Igreja quer reforçar presença nos vários campos da saúde

Padre Vitor Feytor Pinto, coordenador da Comissão Nacional da Pastoral da Saúde, fala do Dia Mundial do Doente e dos desafios para as comunidades católicas em Portugal

Ecclesia – Este ano, à semelhança dos anteriores, o Papa Bento XVI lançou uma mensagem para o Dia Mundial do Doente, recheada de muitos desafios. Como é que a recebeu?

Vítor Feytor Pinto – Recebi-a cheio de entusiasmo. Para já, julgo que foi o Papa que, muito felizmente, escolheu o slogan deste ano: “Ver o homem que sofre com um olhar de contemplação”.

Há aqui três ou quatro elementos extremamente importantes, que depois dão origem a tudo aquilo que o Papa diz na sua mensagem.

A primeira ideia – “ver” – supõe a atenção. Andamos às vezes tão distraídos que nem reparamos que à nossa volta, no nosso prédio, na nossa rua, há pessoas que sofrem brutalmente.

E não damos conta por causa da nossa pressa. Estamos atormentados com os nossos problemas e não reparamos nos outros, nos problemas brutais que podem trazer consigo na área da doença – problemas físicos – mas também na área afectiva – problemas psicológicos, sociais… Há muitos problemas que as pessoas sofrem e eu tenho que saber vê-los, ver o homem que sofre.

O Papa extrapolou da área da saúde para o problema do sofrimento global. Isto é extremamente interessante porque no Dia Mundial do Doente parece que nos centrávamos apenas no doente. Bento XVI abriu um leque fantástico, permitindo-nos olhar para qualquer pessoa em sofrimento nos diversos aspectos que constituem a sua fonte de angústia.

A segunda nota é o homem que sofre. Quem é ele? Vale a pena estudá-lo. Ao ler a mensagem de Bento XVI, recordei muito um texto lindíssimo do Papa João Paulo II bem marcado pela necessidade de ultrapassar o sofrimento humano: “Salvifici doloris”, a dor que salva [documento sobre o sentido cristão do sofrimento humano]. Foi o que João Paulo II nos ofereceu como momento de reflexão quando lançou o ciclo da Pastoral da Saúde no mundo.

Quando vemos o homem que sofre, em termos de salvação, temos de conhecê-lo bem. Quer João Paulo II quer Bento XVI têm trabalhado muito a parábola do bom samaritano. E qual foi o seu segredo? Um homem estrangeiro viu uma pessoa caída na estrada; aproximou-se; desceu da montada; cuidou dele, tratando-o com azeite e vinho, remédios do tempo; pegou nele ao colo; pô-lo na sua montada; levou-o à estalagem; pagou ao estalajadeiro e ainda deixou dinheiro para as despesas que ele pudesse ter; e acrescentou até que iria alterar a sua rota, voltando a passar por ali para ver se seria necessário pagar mais ou fazer alguma coisa para continuar o mecanismo de salvação que ele pretendia para aquele homem.

Quando falamos em “ver o homem que sofre”, estamos a concretizar a preocupação pela pessoa concreta, com os problemas que ela tem consigo. Tenho de ser disponível para isso. E hoje o mundo contemporâneo, com as crises sociais impressionantes, as crises económicas, as guerrilhas constantes, os atentados e os egoísmos acumulados, produz tanto sofrimento, que eu, cristão, tenho de olhar à minha volta e ver quem sofre, quem precisa de mim.

É aqui que aparece a segunda dimensão referida pelo Papa, que me parece muito bonita: “com um olhar de contemplação”. Quer dizer, Bento XVI convida cada cristão – neste ponto os não cristãos terão dificuldade – a reconhecer no homem em sofrimento a pessoa viva de Jesus Cristo sofredor. No fundo, o rosto sofredor de Jesus Cristo pode estar estampado em cada homem carregado com um brutal sofrimento.

Eu que digo que amo Jesus Cristo, eu que digo que me associo à sua paixão, eu que digo que me associo a todos os seus sofrimentos no julgamento ou na cruz, tenho de me associar a ele no homem crucificado hoje, que é o homem que está na estrada, marcado por brutais agressões da humanidade, e que não é capaz de sair do buraco onde está. Eu ali contemplo fonte de oração, fonte de contemplação, desafio a um cuidado maior. Tudo isto num enquadramento extraordinário que me permite compreender que o sofrimento, por vezes, pode ser salvífico, até para quem assiste o sofredor.

Se o sofrimento for incapaz de ser ultrapassado, o sofredor é capaz de o oferecer unindo-se à paixão de Jesus; e aqui encontra-se um desafio muito interessante para ele próprio descobrir um sentido para a vida.

Um destes dias vi um locutor da televisão, muito conhecido, interessante e que faz rir toda a gente, dizer uma coisa que me assustou. Com sinceridade, afirmou nada mais, nada menos: “Eu não tenho sentido para a vida”. Como é possível que pessoas, que até têm sucesso no mundo, serem capazes de não terem sentido para a vida? Eu tenho de saber sempre por que vivo, para que vivo, como vivo, com quem vivo, como sou feliz, como faço os outros felizes. Se eu não tiver sentido para a vida, isso é brutal.

Num slogan como o deste Dia Mundial do Doente, penso que tanto tem sentido para a vida aquele que descobre no outro o rosto de Jesus Cristo sofredor, como aquele que está em sofrimento tem a oportunidade de descobrir o sentido para a vida, associando-se ao mistério da dor de Jesus Cristo.

 

Acompanhar todas as dimensões da pessoa

E – A mensagem de Bento XVI fala do acompanhamento dos doentes como um desafio muito concreto para as paróquias. Sente que elas precisam de caminhar mais para chegar aos seus doentes?

VFP – Vou dar um salto da mensagem de Bento XVI para a proposta que a Pastoral da Saúde faz em Portugal. Perante as mensagens que os Papas nos dão, temos a preocupação de conhecer um slogan que as pessoas compreendam com facilidade.

Por isso pareceu-nos muito interessante criar uma frase muito bonita: “Acompanhar a pessoa doente, um desafio para o cristão”. Esta frase concretiza o slogan do Papa na nossa realidade pastoral.

A expressão que escolhemos usa a palavra que mencionou, “acompanhamento”. A primeira coisa que temos de ser capazes de fazer com a pessoa doente é acompanhá-la. E não apenas espiritualmente – levar os sacramentos, rezar… Não, tem de ser um acompanhamento global. A pessoa é um complexo bio-psico-social-cultural-espiritual-religioso. Por isso o acompanhamento tem de ser físico (presença), psicológico (afectividade, amor), social (companhia), cultural (permitindo leituras, ver televisão), espiritual e religioso.

Nós dizemos “acompanhar a pessoa doente”. Por que é que dizemos “pessoa”, e não “homem”? Porque a pessoa é homem e mulher. A mensagem do Papa refere “acompanhar o homem”. Nós preferimos “acompanhar a pessoa”. Porque a “pessoa” é criança, adolescente, jovem, adulto, idoso, homem, mulher, com esta ou aquela tendência. Não se discute isso. Discute-se a pessoa. Seja quem for, merece da parte dos cristãos uma presença, e não o desprezo da solidão.

O drama maior do homem contemporâneo – sentimo-lo muito hoje, concretamente – é a solidão. Na nossa comunidade paroquial [Campo Grande, Lisboa], temos cerca de 90 pessoas a viver em casa e que já não podem ir à igreja. Fizemos um estudo de quem eram as pessoas que estavam sozinhas em casa e visitamo-las e apoiamo-las. Através do acompanhamento continuado, e não apenas da visita, vamos ajudá-las a vencer a solidão. É dentro desta perspectiva que eu, cristão, sinto que tenho de ir ao encontro deste homem que está sozinho, para o ajudar.

Mediante um acordo com a Portugal Telecom, fizemos com que as pessoas com problemas mais difíceis tivessem um telefone especial para contactarem connosco em qualquer hora do dia ou da noite em que precisem de ter um apoio especial.

É muito interessante esta perspectiva de acompanhar a pessoa doente, sentindo que é um desafio feito ao cristão. E quando fazemos isto indo ao encontro de pessoas que não têm fé, mas que estão sós e podem ser ajudadas por nós, esta visita, presença e acompanhamento dão muitas vezes origem a que elas se abram a valores diferentes.

 

E – Estamos diante de um entendimento mais amplo da Pastoral da Saúde?

VFP – Há um elemento novo que é muito importante sublinhar: o convite é feito às comunidades cristãs para se organizarem em Pastoral da Saúde.

Quando se falava em Pastoral da Saúde, mencionavam-se quase exclusivamente os hospitais. Mas eles hoje são locais de passagem. As pessoas estão lá o mínimo de tempo: dois dias depois de operadas têm alta e regressam a casa. E quando vão à consulta estão no hospital pouco tempo e voltam à sua habitação. A casa é o lugar onde o doente hoje está. Por isso as comunidades cristãs têm de fazer um levantamento para saber quem são os doentes que têm em casa. E a partir daí vão ver como os podem acompanhar e ajudar, organizando-se em Pastoral da Saúde.

Convidamos todas as pessoas a ser voluntárias. Possuímos um corpo seleccionado de voluntariado que formamos e organizamos em pequenos grupos, para que seja capaz de estar presente junto dos pós-operados, idosos (sobretudo os que já não saem de casa), deficientes e doentes sós que não podem frequentar a comunidade paroquial nem sequer fazer a sua vida habitual.

É a comunidade paroquial que tem de se organizar neste sentido. Ela não pode existir para dar o sacramento da Unção dos Doentes e o viático na fase final da vida. Nós não vivemos para preparar para a morte mas para dar mais qualidade à vida, para dar mais saúde. O convívio, o acompanhamento, a presença de proximidade permite esse trabalho intenso de fazer felizes as pessoas.

 

E – Como é que está organizada a Pastoral da Saúde a nível nacional?

VFP – Estamos organizados em três grandes frentes. Uma delas, muito importante, centra-se nas capelanias hospitalares. Nos últimos 10 anos temo-las renovado profundamente, inclusivamente com formação específica.

Estamos a acabar um mestrado frequentado por 60 actuais e futuros capelães, que se prepararam intensamente durante dois anos. Cerca de 30 defenderam teses de mestrado, enquanto que os restantes ficaram com uma pós-graduação. Todos receberam preparação específica para desenvolverem esta actividade.

Conseguimos do Ministério da Saúde um novo estatuto de capelão, que envolve também uma relação muito bonita com as outras confissões religiosas. Embora a religião católica tenha a maioria em Portugal, há pessoas que também têm direito de serem assistidas pelos ministros das confissões religiosas a que pertencem.

A segunda área, muito importante, é a das congregações religiosas. Algumas dedicam-se exclusivamente à saúde, concretamente os Irmãos de São João de Deus, as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e as Irmãs Franciscanas Hospitaleiras, cuja fundadora é a futura beata “Mãe Clara”. As duas primeiras comunidades dedicam-se exclusivamente ao tratamento dos doentes em situações difíceis.

O terceiro campo de actuação da Pastoral da Saúde é a comunidade paroquial, onde tem três valências.

A primeira é educar para a saúde. Nas nossas catequeses temos uma educação para a alimentação moderada, contra o problema do engordar estúpido, até das crianças. Precisamos também de educar para a organização do trabalho e para o recreio, para que as pessoas não vivam em stress. Educar para os não consumos de droga e de outras substâncias. Educar para uma vida sexual equilibrada. E prevenir as doenças através das vacinas e de outros meios. É um trabalho muito bonito que as comunidades paroquiais podem e devem realizar com as estruturas de saúde da zona.

A segunda nota é o trabalho com as pessoas doentes: pessoas em pós-operação e que vão ser operadas. Temos um corpo de voluntários que as acompanha ao hospital, para que não se sintam perdidas, por exemplo, nas urgências. Fazemos igualmente o acompanhamento aos doentes e idosos no centro de saúde e nas suas casas.

Existem igualmente as situações mais difíceis, terminais. Nestes casos preocupamo-nos em realizar um acompanhamento e uma oração especiais pelos doentes. Na minha comunidade estamos agora a organizar vigílias de oração pelos doentes cujas famílias nos pedem que rezemos por eles. Não se trata só de visitá-los mas de estarmos em oração por eles.

Também motivamos os doentes que estão em casa para serem apóstolos. Estou a pensar numa senhora extraordinária, antiga professora do liceu: quando as crianças da paróquia vão visitá-la, ela tem em cima da mesa uma série de livros que comenta com os pequeninos. Ou seja, está também a educá-los e a ser apóstolo.

E há pessoas que, na sua doença, fazem oração: há quem, por exemplo, reze o Rosário todos os dias pelas pessoas que sofrem mais, pelos interesses da comunidade cristã ou do mundo contemporâneo, que tem tantos dramas. Por isso é interessante ensinar as pessoas doentes a tornarem-se agentes da acção pastoral.

PRE/SN/RM

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