Igrejas: dentro ou fora das escolas?

Comentário de Querubim Silva, Director SNEC O artigo XXI da Concordata é do teor seguinte: “O ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais no País. Consequentemente ministrar-se-á o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas elementares, complementares e médias, aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não tiverem feito pedido de isenção.” Faz-se a afirmação da inspiração confessional do ensino público, não é todavia, uma declaração de confessionalidade formal do mesmo ensino. Do ensino expresso da religião e moral católicas podia pedir-se a isenção. Temos de convir que não seria propriamente fácil afirmar-se na diferença. Mas é importante informar que só o Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, é que vem regulamentar a leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas de forma completa e sistematizada. E é precisamente esse instrumento jurídico que, no preâmbulo do seu articulado, inicia a fundamentação da existência dessa disciplina em horizontes, que eu diria prévios e para além da Concordata. Especificamente, esse suporte jurídico refere que assumem particular importância a Declaração Universal dos Direitos do Homem (de que o próprio texto constitucional de 1976 se faz eco – artigo 16º, n. 2), bem como os pactos das Nações Unidas, concretamente o Pacto sobre os Direitos Económico-Sociais e Culturais (artigo 13º, n. 3) e o Pacto sobre os Direitos Cívicos e Políticos (artigo 18º, n. 4). Destes diplomas, que exprimem uma consciência universal amadurecida sobre a orientação e responsabilidades da educação resulta a convicção do direito prioritário dos Pais na escolha do género de educação a dar aos filhos e da obrigação do Estado – como subsidiário no processo educativo – em proporcionar as condições para que essa escolha possa ser feita sem agravamento injustificado dos encargos. Na Concordata, a escola configurava-se como a escola da cultura tradicional do País; com a Constituição de 1976 inicia-se o caminho da escola pluralista. Caminho que vem a desenhar-se de forma estrutural e sólida, com a Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei nº 46/86, de 14 de Outubro. Rejeitando claramente o relativismo e a neutralidade, a proposta decide-se pela preparação das gerações futuras orientada para os valores: Artigo 47ª, nº 1 – “A organização curricular da educação escolar terá em conta a promoção de uma equilibrada harmonia, nos planos horizontal e vertical, entre os níveis de desenvolvimento físico e motor, cognitivo, afectivo, estético, social e moral dos alunos.” Na tentativa de sistematizar o pensamento da Reforma do Ensino, o Decreto-Lei nº 286/89, de 18 de Agosto, propõe o desenvolvimento da formação pessoal e social dos alunos, da sua formação moral, da formação do carácter, da formação para os valores, numa área específica – a Área de Formação Pessoal e Social – distribuída por diversas componentes, entre as quais disciplinas específicas alternativas. E isto para possibilitar a concretização dos princípios constitucionais do direito de aprender e ensinar (artigo 43º, n. 1) e da proibição de o Estado programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas e religiosas (artigo 43º, n. 2)., para além do já referido direito prioritário de escolha do projecto educativo por parte dos Pais. É claro que, numa visão correcta de democracia, o Estado delineou o projecto de proporcionar aos jovens um ensino verdadeiramente plural, isto é, com a possibilidade de uma formação para os valores segundo diversas perspectivas. Aliás, e bem, em nome da liberdade religiosa, o Decreto-Lei nº 329/98, de 2 de Novembro, veio completar esta pluralidade, tornando generalizada e em regime de permanência o que fora experiência pedagógica para as outras Confissões Religiosas. Quer dizer que a Educação Moral e Religiosa, Católica e de outras Confissões Religiosas, é reconhecida a função de formar pessoal e socialmente os alunos, a par com outras perspectivas não confessionais. E também que elas têm um estatuto de disciplinas curriculares específicas. E há outras disciplinas de formação pessoal e social alternativas, não confessionais. Como também existem outras formas de realizar a formação pessoal e social complementares destas formas disciplinares. Estamos já muito longe da Concordata e de qualquer benesse concedida à Igreja Católica, a partir da mesma. Trata-se de reconhecer uma função educativa à Igreja, neste espaço de vivência e educação democrática. Trata-se de reconhecer o direito de se poder veicular um projecto de formação da pessoa de inspiração evangélica, em paralelo com outros, em condições de verdadeira escolha, e não como “suplemento alimentar”, para quem tiver desejos disso. Trata-se de cumprir a obrigação de proporcionar a enriquecedora diversidade de ideias, atitudes e comportamentos. Neste sentido, qualquer nova proposta de Concordata não só não poderá pôr em risco, como deverá clarificar e consolidar estas aquisições da consciência democrática, eliminando de vez as tentativas de dirigismo educacional, que vem procurando impor novos projectos, pretensamente neutros. O Estado laico não pode significar a programação da educação monoliticamente laica, como não pode significar a imposição de uma sociedade laica. Cabe-lhe, isso sim, gerir com isenção a coexistência e cooperação dos diversos projectos e forças intervenientes na sociedade. E a única forma de prevenir radicalismos, fundamentalismos, ou extremismos de qualquer género, é, em nosso entender, proporcionar a educação para os valores segundo diversos matizes. A própria educação do religioso, não apenas se insere no mais profundo da matriz cultural portuguesa, como se revela de capital importância no desenvolvimento harmónico da pessoa humana. Podemos concluir dizendo: a questão educativa e o problema da disciplina de EMRC não passam pela revisão da Concordata; embora ela possa ser um elemento nesse processo. Querubim Silva Director SNEC

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