mais concretamente: “… porque os beneficiados que têm cura de almas são obrigados de direito fazer contínua residência pessoal nos ditos seus benefícios em que têm a dita cura, […] nós mandamos a todos os beneficiados […] que, da publicação desta nossa constituição em diante, se vão assentar nos ditos seus benefícios e façam continuadamente residência pessoal” (Cf. Synodicon, p. 365). Este tipo de insistências, pré e pós-tridentinas, foi ganhando aplicação nos tempos modernos. E o mesmo se diga das que diziam respeito ao decoro próprio dos templos, como casas de oração e doutrina. Pouco a pouco se foram distinguindo melhor funções, tempos e lugares, como acabou por prevalecer. Voltemos ao nosso sínodo diocesano de 1496: “… ordenamos e estabelecemos e mandamos a todos os abades e capelães que os mosteiros e igrejas de nosso bispado estejam limpas e varridas e desocupadas de todas as coisas tocantes a suas rendas, tirando aquelas que são necessárias para celebrar missas e os ofícios divinos, porque o trabalho corporal que nisso pode levar e receber é grande fundamento e causa da limpeza da alma e dá azo como o povo a maior devoção seja provocado” (Cf. Synodicon, p. 370). Para D. Diogo de Sousa era clara e directa a relação entre limpeza material dos templos e purificação espiritual do culto. E assim mesmo estipulava que fosse, igreja a igreja, religiosa ou paroquial, por toda a diocese. Com igual ou maior intensidade, queria o bispo que os fiéis se afervorassem na prática sacramental, ponto em que verificava muita irregularidade. Ponto também que, algumas décadas depois, havia de reforçar a identidade católica em relação ao protestantismo em geral. Daí o seguinte passo: “… achamos que certos sacramentos são necessários a qualquer fiel cristão, os que são: baptismo, confirmação, penitência e última unção e Eucaristia. E chamam-se necessários porque nenhuma pessoa sem eles pode ser salva, podendo-os haver […]. E porque somos informados que muitos dos nossos súbditos que hão nome de baptizados e confirmados, e não no parecem ser, pois não seguem o que ordena e manda a Santa Madre Igreja, não se querendo muitas vezes confessar e outras comungar e outras não receber o sacramento da unção, […] pelo qual ordenamos e mandamos que todo o abade, capelão, tanto que souber que algum seu freguês é doente o vão visitar…” (Synodicon, p. 376). Insistia-se numa pastoral total, em tempos de cristandade totalizante. Mas tirando daí a aplicação decorrente, com muito maior exigência para clérigos e fiéis. A Europa moderna, nos seus alvores, caminharia no sentido das definições sócio-religiosas exigentes, por aí passando também a nova etapa da evangelização. De facto, ao longo dos século XVI e XVII as reformas serão também e mutuamente contra-reformas, afirmando-se por exigência e contraste. Não podemos acompanhar ponto por ponto as disposições do sínodo de 1496, momento alto da história pastoral portucalense. Mas em algo mais temos obrigatoriamente de nos deter, ainda que em simples relance. Refiro-me ao aspecto doutrinal e catequético, que foi então a par com o já indicado reforço pastoral do ministério. D. Diogo de Sousa reparava numa ignorância religiosa tão geral como inadmissível. E reagia nestes termos: “… porquanto somos ora informado, pelos visitadores que até aqui foram neste bispado e assim por muitas pessoas dignas de crer, que muitos fregueses assim homens como mulheres das igrejas deste nosso bispado, por sua negligência e rudeza e culpa dos abades e capelães, não sabem o Pater noster, nem Ave Maria, nem mais pouco sabem os preceitos e mandamentos, nem as obras de misericórdia, nem os pecados mortais, pelo qual não se sabem confessar, […] mandamos que daqui em diante todos os abades, reitores e capelães das igrejas do dito nosso bispado que […] a todos os domingos que obrigados forem celebrar e disserem as missas, à oferta delas, ensinem a todos os seus fregueses em modo que o bem possam aprender por linguagem os preceitos e mandamentos…” (Synodicon, p. 377). Com este notável prelado portucalense, a situação estava advertida e o remédio adiantado e urgido. Nas décadas seguintes foi-o cada vez mais, caracterizando a pastoral moderna e acompanhando necessidades reforçadas de doutrina e apologética. Acompanhando também as novas possibilidades provindas da divulgação da imprensa. Respiguemos, a propósito, algumas frases dum autor recente, historiando os catecismos portugueses: “Em Portugal, a grande campanha não foi contra a heresia, mas sim contra a ignorância: ilustrar a fé e ensinar aos baptizados a doutrina e o caminho da salvação. […] O mais grave, no aspecto da ignorância religiosa, é que não se tratava de uma ignorância apenas dos fiéis, mas, sobretudo, daqueles que tinham a missão de os ensinar nos mistérios da fé, os pastores. Esta é a razão por que a maior parte dos catecismos está dirigida aos párocos” (RAMOS, António Manuel Moiteiro – Os catecismos portugueses. Lisboa. Paulinas, 1998, p. 22-24). Importante é realçar, quando nos preparamos para a Missão 2010, que o sínodo portucalense de 1496 foi, também nesta matéria, verdadeiramente inaugural e inovador: “São notáveis estas constituições sinodais porque têm um apêndice, infelizmente mutilado no exemplar existente, com o que se pode chamar o mais antigo catecismo português impresso” (Synodicon, p. 354). D. Manuel Clemente

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