Igreja: Visita Pascal «pode ser uma bonita expressão daquilo que o Papa Francisco chama uma Igreja em saída»

A tradicional visita pascal, o “Compasso”, com que se anuncia a ressurreição de Jesus nas ruas e casas de muitas localidades portuguesas, regressa este domingo às ruas do país, anunciando a ressurreição de Cristo com símbolos como a cruz, a música, as campainhas e a água que é aspergida nas casas. Neste Domingo de Páscoa, é convidado da Renascença e da Ecclesia o padre Amaro Gonçalo, secretário diocesano para a Coordenação Pastoral do Porto

Foto: RR/Henrique Cunha

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

O anúncio da ressurreição de Jesus, que se traduz nesta manifestação pública do compasso à visita pascal, ainda é uma marca da Páscoa em Portugal? 

Eu creio que pelo menos no Norte de Portugal, nas paróquias que eu conheço – estive em Amarante, estou em Matosinhos, em duas paróquias, Senhora da Hora e Guifões – é de facto uma marca. Inclusive, eu recordo que nas primeiras paróquias, num ano em que se colocava a questão de haver gente para integrar as equipas, algumas pessoas me perguntaram: este ano não há Páscoa? E a pergunta assim, dita desse modo…. eu tive de responder: Páscoa há. E aí eu percebi que Páscoa era sinónimo de Visita Pascal. Portanto, isso diz muito da associação popular entre a celebração da Páscoa e a própria visita pascal.

 

Mas esta é uma realidade que está em desaparecimento, em particular no contexto urbano, que implica provavelmente também maiores desafios? 

No contexto urbano é mais difícil porque as comunidades estão mais marcadas pelo anonimato. Há uma grande mobilidade também de pessoas que saem da cidade para o campo para celebrarem a visita pascal. Mas eu sinto numa paróquia muito urbana, como é da Senhora da Hora, que as pessoas prezam muito a visita pascal e fazem disso uma referência fundamental do tríduo pascal.

 

O Padre Amaral tem falado desta experiência da Senhora da Hora, que é uma paróquia citadina, mas já falou da sua experiência na cidade de Amarante, onde apesar de ser uma cidade também há um espaço em que ainda predomina alguma ruralidade. Nestas experiências encontra facilmente as razões que explicam um progressivo desaparecimento do compasso nas cidades?

Eu tenho dúvidas que nas cidades haja um progressivo desaparecimento. Eu até sei de alguns casos em que há um recrudescimento. Isto é, as comunidades tentam salvar a Visita Pascal e tentam mantê-la ou até mesmo reativá-la. Em Matosinhos até houve casos de paróquias que a retomaram depois daquela crise um pouco do movimento contrário à religiosidade popular dos anos 70, 80. Depois houve uma retoma em várias paróquias. Agora, é mais difícil fazer esta visita quando pensares que tens muitas urbanizações, muitos prédios, alguns de construção mais antiga sem elevadores, em que nós, por exemplo, desde a pandemia, propusemos para amenizar o peso e o custo da Visita Pascal que as pessoas desçam à rua ou às entradas dos seus prédios e a visita domiciliária faz-se apenas àqueles que expressamente o pedirem.

Nós tivemos esta discussão pós-pandemia, se voltávamos ao esquema tradicional de visita domiciliária. E, pelo menos na paróquia da Senhora da Hora, entendemos manter uma forma mista.  Por regra, essa visita é feita nas ruas, as pessoas descem. As equipas vão a passar. As pessoas rezam em comum, fazem um pequenino grupo, ou às entradas dos prédios, ou nas rotundas, ou nos lugares onde se reúnem pequenos aglomerados, às vezes pequenas famílias, às vezes pequenos grupos de pessoas que vão em passeio e param. E, portanto, é um modelo misto. Acontece que há doentes, há idosos, há pessoas frágeis e há também pessoas que dizem que queria que fosse a casa e então indicam e acompanham a visita e ela acontece. Eu sinto que é uma marca muito forte e que nós não a devemos descuidar.

 

Admite que possa haver alguns responsáveis, alguns párocos assutados ou até desinteressados face a outras prioridades num contexto urbano perante esta tradição?

Admito que sim, eu não conheço assim a realidade da visita pascal em todos os lugares, nem se quer na nossa diocese. Eu creio que na diocese do Porto uma grande maioria – tenho medo de estar a dizer uma coisa sem fundamento….

 

Mas, por exemplo, padre Amaro, na cidade do Porto contam-se pelos dedos aquelas que ainda têm a Visita Pascal ao Domingo de Páscoa? 

Pois, é provável, talvez porque é mais difícil. O coração das cidades está despovoado, e são sobretudo marcadas por serviços, sem núcleos familiares significativos, e, portanto, é mais difícil fazer a proposta de uma Visita Pascal. Agora, em meios semiurbanos ainda é possível e ainda é valorizável.  Aliás, eu reparo que o fenómeno da religiosidade popular e das crenças populares, e às vezes até de alguma superstição continuam a prevalecer nos grandes centros. Quando mudei de Amarante para Matosinhos, eu tinha a ideia de que essa religiosidade seria menor numa cidade mais povoada, com outras características, e fui reparando, por exemplo, a propósito do batismo e de outros fenómenos assim ligados à religiosidade popular, que ela é intensa, mais intensa. E talvez por uma defesa. E por exemplo, as motivações para o batismo de tipo supersticioso encontrei muito mais em Matosinhos, na paróquia da Senhora da Hora, do que tinha quando estava na outra paróquia. Talvez porque nós também nas cidades acolhemos e recolhemos e integramos pessoas que têm uma proveniência rural e que às vezes são essas as que mantêm vivas as nossas comunidades. Na paróquia da Senhora da Hora, quando vou reparar, encontramos muitas pessoas, e as que estão até mais ativas na vida paroquial, têm raízes fora do contexto urbano.

Agora, acho que a Visita Pascal, de uma forma ou de outra, na rua ou em casa ou nas duas coisas, pode ser uma bonita expressão daquilo que o Papa Francisco chama uma Igreja em saída. O anúncio Pascal, o encontro com as pessoas, a congregação dos vizinhos, são valores que eu acho que devemos lutar, embora eu perceba que em alguns contextos seja praticamente impossível, até pelos recursos humanos, porque nem toda a gente está com vontade de ocupar o seu dia de Páscoa numa atividade destas…

 

E é preciso uma equipa grande para o fazer? 

É. Por exemplo, na Senhora da Hora nós temos 30 equipas para toda a manhã.  E já foram 33. Também se vai verificando uma diminuição de pessoas que abrem a sua porta ou que pedem a visita a Pascal. Em Guifões temos 15 equipas para a manhã de Páscoa. É um número significativo de pessoas, mas são pessoas que se entusiasmam. Nós inclusive estamos a incluir imigrantes, pessoas que vieram do Brasil, da Venezuela, da Colômbia, que nos aparecem nas celebrações, que deixámos o convite e eles querem fazer essa experiência e querem ver como é, porque acham interessante e vêm e perguntam o que é.

 

Porque não conhecem essa realidade?

Não conhecem essa realidade.

 

Foto: RR/Henrique Cunha

Do ponto de vista pastoral, qual a importância de levar esta proclamação da fé para o espaço público?

Eu acho isso muito importante, porque nós tendemos a ter comunidades… As comunidades urbanas, na minha leitura, têm uma tendência autorreferencial, de autoconsolação, de autopreservação. As pessoas gostam da paróquia como um lugar onde se sentem em casa, mas, habitualmente, é uma casa para poucos, no contexto de muitos. A tendência é fazer o ninho, ali, sentirmo-nos quentinhos; depois, tudo o que seja sair, provocar, anunciar, é um passo mais difícil. Nesse sentido, a Visita Pascal é um esforço de saída, de encontro com as pessoas.

Permita aqui fazer uma partilha de uma experiência muito simples. Estou há pouco tempo, na paróquia de Guifões, e quando reuni as equipas da Visita Pascal, disseram-me que há uma zona, que é uma zona grande da paróquia, com 37 entradas, de um bairro camarário, que são pessoas, sobretudo, provenientes de Guifões, de Matosinhos, e que vieram para ali, onde não havia Visita Pascal. Isso era aceite pacificamente. “Eles não têm lá ninguém que queira integrar as equipas, eles não ligam, passe a expressão, à paróquia, aquela zona fica por fazer”. E eu disse que isso não pode ser. Essa zona é a que primeiro temos de ir visitar. Essa é a zona que primeiro temos de sair ao encontro, porque se eles não se sentem bem em nossa casa, ou nós não os integramos, ou eles não se deixaram integrar… nós temos aqui um pequenino sinal de presença da Igreja. E foi por isso, por exemplo, que também este ano, numa das vias-sacras públicas que realizamos, fomos a uma zona “periférica” da própria paróquia. Também de bairros, numa paróquia que não é, neste caso, urbana, foi uma antiga vila e que tem algumas características urbanas, mas não assim tão acentuadamente. Mesmo aí se verifica que há zonas deprimidas e que estão numa relação praticamente de indiferença em relação à comunidade paroquial, por razões geográficas, sociais, de proveniência, etc. Ora, nós aqui, na visita a Pascal, temos também a oportunidade de nos aproximarmos dessas pessoas.

 

E isso é uma espécie de catequese que se faz?

Eu acho que nós, do ponto de vista da catequese, não temos grandes hipóteses. Vamos ser honestos….

 

No sentido de ser uma forma de, até para quem faz a visita, perceber que faz parte da sua missão sair….

Isso sim. Do ponto de vista da pedagogia pastoral, é as pessoas perceberem que nós devemos preferir aqueles que ninguém quer. E essa é a mensagem que eu estou sempre a dizer aos nossos paroquianos. A vocação da Igreja é tomar conta daqueles de quem ninguém quer tomar conta. É amar e servir e sair ao encontro daqueles que ninguém quer, por razões de xenofobia, por razões de desprezo social, enfim, por várias razões. E este é um sinal bonito e educativo para a própria comunidade, sair da sua zona de conforto. Porque ir a um bairro onde predominantemente estão pessoas que têm origens noutros lugares, que não têm uma relação de grande proximidade com a paróquia, a prática dominical é reduzidíssima ou quase insignificante… se nós perdemos estes vínculos, temos de ser nós a dar o primeiro passo e aquelas pessoas dizerem assim: “alguém se aproximou de nós”. E a mensagem que levamos, que é muito simples, às vezes é o gesto que fala por si. É aquelas pessoas saberem que alguém pensou nelas, alguém quis ir à casa delas.

Nós temos a preocupação, uma das coisas que fazemos – fi-lo sempre e agora com mais cuidado – é pedir, por exemplo, às próprias equipas que levem uma folhinha para sinalizarem os casos de idosos isolados, os casos de pessoas que estão acamadas e que, porventura, poderiam querer algum acompanhamento pastoral do pároco ou a visita do ministro extraordinário da Comunhão.

Na Senhora da Hora, do universo dos doentes que eu visito, uma grande parte, cerca de 80%, foram sinalizados a partir da Visita Pascal. Isto é, as equipas vão, conversam, “está aqui uma pessoa, está doente, está acamada, gostava que o senhor padre viesse cá, costumava ir à Missa, gostava de ter algum acompanhamento, alguma visita”, e aí cria-se imediatamente a ponte de contacto. Eu, por exemplo, se conheço a paróquia da Senhora da Hora e começo a conhecer a paróquia de Guifões, é à custa desta visita geográfica, desta pré-visita pascal, que acaba por ser também uma ponte de aproximação.

 

Em muitas localidades, quem faz esta visita encontra um cuidado extremo na decoração do exterior das casas e também no seu interior, onde uma mesa é posta para receber as equipas, para um momento de oração e convívio. É um momento especial também de convívio entre gerações, digo eu. Este sinal é importante para uma sociedade que, muitas vezes, esquece alguns daqueles de que falava ainda agora, como os mais velhos?

Eu acho que esse sinal é muito bonito. No meio urbano ele não é tão presente como nos meios não tão urbanos. Nós hoje quase temos dificuldade em falar em meios rurais, porque a nossa cultura, mesmo nos meios rurais, já está muito globalizada em vários aspetos, mas é um sinal de uma família que se reúne, que faz uma pequena oração e que, pelo menos, percebe que aquele dia não é um dia como os outros. E essa marca, encontrar-se para uma pequena partilha, uma brevíssima oração que fazemos quase um responsório breve, um pequeno anúncio, eu acho que vale muito pela marca que deixamos daquele dia e vale muito por esta forma de aproximação e de comunhão. Isto é, a paróquia é a Igreja que está no meio das casas dos seus filhos e filhas.

 

Sobretudo no norte do país, a Páscoa é vivida num clima muito comunitário. Há portas que não se fecham neste dia, famílias que vão de casa em casa. Faço-lhe uma pergunta talvez um bocadinho filosófica, mas esta é uma utopia de fraternidade?

Isso é verdade. Nós temos aqui uma base para tecer um fio de relação entre pessoas que, de outro modo, dificilmente teríamos. E, de facto, as pessoas, mais nuns meios do que noutros, algumas andam de facto a saltar de casa em casa e recebem na sua casa e depois recebem outros na sua. E este é realmente um sinal de uma comunhão, embora às vezes também haja dificuldades entre vizinhos e até de pessoas que integram as equipas com os vizinhos. Bom, não estamos num mundo de anjos, estamos num mundo de pessoas….

Mas, de qualquer maneira, creio que sim, que nós… sobretudo a Visita Pascal pode servir para tecer os fios da relação entre as pessoas e a comunidade paroquial.

 

E como pároco, o que é que significa este momento de encontro com a sua comunidade? Eu imagino que tenha momentos de grande carinho e afeto…

Quer onde estive, quer onde estou, já integrei as equipas, vou também numa equipa – este ano ainda não me decidi, vou usar o fator surpresa -, é um momento muito bonito de aproximação, de comunhão e de surpresa. Porque quando entro numa casa e dizem “é o senhor padre?”, porque 99% do grupo são leigos, e bem, é um milagre, é uma coisa inaudita. E eu lembro-me a primeira vez que fiz a Visita Pascal na Senhora da Hora, em 2009, quando entrei nos prédios junto ao Norte Shopping, encontrei uma família que ficou muito surpreendida com a visita, porque vinha de Celorico de Basto e não contava nada que, naquele contexto, e deparasse com o próprio pároco dentro de casa. E a partir daí se construiu uma relação de família, de pertença e de comunhão. Eles tratam-me verdadeiramente como um filho. E isso nasceu precisamente dessa visita inesperada, nesse dia de Páscoa, a um casal que veio no seu êxodo para a cidade e encontrou ali qualquer coisa que lhe recordou as suas origens.

 

Que mensagem gostaria de deixar neste dia de Páscoa?

Eu gostava de dizer às pessoas que vivam a Páscoa como fonte de alegria. A nossa maior alegria está nesta vitória de Cristo sobre a morte, mesmo que esta alegria tenha ainda as suas chagas visíveis.

Surpreendo-nos muito que Cristo ressuscitado se manifeste ainda com as suas chagas, mas nós acreditamos que é possível transformar estas chagas em furos de luz e que a ressurreição de Jesus deve ser para nós uma fonte de esperança e de confiança que é possível curar as nossas feridas e é possível construir um mundo diferente, um mundo novo, uma utopia de fraternidade, como há pouco referia.

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Agência ECCLESIA

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