Em todas as mudanças de época, a que os Papas ao longo da história foram atentos, «é a concepção da pessoa humana que está em causa, uma forma de olhar o homem», adverte o arquivista e bibliotecário da Santa Sé
Lisboa, 15 mai 2021 (Ecclesia) – O cardeal José Tolentino Mendonça afirmou hoje que se a caridade não percorrer todas a áreas do cristianismo, este corre o risco de se tornar “desincarnado e teórico”.
“Não podemos ver a pastoral sócio-caritativa como um departamento, mas como um sopro transversal, um domínio da pastoral que percorre todas as áreas, caso contrário o cristianismo corre o risco de ficar desincarnado e teórico”, afirmou o cardeal português durante o congresso diocesano de pastoral sócio-caritativa, do Patriarcado de Lisboa, que decorre hoje em Torres Vedras.
D. José Tolentino Mendonça afirmou que a caridade está no centro do “coração da Igreja” que necessita, de “uma presença e militância no campo social”, reconhecendo haver ao longo da história “um esforço dos Papa para esse estímulo”, mas indicou haver “falta de comunhão e coesão”.
O arquivista e bibliotecário da Santa Sé propôs um caminho desde a publicação da encíclica «Rerum novarum», escrita pelo Papa Leão XIII, a 15 de maio 1891, até à última encíclica da história da Igreja, a «Fratelli Tutti», do Papa Francisco, publicada a 3 de outubro de 2020, ambos os anos de “mudança epocal”.
No final do século XIX o Papa Leão XIII percebeu a mudança “não apenas no campo político e social, também no domínio económico”, com transformações da técnica”, que conduziram a “uma nova idade da história, com novas conceções”, onde o trabalho se tornou “uma mercadoria, no mercado da procura e da oferta, sem olhar às condições da vida humana”.
Mas, destacou D. José Tolentino Mendonça, “na antiga ou na nova mudança época que vivemos, é a concepção da pessoa humana”, que está em causa, uma forma de olhar o homem “que nasce com o cristianismo e com o impacto da pregação de Jesus”.
“É esse o grande legado histórico e perene no cristianismo, que vemos em cada momento da história, proposto pela Igreja. O ser humano não pode ser olhado como mercadoria, como uma coisa, mas devemos olhar para as pessoas com os seus direitos salvaguardados”.
D. José Tolentino Mendonça durante a conferência «Caridade e profecia: uma reflexão para o presente», reconheceu a capacidade de os Papa atualizarem, conforma a sociedade, os direitos humanos e sociais.
“Não era óbvio que um Papa se dirigisse à sociedade para falar de problemas tão concretos. E persistem dois olhares que olham com desconfiança a Doutrina Social da Igreja (DSI): achar que as coisas do mundo nada tem a ver com a fé, e, por outro lado, que a Igreja acaba na sacristia e não tem dada a dizer ao mundo”, lamentou.
O cardeal português sublinhou que o direito de cidadania depende de cada época e que “cada geração tem de dar ao Evangelho um direito de cidadania social”, colocando a palavra de Jesus na organização da vida social, económica, politica e na forma de pensar “o presente e futuro da humanidade”.
Em 1931 o papa Pio X, ao escrever a «Rerum Novarum», fala em “cristianizar a vida económica”, que “os meios sociais, os instrumentos, mecanismos e processos, não são mais do que instrumentos fornecidos ao homem para ele alcançar o seu último fim”.
A 15 de maio de 1961, o Papa João XXIII publicava a encíclica «Mater et Magistra», onde indica a dupla missão da Igreja: “Conduzir os homens a Deus mas esclarecer os homens sobre a sua própria dignidade”.
O Papa Paulo VI assina, a 14 de maio de 1971, a carta apostólica «Octogesima Adveniens», onde afirma que, fruto das viagens que realizou se apercebeu da necessidade de a Igreja desenvolver um magistério social, onde fala de “urbanização, dos cristãos na cidade, fala dos jovens, o lugar da mulher, da discriminação, do direito à emigração, sobre a criação de novos postos de trabalho e a preocupação pelo meio ambiente”, elenca.
Também o Papa João Paulo II, em maio de 1991, publica a encíclica «Centesimus Annus», a partir da “grande transformação epocal de 1989”, com a queda do muro de Berlim, o fim das revoluções, a construção da democracia e a novas dimensões do continente europeu.
A Laudato Si, publicada em 2015, pelo Papa Francisco, é um “evento sísmico” que apela a uma “conversão politica, social, na maneira de organizarmos a vida lutando não por uma bandeira verde, mas uma ecologia integral”, e onde o Papa afirma o conceito de “conexão – tudo está ligado”.
“No ano de pandemia que é uma aceleração da chegada do futuro, uma nova época da história, o Papa volta a publicar uma encíclica, uma espécie de livro de rumos, que é a «Fratelli Tutti», e aqui o Papa revisita os grandes temas da DSI mas acrescenta outros: os direitos da pessoa humana, alargar o conceito de cidadania, porque já não cobre a humanidade de todos. Há uma humanidade que fica excluída do conceito vigente de cidadania”, indica.
A última encíclica destaca a necessidade de “reforçar o bem comum, refletir sobre o campo do trabalho, a valência de modelos de desenvolvimento que a pandemia mostrou, refletir sobre mundo globalizado e a regulação económica, reabilitar a politica, o papel da mulher, condenar racismo, falar dos imigrantes, acolher o avanço da tecnologia e refletir sobre a inteligência artificial”.
“O grande chapéu que o Papa toma uma categoria fundamental a que ainda não se conseguiu dar estatuto político: temos igualdade e liberdade, mas não nos vemos como irmãos. Sonhemos com uma humanidade única, diz o Papa, como filhos da mesma terra, com riqueza da sua fé, convicções, com a sua voz, mas todos irmãos”, afirmou.
D. José Tolentino Mendonça evocou o legado do padre Abel Varzim que a cada 15 de maio escrevia sobre o significado da data para a Igreja, “que chamava de cristianismo social”.
LS